Sobre cafés

Exemplar de espécime de coffee shop britânica que não o Café Costa ou o Café Nero

Exemplar de espécime de coffee shop britânica que não o Café Costa ou o Café Nero

 

Em Inglaterra, da primeira vez que bebi um americano, basicamente um grande copo cheio de café que tende a saber à cevada que a minha tia-avó bebia, senti-me duplamente enganada. Não só porque achei que nunca me ia habituar a beber um café que me pareceu ser o equivalente emocional de uma enorme nostalgia do chá, como me pareceu obsceno ter de pagar mais de duas libras para beber um café.

De modo que guardas armados de metralhadoras e gigantescos pastores alemães atravessavam os corredores de Heathrow e eu vim cá para fora beber café de um copo de papel enquanto me lembrava de uma música do John Lee Hooker que inclui a expressão “drinking coffee from a paper cup” imediatamente seguido de um desdenhoso “lord have mercy” (a música faz parte da inenarrável banda sonora da série Homicide, o ensaio de David Simon para o The Wire, também passada em Baltimore). 

Album 2 cd ; Together (1989) Lyrics;Away from the city that hurts and knocks, I'm standing alone by the desolate docks in the still and the chill of the night I see the horizon the great unknown my heart has an ache it's as heavy as stone with the dawn

 

Há na maior parte das coffee shops inglesas uma diferença de preço consoante se consuma o café dentro ou fora do estabelecimento. Confesso que isto me faz uma enorme confusão, que tem tanto a ver com a suspeita de que há uma certa ofensa à hospitalidade que todo e qualquer espaço vagamente semelhante a um café deveria cultivar, como em termos de pegada ecológica não me parece fazer muito sentido não sair mais caro a um indivíduo beber café de um copo de papel com uma tampa de plástico do que de uma caneca. Por outro lado, percebo que se se vende meio litro de café a um cliente é complicado mantê-lo dentro do estabelecimento pelo tempo que leva a beber. 

A minha segunda tentativa com café americano acarretou melhoras significativas, que na verdade nada tiveram que ver com café. Há em Oxford uma livraria de quatro andares que ocupa um quarteirão, a Blackwell’s. No segundo piso há quase todo um andar dedicado a clássicas, uma versão do paraíso para qualquer classicista. Durante a minha primeira semana na cidade acabei por passar bastante tempo nesta secção. Imediatamente por baixo há um café Nero, que a par com o Costa e com o Starbucks, é uma das grandes cadeias de coffee shops que existem um pouco por toda a Inglaterra. Tenho uma relação ambivalente com coffee shops que vêm às cadeias. É verdade que em Lisboa beber uma bica é bastante igual em todos os lugares, não mais num Starbucks, se se pedir um expresso, do que no Café Luanda, mas é possível beber um café em cidades tão distintas como Londres ou Oxford ou Birmingham ou Manchester com a impressão de que estamos sempre no mesmo lugar. A impressão arrasta com ela outra, a de uma falsa familiaridade. É possível estar em casa em qualquer lugar porque os mesmos rótulos dominam a paisagem. Na verdade, chegando ao Sá Carneiro no Porto, topa-se com um café Costa. Tal como tínhamos topado com um Costa horas antes, em Gatwick. Na minha última viagem, este aeroporto tentava compensar isto de uma maneira vagamente esfíngica, apresentando também um rancho folclórico como atracção turística alternativa (ao Costa, claro).

Café Luanda (em Lisboa), de outra forma não relacionado com nostalgias colonialistas.

Café Luanda (em Lisboa), de outra forma não relacionado com nostalgias colonialistas.

A maior parte das coffee shops em Inglaterra fecham às seis da tarde. Quarteirões de portas fechadas exibindo uma melancolia rigorosa de repartição de finanças em cidade de província. No Inverno esta hora de fecho torna-se particularmente penosa. Não só porque as coffee shops que não vêm às cadeias são bons sítios para ler ou trabalhar, mas porque no meu caso, um dia de trabalho normal começa às 9 da manhã e termina por volta das 18. Mas assim que atingirmos o pino do Inverno é de noite às quatro da tarde. É como visitar uma cidade fantasma. Há estúdios e bibliotecas que se acendem assim que anoitece, sobretudo se caminharmos por certas zonas da cidade, mas assim que chegamos às ruas principais, os cafés, as livrarias e as lojas estão fechados. O pub ao fim do dia é a coisa mais parecida que existe com um café. O pub é uma espécie de limbo, onde não é suposto ir-se para jantar (embora isto varie bastante de pub para pub) e onde não é suposto ir-se beber um copo depois de jantar porque a maioria fecha por volta das dez e meia da noite.

