Lembrei-me de jean genet

Lembrei-me de jean genet
mas já não se pode passar visita a giacometti

Com um ligeiro inclinar do pescoço
fiz o que pude dei o braço
a torcer a todos os deuses menores

Há umas décadas atrás
seria tão ágil de veias tão leve
gasto e ventoso

Estou certo que dispensaria cadeiras
e estaria solto em sítios

os dentes estariam mais espaçados
a simpatia do pó seria evidente

Levanto-me

Não sou jean genet
não sou giacometti
nem sequer morri

Suponho que estou aqui
mas se me tocassem desfazer-me-ia.

Cegueira, razão e persistência

121. CEGUEIRA

Um homem avançava num passo regular. Um velho ao volante de um carro de luxo lançou-lhe um olhar desconfiado. Uma quarentona à janela de um rés-do-chão espreitou-lhe a juventude desaparecida. Um jovem desocupado encostado a uma esquina, pensou se valeria a pena pedir-lhe dinheiro. Um poeta sentado numa esplanada reconheceu-o e acenou-lhe. O homem continuou a avançar num passo regular.

137. PERSISTÊNCIA

Entrou na rotunda com apreensão e circulou-a com cuidado. Circulou-a, circulou-a e circulou-a. Ainda hoje a circula, à procura de uma saída.

154. RAZÃO

Admirava todos os e poetas e artistas em geral, homens e mulheres capazes de enlouquecer. Ele não tinha essa capacidade, era completamente louco.

GYÖRGY PETRI, Inverno de 80

Tradução de João Miguel Henriques et al.

Terei quarenta e nove
no final da etapa
que agora começa. Não sei
que padrões de cuecas, que bugigangas
estarão então na moda.
Terá passado já muito tempo
desde o tempo em que fui jovem.
Esse homem desgastado
terá ainda compromissos? Quais?
Em que língua
lerá o jornal?
Dormirá com a mesma mulher
que hoje acorda ao seu lado? 

 

FLAN NAPOLITANO

Os satélites azuis giram à volta do átomo, tornam-se cor de baunilha quando adormecem sem deixar de girar. À volta do núcleo são quentes como animais, adoçam a pele que é um começo … À volta do núcleo as células riem-se, como marinheiros na luz molhada. Na rota que fazem, a luz bombeada por um sol interno, um grande sol central. O sangue bombeado pelo coração. A tua pele sabe a luz – dizia Crocodilo mais tarde. Cada vez mais quente a pele procura outra pele: um limite maior, um começo.

 Podia adivinhar a obsessão seguinte e no ato de a prever, evitá-la. Um novo caminho com uma obsidiana quente no bolso. Violeta de Gand vê o homem do outro lado da rua. As manchas (Porquê?) Na pele e debaixo na carne. É uma observadora atenta, está a criar um homem porque o vê. Sente segurança… A corrente do sangue que avança seguro. Na sua respiração sente a respiração do homem que está do outro lado. Debaixo da sua pele os satélites azuis: dançam se o núcleo dançar, fogem se o núcleo fugir, morrem se o núcleo morrer. Riem-se, agora riem-se com mais força.

A tua pele sabe a luz…

 Se giravam à volta do átomo era porque aí queriam estar – o mesmo era dizer que eram completamente imprevisíveis, honestos e livres: entregues aos braços, habitavam o desejo desde o núcleo, soprados de vida – tudo aquilo que gira dentro, que nos liga ao que está fora. Os satélites azuis, nos músculos dos remadores do navio de Argo. Cada estrela, um remador que avança pelo céu e debaixo da pele. A constelação agora debaixo da pele. O navio de Argo seguro na corrente sanguínea.

 Os astros dentro do corpo, só mensageiros de um Sol cada vez maior –A mensagem era só a chegada de cada mensageiro – O chegar seguro de cada mensageiro. A sua rota também mensagem. 

Não diziam nada quando chegavam.

Uma constelação mulher, a luz azul da saia.

Pontilhado o seu corpo no céu. Se ela quiser entrar no barco que avança pede aos remadores que parem.

 Acende um arco iris debaixo da pele. Uma galáxia homem aproxima-se. O fio das estrelas que forma a ereção. A cauda dos cometas mais acesos. Ali uma galáxia autista, minga se ninguém a vier salvar. Os remos do navio de Argo avançam como ambulância.

Quem a lamber dirá que a pele sabe a luz, a uma janela sempre aberta, a suor, a partida, a estrada, ao sal da potência humana. Um olfativo diria: nunca os satélites dançaram tanto - Nunca as células se riram tanto - A mesma dança no corpo, a mesma dança no céu.

