Paris à noite revisitado

Ainda ontem tudo era estranho
hoje já me habituei ao barulho das ambulâncias
e às patrulhas da polícia 

viver na grande multitude
também pode ser isto
as coisas irem desaparecendo
com os dias  

acasacados apagamos em cada corpo
uma multitude de vozes e à noite vamos
ao teatro ver as vidas
que o olhar na cidade
teme ou recusa captar 

já não estão aqui os três ou quatro emigrantes
dormindo sobre a grelha do metro
debaixo da ponte de Stanlingrad
onde por vezes ainda nos espia o ténue brilho vigilante
do foco de luz da torre eiffel (ai fel) ou das iluminações
do grand palais (grã pá lê) 

segundo as redes sociais a polícia dispersou o pequeno acampamento
com gás pimenta
especiaria que os portugueses trouxeram da índia

Café Filosófico: Para uma Moral da Ambiguidade

No Café Filosófico de 20 de maio, na livraria Snob, Lisboa, falei sobre uma moral da ambiguidade a partir do livro quase homónimo de Simone de Beauvoir (Pour une moralité de l’ambuiguïté, 1947) que traduzi e prefaciei para as Edições 70. Podem ouvir abaixo o que disse, se bem que o Café se prolongou por bastante mais tempo. Estes encontros são essencialmente dialógicos.

Café filosófico Para Uma Moral da Ambiguidade.

Abnegação das Sombras, Eduardo Quina, nota de leitura

Se confrontarmos a estética, com alguma filosofia da arte à mistura, de Kant e Hegel, percebemos que enquanto para Kant o «belo é aquilo que apraz universalmente sem conceitos», espoletando um «jogo livre e harmonioso das faculdades humanas» (Crítica da Faculdade do Juízo, 1790), para Hegel «a arte produz formas ilusórias e enganosas deste mundo imperfeito e instabiliza a verdade contida nas aparências para as dotar de uma realidade mais elevada criada pelo próprio espírito.» É verdade, continua Hegel, que «ainda não é pensamento puro, mas apesar do seu caráter sensível, já não é também uma realidade puramente material.» (Estética, 1818-29) Assim, querendo seguir Hegel, a poesia, como a arte em geral, «convida-nos à meditação filosófica». Não sei se salvará o mundo, mas dá-lhe um sentido mais profundo. E em Eduardo Quina ela quer gravar a gravidade. De forma simultaneamente precisa e inventiva no novíssimo Abnegação das Sombras (Officium Lectionis edições, 2023). Mas igualmente em Corpos Labirínticos (2015), passando por Maligno (2018) e consanguíneo (2021, sobre o qual escrevi uma nota de leitura, aqui),[1] que o poeta revolve, escava o mundo à procura das impurezas metafísicas, principalmente uma metafísica do corpo sofredor, que lhe dão este pendor de obsolescência programada. A angústia não resulta da inconsequência antecipada das escolhas, ou da impossibilidade de um descanso ataráxico, mas da certeza de que o bem é uma quimera e o mal não se decide a vencer de uma vez por todas. Desta forma, escreve-se para incendiar o leitor.

À sua maneira, Eduardo Quina criou um universo poético próprio, presente e em devir, cuja veia principal talvez seja composta pelo fortuito e pela dor. Uma teodiceia invertida à procura, querendo e não querendo encontrá-lo, do pior dos mundos possíveis. Digo isto também porque Eduardo Quina se dedicou a um lugar do qual, parece-me, quer, sem querer realmente, escapar: «vivo submerso de ilha». Há vidas assim, assentes na incerteza do próximo passo. Mesmo quando encontram o sólido ancestral no novo.

Uma fenomenologia da desgraça que permite (exige?) uma hermenêutica excêntrica, um compasso morfológico e musical que retire de cada palavra, ou quase cada palavra, o sentido pleno que noutros autores só se encontra no fecho do poema. É assim que interpreto, mas não prometo estar certo, a bela recensão que Sousa Dias escreveu à primeira parte do livro, Marionetas: «a matéria da poesia não é a emoção, é a linguagem.» Eduardo Quina tateia, experimenta a linguagem para apanhar as sombras da vida. Mas experimenta-a também para testar os seus próprios limites. Limites de quem? Da linguagem e do poeta, que é o mensageiro do claro-obscuro.