Ao fim de algum tempo a viver numa cidade uma parte da nossa experiência nessa cidade são os sítios onde bebemos café. E esta não é uma parte menor. De manhã nos últimos instantes antes de irmos trabalhar ou ao fim do dia com os amigos, os cafés são uma parte importante da nossa vida e da paisagem das cidades do sul da Europa. Lugares que temos para ir. A expectativa dos minutos antes, ou de saber que naquele dia combinámos um café com alguém algures. Convidar alguém para beber um café em determinado café pode dar de barato uma série de pistas acerca de quem somos. E um sinal de que nos estamos a tornar amigos de alguém é se perguntamos ou se recebemos a pergunta sobre se queremos beber um café mais logo. Nunca se bebe um café com alguém que não nos interessa depois de um longo dia de trabalho. A vida está intimamente ligada às geografias que construímos em torno dos cafés. Imperceptíveis, discretas, elas estão tão ligadas à nossa rotina, como à nossa vida emocional. Daí a Ruy Belo lhe ter dado para escrever “e fui feliz em cafés de província onde me vi sentar”.

Ruy Belo sentado, alegadamente depois de ter bebido café.

Ruy Belo sentado, alegadamente depois de ter bebido café.

smith & wesson .22

velha smith & wesson .22 ela engasga
agarra o dedo no gatilho a cada tiro
o coice fuma, faísca no metal,
olhos se contraem ao som ardido e o tiro
 explode na parede, sopra a cal; 

revolução de 32, a colher
que mexe o chá
num maremoto 

e veio a mim esse revólver
envolvido com seis balas num lençol,
relíquia de um distante
tio-avô 

e veio a mim
           segredo de encerrar a violência
má ferrugem perto do esmaltado           

todos guardam souvenires
rotulados na memória de aventura
ou outra arte tão
                      espúria
e sem dizer conveniente
a noites e fogueiras e conversa
que requentam feitos duros
            agora que o sol lhes parece ―
york a ricardo ― demasiado luminoso. 

O "investidor" ou o fim do capitalismo financeiro

Li há poucos dias no jornal Público que o “investidor” Joe Berardo reduziu a sua participação numa determinada empresa para 0,53%. Esta frase aparentemente simples, inscrita numa figuração humana, portuguesa da madeira, estranha (opaca, redutora, com uma fonética desviante – espécie de linguista rebelde – e, mau para ele e muito mau para os portugueses, endividada em centenas de milhões de euros), desfez algumas das minhas dúvidas sobre a morte do capitalismo financeiro mais purista.

O século XXI trouxe dados económico-financeiros bastante novos, que de uma ou outra forma giram, na minha perspectiva pouco erudita, em torno de duas variáveis: a) os fluxos do investimento financeiro mundial abandonaram parcialmente a órbita ocidental, com muitos países emergentes a conseguirem captar pela primeira vez o dinheiro dos fundos institucionais e especulativos; b) a Europa, velha e cansada Europa, e o Japão mostram-se incapazes de compensar os desequilíbrios demográficos, esmagando o Estado Social com o peso dos “improdutivos” (na lógica que criaram de inclusão/exclusão), mesmo aumentando impostos e baixando os abonos sociais. Este novo statu quo vai alterar muita coisa, alterou já muita coisa. Nem todas para pior, creio que se reforça lentamente uma linha ética desenvolvendo novos cuidados pela alteridade, o que está fora de nós mas não deve ser aniquilado, do outro humano ao meio ambiente. Por isso se expandem continuamente as éticas animais e ambientais, mas também neo-humanismos estruturados em torno da compaixão (em geral não especista).