Viu-se ao espelho, mas num homem – Quando os olhos são o espelho da alma e os amigos o espelho de deus. Não o vidro trabalhado para refletir, o eco das formas e cores que lhe apresentam. Um homem – Ali à frente, a comer um flan napolitano – Entre uma paragem de autocarros, a banca de um vendedor de batatas fritas. O óleo quente, a ferver – Parece uma explosão. Eu sou aquele (Pensa Violeta de Gand).

Eu sou aquele (enquanto olha para Crocodilo) quero que ele esteja dentro de mim.

Temos países, economia, controlo ideológico da economia, alguém que a controla – Segue leis, ouço as vozes daqueles que as fizeram. Mas quero que ele esteja dentro de mim.

Um pudim negro. Os dentes brancos do roedor – Podia ser uma alegoria – Desenvolvê-la – Ser seduzida pela minha ideia. Aceitar o chamamento de um brinquedo interno e aí ficar – na injeção paralisante, inibidora que é esta minha ideia. Parece que estou a nadar, mas estou a tornar-me uma concha – A pérola sedutora da minha ideia. Fecho-a e neste fechar (ao mundo) não ver o espelho. Fechar lento.

Giro à volta do que quero. Ali a linha dos satélites a formarem um veio azul. A potência do pulso. O meu coração gira à tua volta. E na sedução desta frase adormecer. Prever o futuro é unicamente construí-lo. O homem com manchas na cara é agora o meu espelho. Despersonalização, identificação: O sentimento de pertença a um núcleo… Há um novo animal que seduz: um homem que chamaram Crocodilo. Acabou de sair da prisão. (começa a fábula) Submergem os seus olhos nas águas sujas de uma vida estanque, uma história imóvel, breve, toda a potência bloqueada (uma vida menor). Olhos desvitalizados, seguem um pathos natural que ele parece não controlar: inibir toda a potência, submergi-los, afogá-los numa memória, a consequência natural. Não que se fechem para sempre, só que pareçam sempre fechados – Abertos só para dentro. Eu sou ele (Pensamento de Violeta). Vagueia o Crocodilo entre a barraca das batatas fritas e a paragem de autocarro. Submergido num lago interno. Estanque – comer, ir para um novo sítio, começar do zero. Violeta observa-o. Presa potente, sente os satélites mudarem de cor, vermelho-deserto, giram, giram mais rápido, mudam de cor, na expansão do desejo estão mais quentes - Eu sou a expansão do meu desejo, habito-o. Observa o seu espelho – eu sou ele. As suas manchas na pele (feitas de mudança) – por isso na prisão chamavam-lhe crocodilo. É assim:

Meteu-se com gente errada. Os satélites parados, inibidos – mas agora dança numa água nova – satélites de água giram à volta dos átomos da água – Giram e por isso são água. 
……………………………………………………………………………………
Crocodilo avança por uma estrada que não existia quando ele entrou na prisão (ou então surgiram novas casas, novos locais comerciais e agora não a reconhece). Caminha ninguém o espera. Pode ir para uma casa onde tem familiares num grau afastado, ir a casa de antigos amigos, pedir um emprego a este ou aquele. Vai até à central de camionetas. No caminho vê uma casa pintada de cor-de-rosa, uma cruz no telhado ao lado de uma antena enferrujada (parece um filtro). É um tabernáculo, uma sede de seita religiosa com contornos obscuros, um germinal de fantasmas aborrecidos nas reuniões de domingo. Sai música de dentro do tabernáculo – E na parede está escrita uma frase – És pó e pó voltarás a ser – Crocodilo olha para a frase pintada a negro no fundo cor-de-rosa. Os seus astros aceleram, satélites rápidos, há tanto tempo não sentia isso. Ri-se sozinho, descontrolado, há tanto tempo que não se ria e agora um riso animal, sincero, cheio. A expansão torna-o doentio, ri-se sozinho. (fábulas mas com pessoas, os animais mais honestos – até o falso moedeiro era honesto) e aqui Crocodilo ri-se. Riso paralisante, assimbólico embora dentro dele possamos ver uma alegoria nova. Riso que se torna negro e duro como um pudim negro. Quero comer este pudim com os meus dentes brancos – mas este pudim está fora de prazo. Foi feito no tempo de Homero. E eu com tanta fome. Eu que sou pó e vou voltar a ser pó só quero comer este pudim negro (é o meu destino – procurar todas as trevas – comer os pudins mais negros). Procuro os pudins mais antigos, cozinhados nas águas estanques do Nilo. Germinal de bactérias do Antigo Império. Pudins negros onde não entra a luz, onde não há nenhuma esperança. Pudins obscuros, completamente negros. Preciso de botas negras para comer este pudim. Tenho fome de negro. Posso entrar nesse tabernáculo com um único livro sagrado, carcomido, as páginas amarelas. Obsessão, sair dela. Entrar no templo e trincar os braços gordos dos fiéis - É um crocodilo de instintos rápidos. E ali, a dois quilómetros da prisão, o pastor dessa igreja telefona para a polícia. E no mesmo dia voltar à prisão. Ideia sedutora a da perda. Ou então continuar a caminhar. Começar uma vida nova. Ou então ser pó (e voltar a ser pó) comer o pudim negro feito de pó (o pó mais negro) e a água suja da literatura mais morta. Pudim negro e alegórico de tudo o que é Antigo e mau. O pudim dos erros humanos. O pudim cozinhado pelos piores traidores, falsificadores de moedas, ladrões, piratas alexandrinos, assaltantes de pirâmides, traficantes de relíquias, homens que destroçaram e acabaram com outros homens, o pó mais negro dos homens mais negros. Na parede cor-de-rosa, a frase cada vez mais viva, como um néon bailarino, as letras dançam. Mas Crocodilo – resumo: era um cocainómano, foi preso por assaltar uma carrinha de transporte de valores. À Prisão vinha vê-lo a sua irmã. Uma vez por semana. Trazia-lhe algum dinheiro que dava para continuar a consumir. Mas a irmã trazia cada vez menos dinheiro. Ele fazia pequenos trabalhos, limpar as celas dos outros, ir-lhes fazer recados. Um feudalismo dentro da prisão. E aí começa a fábula, Já estava a dever muito dinheiro. Isso aumentava a dependência. E o aviso, uma semana para pagar. A sua irmã vem, pede-lhe dinheiro, mas não tem. A irmã agora tem de olhar pela vida dela. Não consegue o dinheiro da dívida dentro da semana. Implora-lhe. Nesse mesmo dia vê o que acontece aos que não a liquidaram. Água a ferver em cima do corpo, os devedores castigados no pátio da prisão. O grande balde de ferro. A água a ferver. Os gritos. Falta um dia, está desesperado, amanhã vão chamá-lo. Nesse dia um ultimato, diz que vai fazer tudo, pede mais dois dias. Não consegue dormir. Chamam-no, levam-no para o pátio, despem-no. A partir desse dia e pelas queimaduras com que ficou no corpo, a pele áspera, as manchas para sempre, passaram a apelidá-lo de crocodilo. Mais dois anos e quatro meses e saiu. Aí estava em frente ao tabernáculo religioso. Continuou até à central de camionagem. Entrou num autocarro aleatório. Chegou ao destino. Não reconheceu pelos vidros a cidade onde tinha chegado. Resultava bem. Saiu da central, caminhou pela cidade. Contou as moedas que tinha no bolso. Estava ao lado de uma paragem de autocarro. Viu a vendedora de pudins, na barraca ao lado da paragem. Flans napolitanos, tinha fome, comprou um. Estava com o copo de plástico na mão, o pudim a meio. O pudim da cor do sol. Do outro lado da rua o sangue ri-se ao chegar aos dedos: Antecipa já a chegada de outros dedos. Crocodilo prevê que alguém vem falar com ele. 

Violeta de Gand observa-o - ele sou eu. É o meu espelho, um reflexo, também eu. Ali o crocodilo a comer o flan, Fora de prazo talvez, mas de um passado melhor: um flan renascentista da cor do sol. O caramelo torrado a derreter na boca de Crocodilo. A baunilha parecia drogá-lo. Os satélites de dentro a girarem mais rápido. Do outro lado da rua, a mulher que o observa como alguém que já lhe pertence, que é seu, e vê naquele momento algo que já passou há muito tempo na vida dos dois. O flan napolitano, o seu sabor transformado na memória.

 

*A personagem principal deste texto é desenvolvida no conto: “Crocodilo: Narrativa de duas faces como as moedas do Vaticano” em Créme de la Creme: Porto, 2011.

Contra o optimismo

A base do optimismo é simplesmente o terror.

Oscar Wilde 

I don't believe illusions 'cos too much is real

The Sex Pistols 

§

 Leio algures: «As pedras são degraus de outros caminhos...». Nunca fui muito com este género de ideia. Pedras são pedras em qualquer parte. Não acredito que exista alguém que goste de caminhar por um caminho cheio de pedras. Podem ser muito optimistas e mais tarde pensar que são «degraus de outros caminhos...». Mas, enquanto percorrem o caminho, duvido que não pensem: «Ora aqui está uma boa merda.».

