nós somos

A grande verdade sobre todos nós é que todos
nós somos alguém que não somos:
a dolorosa vítima de ontem ou talvez,
com menos alarde e sem qualquer ênfase,
o secreto algoz do amanhã.
Somos todos nós algo que já existia
em qualquer manhã de sangue e horror
antes de nosso nascimento e sob o luar
somos todos o amor renovado apesar
dos mananciais da loucura e do ódio.
Nós somos todos porque tantas vezes
é preciso dar nomes aos aos cordeiros
e então somos todos Heitor
forte, sem os calcanhares de Aquiles
e ainda podemos ser todos Quixote
ou – e quem pode dizer o contrário? -
talvez sejamos todos Rocinante a pastar
a grama verde enquanto no céu
os abutres volteiam e a má sorte
se consuma: aquelas nuvens tão
brandas, amontoados de espuma
que, quando muito, traziam uma vaga
melancolia, mal o sabíamos,
era a neblina que nos cercava,
tripulantes caducos de um navio
que ancora num porto devastado
e ainda antes de dizermos “tarde demais”
murmuramos – como que diante
do espelho – todos nós somos
o outro e ao mesmo tempo
não somos e nesse ser ou não ser
talvez alguém minta: A grande verdade
é que todos nós somos Hamlet
embora muitos não sejam príncipes
e tantos outros sejam os assassinos
do rei – o que importa? O que talvez
defina o herdeiro do trono roubado
é uma certeza que todos nós temos: existe
algo de podre infestando os ares
como a lembrança de um pesadelo
que nos sobressalta sem nos despertar,
que nos leva a um sonambulismo
tão eloquente, a ânsia de gritar
“nós somos” porque, não fosse assim,
o que seríamos nós
além do mais negro silêncio?

A última fábrica de fósforos

Um retrato é sempre parcial, a sua força é ser incompleto, capta quanto muito o instante-luz de uma vida, recriada por outra. O outro sob a luz de Eros, aguarelas que nunca serão as mesmas, corrente de uma vida que por uns segundos é observada no seu movimento e por isso nunca o retrato está parado. Nem sequer entre dois instantes ele é fixo. Este pode ser feito por quem está no quinto andar (traseiras), ali onde ele fuma um cigarro, uma ponta acesa que se vê ao longe, de cima para baixo, ali onde cai a cinza: a ilha – que também ele não sabe por onde se entra, quem vive nas suas traseiras, entre o som dos galos que ocupam, como os homens, algumas pequenas hortas abandonadas, entre casitas e casitas, zinco, telhas, construções para trás, tubos de exaustão de restaurante, mosaicos azuis de casas centenárias onde pousam as gaivotas, o som de uma festa brasileira, gatos malhados e negros, hortas com um triciclo, ao lado, uma criança que brinca sempre sozinha. Ali onde cai a cinza, onde a roupa seca e escorre, onde algumas marquises e varandas fechadas foram tapadas com móveis, tábuas de passar a ferro, mecanismos velhos, caixas de diferentes cores, a máquina de lavar, coisas amontoadas por gerações que forram agora, num mosaico aleatório os vidros traseiros. Porque para ali já há muito que se desistiu de olhar, para onde pinga a roupa de muitos andares, a cinza da festa brasileira, do (homem ou mulher do quinto) Ali a parte de trás, da nossa cidade, o lado B do nosso país: a ilha. Parcelada quando a cinza cai e o velho dos gatos que sai da ilha entre outras coisas para recolher picas do chão - vê no quinto andar traseiras o brilho do cigarro, sem ver quem o fuma, ao longe, de baixo para cima, o cigarro parece um farol – intermitente, ao longe, em Gaia, para quem está quase em Espinho, perto da antiga fábrica de fósforos. E, entre os dedos, esse pequeno farol ilumina-se às vezes com uma vida maior, acelerado, no instante em que o fumo é puxado rápido para os pulmões e parece uma estrela prestes a explodir para apagar-se para sempre, fumada até ao fim, apagada. Pode não ser um homem, pode ser uma mulher, a brasileira, o romeno, a travesti negra, nisso a falta de luz nivela, só faróis a tremer ao fundo, no fim dos braços, na pedra, nas varandas, sem luz não se percebe onde acabam as traseiras e começa a ilha, onde acaba a terra e começa o mar, onde é céu ou onde é água. Onde é cidade e onde é a parte de trás. Nisto, o passado confunde-se - O velho dos gatos, acumula anos de trabalho num armazém de pirotecnia, outros tantos na extinta fábrica de fósforos de Espinho, e ele veio entre tantos ocupar, entre outros, a ilha onde cai a cinza e os pingos gordos da roupa, uma ou outra rodilha que cai no zinco, um ou outro pacote vermelho de comida chinesa.