Este Ethical Turn deve-se, como disse, a mudanças estruturais nas sociedades contemporâneas. Mas também a uma nova lucidez que ilumina o canto obscuro dos oportunistas, mostrando como muitos dos “heróis capitalistas” são afinal uma versão quase caricatural dos personagens vencidos, em tragédia de alguidar, das telenovelas. E estes personagens, incarnando um neo-picarismo, constituem a outra grande condição da falência do capitalismo mais amoral (desregulado e discriminatório). Já ninguém, nem os próprios “mercados”, se deslumbram (fizeram-no muitas vezes até à medusificação) com indivíduos que atiram ao ar milhões de euros, pagando para ver de onde sopra o vento. Sem verdadeiro conhecimento de causa, sem prudência, sem qualquer cuidado pelas repercussões sobre os humanos mais frágeis, sem preocupações ambientais... Como numa aposta de póquer onde se mistura bluff e sorte, nada refreava o seu entusiasmo egocêntrico e vontade de domínio (mesmo, como se revelou ultimamente, dentro da própria família).

A mais recente Aufklärung, misturando racionalidade e moral, como em Kant, traz também para o primeiro plano da acção uma dimensão política. No sentido em que as democracias avançadas, desejando manter o modelo capitalista assente numa mistura de iniciativa privada e intervenção do estado no desenrolar do processo económico, já não pactuam (tanto) com “investidores” parasitas (metáfora estritamente biológica), fanfarrões da finança. Fazendo circular dinheiro quase a partir do nada (a maioria do que está em circulação é fabricado pelos bancos com algoritmos que criam e gerem dívidas, ele representa muito pouco a economia real), esses indivíduos, sozinhos ou em bando, procuram o máximo de lucro no mais curto espaço de tempo, em modo de rolo compressor. Este modelo operativo omite qualquer racionalidade ou ética que ultrapasse o simplismo e egoísmo do ganho puramente quantitativo. Por exemplo, nenhum dos personagens se preocupará com a devastação económica ou ambiental que as suas apostas financeiras possam provocar (temos visto isso com uma clareza cristalina em alguns bancos portugueses). Por isso, creio que muitos subscrevem este postulado: “ou controlamos os ‘investidores’ ou  falhamos o desenvolvimento da democracia” (que significa a falência da própria democracia, já que ele só sobrevive evoluindo).

É neste contexto que perante a notícia do Público me apetece escrever uma carta de esclarecimento (a um bom jornal generalista), dizendo-lhes que o caro Joe (talvez o possa tratar assim, agora que vou pagar parte das suas dívidas) não é um investidor, antes um especulador oportunista incapaz de pagar o que deve. Joe não investiu ou investe, Joe apostou e ganhou enquanto o mercado financeiro andava estupidamente frenético, aquecido pela fogueira da ganância e da ignorância, e acredita que Branca de Neve e os Sete Anões gerem um Offshore ou a Montanha Mágica é um livro para crianças. Ele apostou e perdeu quando se deu o Economics turn, acompanhado do Ethical turn a que me refiro acima, ele é uma figura arcaica, anacrónica, sem dinheiro ou poder visível. Mantém um lastro de VIP tricotado pelas revistas cor-de-rosa mais pimbas; um pequeno espaço televisivo quando esses média unilaterais e já sem fôlego procuram, desconhecendo-o, oráculos ridículos; uma singela coluna num jornal de referência porque ainda há jornalistas que confundem calhaus com cérebros. A par da sua queda, sem a nobreza das tragédias, adequada a um melodrama de cordel, a desgraça cairá sobre um país que durante demasiado tempo adorou estes vendedores de banha da cobra, de ilusões primárias, de pragmatismos estéreis e amorais.  

Um poema do novo livro de Patrícia Baltazar, «Catapulta»

CARTA DE MAREAR

Não há corpo igual. Não há cheiro nenhum no mundo que colmate o meu vício por ti. Não há tragédia igual. Drama incorruptível.
O tamanho de tudo, encaixe perfeito, a dimensão do conjunto e a distância entre opostos.
O que aporto eu? Flores. Mecanismos para deliciar. Sorrisos repartidos ao pôr-da-lua. Fazer ver a leveza do mundo, afinal. São flores que eu aporto. A minha caneta, o meu lápis, a tua vida no meu caderno-para-sempre. Votos de mar a vida inteira.
Leva-me. Está a ficar escuro. Tenho tudo tão pertinho.
Há uma pornografia íntima nisto nosso. Dá água na boca.
Segura-me. Musa.
Porque a pele.
Porque o rosto e as minhas mãos descendo.
Porque nós.
Não fiques, mas não vás. Avião outra vez. Porque tu.
O meu anel está a arder.
Tudo tão muito e eu a tremer como sempre.
A minha esperança é azul. Propagação. Níveis do Inferno.
Flores de Jacarandá no chão.
Gostava de me decifrar. Perdi o relógio, perdi a caneta, não perdi o anel. Ele arde-me.
Era isso! A faísca. No caos, a faísca. Tu. Não esquecer.
Fazer ver a leveza da tempestade. Até doerem os dedos. Até chorar. Até rir. Até dormir descansada no teu peito azul.
Comer-te.
Orgasmo.
Não esquecer.