§

Não foi necessário ler Cândido de Voltaire para saber que sou pessimista. O optimismo nunca me atraiu. Sempre o considerei sem sal. E vendo bem as coisas é. Por exemplo: a chamada grande literatura é, toda ela, pessimista. Onde é que existe optimismo nos livros de Kafka, Dostoievski, Céline, Mishima, Hemingway, Faulkner, Cossery, Bernhard? Não me lembro. O mundo é irremediavelmente absurdo e está irremediavelmente condenado. E a esperança? A esperança é outra coisa. Talvez um dia fale sobre ela. Mas não associo esperança a optimismo. Um pessimista pode ter esperança. É possível. Só que a esperança não o cega. Por outras palavras: um pessimista é alguém que tem os olhos bem abertos.

§

Os pessimistas são sempre mais criticados do que os optimistas. Se um pessimista chama a atenção para possíveis obstáculos na vida, há logo alguém que exclama: «Ai! És tão pessimista!». Mas o contrário não se verifica. Ninguém diz: «Ai! És tão optimista!». Ou: «Lá vens tu com o teu optimismo!». Os pessimistas são discriminados. São acusados de ver obstáculos em tudo, quando na realidade isso (o facto de ver obstáculos) só traz vantagens: os pessimistas são mais rápidos a desviarem-se deles. Os optimistas não. Tropeçam, caem, lamentam-se, depois vão ler Paulo Coelho e esperam, com isso, aprender a "caminhar".

§

 Não acredito que a leitura de Nietzsche ou Schopenhauer tenha influenciado o meu inerente pessimismo.  Li-os pela simples razão de estar na moda, de ser aquilo que era esperado de mim. Andar com o Anticristo no bolso de umas calças de ganga rafadas fez milagres junto das raparigas mais susceptíveis. Vestir o preto, também. Mas voltemos ao meu pessimismo. Não sei qual será a sua razão, origem. Sinceramente, não me interessa. Mas sei que é inerente.

§

O meu pessimismo explica-se sem dificuldade: a minha total descrença na bondade humana. É claro que há excepções: conheci, na minha curta vida (trinta e seis anos até ao momento em que escrevo estas linhas), pessoas muito boas, altruístas até à medula (embora ainda não tenha resolvido em mim a questão entre altruísmo e egoísmo, pois considero-os indissociáveis, numa relação simbiótica). O oposto também é verdadeiro: pessoas más não faltam. Conheci umas quantas e suplantam, sem dúvida, as boas. Exemplo: éramos crianças e jogávamos à bola no parque infantil do bairro. Sempre que uma bola ia parar a um certo e determinado quintal, surgia uma faca — vinda não sei de onde  — que a rasgava. Quem é que rasga, destrói, uma bola com a qual crianças brincam? Lá no bairro não havia só essa criatura. Havia uma outra, muito mais cruel, que, para além de rasgar bolas, também cortava as asas às crias dos pássaros que apanhava a fazer ninho nas “suas” árvores e no beiral da “sua” casa. Vi, tudo isso, com os meus próprios olhos.

§

 Se tentasse justificar o meu pessimismo, com uma base filosófica, seria incapaz. Ainda não li o suficiente para estabelecer um “programa” — algo que parece ser muito necessário para resolver tais questões e para que os outros nos levem a sério. No entanto, penso que ele, o meu pessimismo, é indissociável da minha precariedade existencial: saber que a vida é um milagre e saber que ela é um absurdo. Viver nesse limbo.

§

 Pessimismo pressupõe sofrimento? Há quem acredite que sim. Cioran acreditava que se podia ser pessimista sem sofrimento. Para defender a sua posição, Cioran estabeleceu algumas linhas de pensamento. Uma delas é deveras interessante: com as desilusões criar um sistema. O sistema do pessimista é baseado nisso mesmo: nas suas desilusões. É claro que poderemos contra-argumentar dizendo que para ter desilusões o pessimista teve, em primeiro, que ter ilusões. É um argumento válido, com o qual não concordo. A desilusão é, no pessimista, sempre a priori.

 §

O discurso político português (principalmente do Governo e de alguns representantes do Estado) foi invadido pelo optimismo. E isso deixa-me a pensar. Como considero que todo o discurso político é falacioso, considero o optimismo — inerente ao discurso — falacioso. É claro que esta ideia aplica-se, também, a qualquer tipo de optimismo. Pois o optimismo é isso mesmo: uma falácia.

§

 Por que razão o pessimismo? Porque o optimismo assim me obriga. O optimismo (que eu atrevo-me a designar de hipócrita) mais não é do que um mecanismo coercivo. O optimismo, nomeadamente aquele patente no discurso político, só serve um propósito: acalmar a massa, submete-la a uma vontade que é, muitas vezes, pouco clara. Todo o discurso optimista é falacioso. Ao contrário do optimista, o pessimista não recusa a realidade tal como ela é. Assim, ser pessimista, escolher o pessimismo, é um acto de resistência.