É visto todos os dias, fora da ilha, nas ruas visíveis da cidade. No grande contentor do lixo ao lado da frutaria podemos vê-lo apanhar, entre tangerinas podres e outras que se aproveitam menos mal, grandes ananases que dará para aproveitar mais de metade, feios de mais para estarem nas caixas, fruta que já vem pisada e que os fornecedores não aceitam como devolução – Dará para a sobrinha. Os mesmos contentores onde ao lado recolheu todo o seu mobiliário, três cadeiras onde amontoa alguns casacos que também o lixo e a caridade lhe ofereceram, e uma fotografia da mulher, que enquanto viva, fazia bolacha americana para venderem nas praias de Espinho e depois de Leça. A sua sobrinha ainda sabe a receita e os dois não abandonariam o ofício, não fosse terem de se esconder por causa da fiscalização alimentar, um crime público de que têm de fugir só por ter sido a Europa a cometê-lo, a sobrinha que vai entrar agora nas aulas de empreendedorismo obrigatório – para suster o núcleo com dignidade, dois, será difícil não dizer, quando alguém ao lado do contentor se demora a despejar garrafas no vidrão e o observa, que a fruta não é para ele, que é para os animais. E em que animais pensará? De cima para baixo ou de baixo para cima, como um farol trémulo entre os dedos, o retrato será sempre parcial - o mais parcial. Capta quanto muito um movimento orgânico. Nem sequer entre dois instantes ele é fixo.

A Transcrição Da Saudade

ao meu avô Jorge,

A caneca sobreviveu-te, ainda há copos que vibram na recordação dos teus lábios
Pintados pelo vinho , as cartas evaporam-se num canto onde o pó se esquece,
O teu canto à beira da chaminé nunca será preenchido, venha quem vier, até eu
Me sinto esmagado pela ausência de ti todo, quando concentro o meu peso e o meu
Sofrimento na lareira que crepita com o gotejar da gordura de uma chouriça que nunca
Irás provar, a mim tudo me pareceu gratuito, sabendo que a mim, nem a caneta me
Sobreviverá, do que são feitas hoje as tuas mãos nodosas e onde estão as batatas
Que tu arrancavas da terra, não serei egoísta ao ponto de dizer, morreste-me,
Porque na verdade, morreste-te, a ti e a tudo o que era teu, com eu, uma
Extensão do que extraíste da terra e apesar da tua surdez se ter tornado no
Eco da eternidade, cá me estás, mesmo que nem uma palavra, nem uma só história das
Que tanto gostavas de repetir, só a sombra da tua presença, à lareira, nas noites frias
Destiladas a fogo e vinho, pela vida fora, até que nem o cansaço te cedeu, só a vida,
Tu sempre maior e mais forte que tu próprio, nem te sentiste, nem te acreditaste,
Ainda hoje estás certo que eterno, também eu, aqui te sobrevivo, entre um vazio
E outro, que a vida é isto, esvaziar, despejar no nada tudo quanto se é, até não haver
Mais que se seja, tudo tão certo como a garrafa que se encerra na mão e já vazia,
Tão seguro como a mão que a empunha e sem se perceber a larga por um instante
E a garrafa partida, a tornar o seu vazio do tamanho do mundo, aperta-me a mão,
Mesmo que tu já nem mão, tu todas as mãos que nunca serão a tua, como foram
As mulheres aquela que nunca foi, percebes-me a estas horas antes da primeira caneca,
Falemos na linguagem das cartas, deixo-te roubar, contigo perder nunca será perder,
Só perdendo-te, eu parto, baralha tudo como se fosse a minha cabeça, tu sabes,
Sempre decifraste bem a cor dos meus olhos e o sofrimento da minha carne dissecada
Pelo vício dela própria, digo-te que nunca chorei, porque nunca te vi chorar, os homens
Que vivem na vida, não choram, sangram, aí eu falho-te, sou muito espectador,
Toco demasiado sem tocar verdadeiramente em nada, crio tanto sem direito a espaço,
Nem uma fruta, só a vontade, talvez, um corte, uma fatia de queijo de manhã, na transição
Da ressaca, na morte da juventude, enquanto o Sol, lá fora, indiferente a todos os ossos,
Nos envelhece, nos separa com dias, tempo, invejoso do tamanho da memória,
Acreditaste mais no poder da terra e da carne, mesmo que a cara salpicada de água
Nos Domingos e o adro na tua presença, a olhar para as mulheres de lenço na cabeça
Certas dos pecados, decorando um arrependimento para a representação de teatrinho,
A caneca sobreviveu-te, o vinho é que não será nunca a mesma coisa depois do inferno.