Catapulta, o mais recente livro de Patrícia Baltazar e da do lado esquerdo será apresentado no dia 27 de Setembro, pelas 18.00 no bar A Barraca, em Lisboa. A apresentação fica a cargo de Miguel Martins. Fica a sugestão.

 

Dois tipos de poetas

Na gare de Lyon ouço música pop 
Não sei o que faço aqui com os 
guichets preenchidos de perguntas 
                                  Em que lugar? 
              Qual o cais para Grenoble? 
E espero, como tantas vezes. 
Jornais, revistas, sanduíches 
Humildes balcões húmidos repletos de publicidade desinteressante 
Viagens circulares sem destino, de quem espera 
sem correr, sem vontade. 
A mulher de verde com óculos escuros 
O homem de fato a tentar esconder o coçado do colarinho 
O homem de fato a tentar disfarçar as sapatilhas 
O de sapatilhas a tentar arrebatar o porta-moedas da mulher de verde 
Os gritos da velha que não sabe do marido que está mais interessado na miúda loura 
Coca-cola que aqui se diz côcá 
Batatas fritas, frites, frites, 
E o cheiro imundo a óleo 
E espero com os 
miúdos que correm para lá do alcance dos olhos. 
Os papéis voam-me 
São os aviões na gare de Lyon 

À minha frente, enquanto aguardo o autocarro, 
lê triste um livro 
- verso foleiro, mas o rosto era esse. 
Não percebo o que lê. 
Triste porque parece 
não que tenha a certeza. 
Está na idade de ler livros tristes. 
Com as mãos a vibrar lentamente sobre páginas antigas 
As palavras sussurrando-lhe ao ouvido 
Cenas imaginadas, mais ricas do que o próprio texto
Mais húmidas do que a chuva 
Ou o balcão imundo 
Como se fazer-lhe mal fosse um primário desejo. 

Apetece sair e dar uma boa caminhada entre os autocarros 
Respirar o ar puro, ou o fumo do escape, 
Ver luz 
Sem a voz repetida do anúncio dos cais de partida. 
Apetece mergulhar numa queda de água 
Bater a espuma nos ombros 
E sorrir um verde imaturo. 
Mas sou puxado de novo para a gare. 
Para a espera em viagens circulares sem destino, com as folhas a fugirem-me, 
sem lugar onde sentar, 
apenas aquele com ela de frente 
segurando o livro como cálice sagrado 
sem fingimento 
só lágrimas e vibração religiosa. 

Se falasse talvez eu desistisse de a admirar 
talvez tudo fosse muito mais normal e a cheirar a óleo como tudo o resto. 
Há dois tipos de poetas, os que trabalham com imagens 
e os que produzem as imagens. Os últimos morrem por dentro 
e nós morremos pelos olhos. 
A única forma de estar verdadeiramente a salvo 
é ser cego 
Uma cegueira que corre em sentido anti-horário 
anti-vida que nos entra pelos olhos. 
Ou então fechá-los propositadamente sempre que doam. 
Quando a imagem fere 
e essa dor se mantém intimamente, como um silvo interminável. 
Se um dia penso numa cor, verde ou laranja, 
não preciso encontrá-la para sobre ela construir um poema. 
Mas se a cor, o verde ou o laranja, vem ter comigo,
então posso cegar-me de dor. 

São quase três horas. 
Olho-a uma última vez para deixar a ferida por cicatrizar 
embutida nos olhos 
por dentro 
- pelo menos por uns minutos, enquanto me durar a vontade.
Não a deixo falar, não a quero ouvir, 
nem mexer. Deixá-la ali quieta é melhor. 
A vida é água fria 
com menos sabor do que a imaginação 
- pelo menos a minha
de onde consigo domar o destino 
e despentear a realidade 
até ela gritar de prazer. 
Deixo-a girar ritmadamente as páginas 
sonhando-a como quero 
- sem que fale, nem me olhe.
Melhor assim, 
sublimada, despenteada, irreal, 
quente. 

Na gare de Lyon não há aviões. 
Há livros e lágrimas escondidas.