05-02-2014 Coimbra 

A quien pueda interesarle

Los domingos son elegidos siempre por los asesinos para cometer cualquier homicidio. Nadie se imagina que un asesinato está ocurriendo si los pájaros ríen, insoportables, desde temprano. Ningún vecino escucha la sentencia ni las últimas palabras de quien ruega por su vida. El diario lanzado por el repartidor golpea la puerta con noticias vestidas de amarillo, sabiendo que al día siguiente deben vestirse de rojo. Pero ningún periodista se da cuenta de lo que pasa. Nadie escucha un llanto ahogado incapaz de romper ventanas. De llevarle una primicia así al editor, este se reiría en su cara. Lo llamaría pusilánime, débil. Un periodista denuncia crímenes inusuales, vistosos, que ostenten alguna huelga de hambre fallida o una cinta de celebridades jadeantes fingiendo que pueden hacer algo perdurable. La guerra les sirve mientras no sea resuelta, cuando hay niños obligados a crecer muy rápido, cuando un país puede costear salir en la portada. Cualquier tortura pasional resulta aburrida pues ocurre todo el tiempo. Esto sucede porque los editores tampoco se maravillan con atardeceres; si han visto un crepúsculo en un periódico, probablemente reportaba que el mundo se estaba acabando ante un matiz tan rosa o un cielo tan aplastante. A nadie le interesa.

Dentro de la casa, se hallaban el verdugo y su víctima. Ella chillaba, tratando de buscar opciones que la rescataran de la ineludible muerte. Él sostenía el arma entre sus manos como a un bebé, para hacerle ver que no había salida. La gente no entiende que asesinar a alguien exige un esfuerzo mental grande. No es sencillo tomar una decisión como esa. Los periódicos reportan asesinos como seres calculadores, aunque no se haya visto en este planeta un ser más desesperado. La sierra se empapaba de gruesas gotas. El verdugo, al ver a su sierra llorando también, se sintió más determinado. Las yemas de sus dedos presionaron ambos muslos de la víctima, como si precisaran palpar el orden, la piel, la realidad. Rodeaban las rodillas, sin tocarlas, midiendo el diámetro y calculando lo que debían cortar. Unos cuantos centímetros sonaban bien.

Tomó la sierra y presionó, mutilando con diligencia cada una de las piernas. Movía sus brazos de un lado a otro a pesar de las náuseas. No pensó que matar a alguien era similar a un trabajo pesado. El homicida quería finalizar la jornada para echarse a llorar hasta quedarse dormido; parecía que nunca iba a alcanzar el hueso y terminar con todo. Solo de sus ojos escapaban lágrimas calientes, estaba muy cansado; era el único inconforme con la gestión. Ella no decía nada, lo entendía. Un periodista hubiese reportado gritos y escribiría que la víctima murió al instante para no herir a su familia. La transacción, aunque simple, tomó casi cuatro horas. Nadie entiende que el muerto asimila que se está muriendo. Ningún vecino entiende que la víctima no lamenta morir. El asesino deja la escena porque ha causado suficiente daño. El editor tampoco sabe que regó las plantas antes de salir.

El cuerpo necesita ajustarse al pensamiento. Él le hace falta. Todo le hace falta. Todo lo extraña. La víctima siente lástima por sí misma antes de convencerse de que puede superar una pérdida como esta, o al menos vivir con la resignación de un amor irreparable e intenso. El cuerpo siente la ausencia. Ella ha perdido sus extremidades, las partes que hizo indisociables de sí cuando conoció a su verdugo. Duda que vuelva a caminar aunque desee hacerlo. Le ha quitado las piernas. El desamor suele desintegrar sueños compuestos: ya no podrán caminar juntos los dos.

Ninguna sección del periódico se atreve a decir que la víctima no es víctima, que disfrutó ser magullada, o que fantasea con la sangre y sus burbujas emergentes. El editor rechaza una historia donde se prefiere morir antes de salir ileso. Nadie entiende a los pedacitos gritones restantes ni al ruido hambriento, necesitado de cariño. Nadie sabe qué escribir.  

A NUVEM

Odysséas Elytis
Em Maria Nefeli
Tradução: Manuel Resende

Eu vivo dia a dia – que o futuro, não o diviso.
C’ uma mão amarroto o dinheiro, com outra o aliso. 

Vês, as armas têm de falar nos nossos tempos caóticos,
’Té temos de dizer amém aos «ideais patrióticos». 

Que me fitas tu escriba que farda nunca vi usar?
olha que fazer dinheiro também é arte militar.

Não me venhas com insónias e amargos versos vários
ou pichar paredes com slogans revolucionários.

 Para os outros, um intelectual é que hás-de sempre ser
e só eu te amo: refém dos meus sonhos hás-de viver. 

E se em verdade o amor é como dizem «comum divisor»
eu hei­‑de ser Maria Neféli e tu das nuvens o Empilhador­