Claro (quase):

«enquanto espero o teu rosto tardio
colecciono pequenas pedras
fragmentos cósmicos de ilha
luz e sombras
— sobretudo sombras —
palavras apagadas pelo fogo extinto
intenções de uma lâmpada projectada
contra a voz
e um verso
que permita o silêncio
sobre a água
como um espelho
em que o sangue se embacia.» (p. 72)

Obscuro(quase):

«[…]
Atravesso o nevoeiro que me esconde:
A incomportável letargia da carne
dos lugares para expurgar a solidão.

 
entretanto espero a noite eléctrica
como subterfúgio
para que o sangue coalhe nas mãos
enquanto as flores adormecem
no recorte do poema
deste martírio auto-biográfico.» (p. 84)

Um pulsar ou uma pulsão sanguínea, mas não totalmente intempestiva (seria o caos), nem repetitiva (seria calculada e, portanto, anódina). O sangue declina-se em múltiplas variações, tantas que há «pulsos irrigados por pedras.» Isto serve para insuflar vida e morte na paradoxologia vertiginosa. Como quando escreve: «filtrando dentro das artérias a densidade do aço.» Contrapeso a um «arrasto-me dentro do ângulo morto do sonho.» Ou «ainda tentei pelo poder da fala / instaurar a possibilidade da ilusão: / era tarde e deus / tinha-se ausentado para sempre.»

Recordo-me de Nietzsche e da sua forma de narrar a morte de Deus, revelando um segredo de polichinelo para daí retirar a máxima consequência filosófica: podemos afundar-nos no niilismo ou fazer disso a boa nova, o último evangelho. O «maior de todos os acontecimentos» conduz a uma bifurcação: o caminho do sobre-homem (senhor) e o do último homem (escravo). Creio que a poesia de Eduardo Quina estabelece um estado da arte sobre a morte ou a indiferença de Deus. Bem sei que são coisas diferentes, mas convergem na ideia de abandono e ressentimento. «Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?» Agora sou vago e odeio. Mas posso explorar a superior potência da linguagem, contra mim («aniquilamo-nos delicadamente / porque somos irrisórios.») e contra Deus («a promessa vã da culpa»): «no abismo solitário da ilha / segrego as artes da ressurreição». Um retorno mais dionisíaco do que apolíneo. Porque há «inferno», «abismo», «simulacro», «desalento», «destroços», «farrapos reciclados», «espectros», «pesadelos lancinantes». Sem conjuros, nada de jovialidade (Heiterkeit) , «afinal não voamos» e «somos inesgotáveis no sofrimento». Mas há um fulgor indomável, e negro, em tudo o que Eduardo Quina escreve, é raro a redenção artística vir serenar o incandescente, lemos e sentimos que se trata de «sangue subindo em golfadas imprudentes».

 Não é com riqueza que os poetas sonham, mas com luz, sombras e liberdade.

[1] Os outros livros são: Sombras mortas entre os dedos, 2015; Ausência, 2017; No Princípio era a Morte, 2022.

Quelques regrets

Nestas ruas do Poço do Bispo
que, já então, eram feias como agora,
andámos à procura duma loja de instrumentos.
Sonhávamos com música;
a loja, repleta de órgãos partidos e bafientos,
pareceu-nos a caverna de Ali Babá,
preciosa para brincarmos aos conjuntos;
enfim, eu não queria brincar, nem mesmo sonhar,
queria encontrar a música nas coisas palpáveis,
queria ir ter com ela, na vida, e depressa.
Demasiado depressa. Não me acompanhavas.
Ainda nesse Verão, depois dumas horas
a tentar ensinar-te os acordes de “I love her”
disse-te o que ainda hoje dói
e já não se desdiz.
Os prédios, os carros estacionados
ficaram no mesmo sítio,
mas um grande e largo rio
de baba e ranho
correu e separou-nos para sempre.
Dizem que, aqui, o oriente de Lisboa
era lindíssimo antes da indústria.
De olhos fechados, ainda se avista esse lugar ameno,
belo como a tua amizade imerecida.

14/06/2019


O perfil de João Paulo Esteves da Silva pode ser lido aqui.

notas para um ataque de pânico

Brassaï, La Bastoche, Rue de Lappe, 1932

podia ter a ver com o modo
como no fim da adolescência
aceitaste todo aquele dinheiro
para deixar que cortassem as oliveiras
e o último dos pessegueiros
o mais teimoso de todos
aquele que apenas florescia
e nunca teve a gentileza
de dar pêssegos
ou mesmo sequer uma laranja 

ainda que tanto tempo depois
eu continue a achar
que as suas flores foram para mim
a mais perfeita lição de arquitectura 

naquele ano em que entendeste
que tinhas vivido
aqui que chegasse
e com a raiva de um louco
decidiste que era preciso partir
primeiro para paris
onde viveste durante meses
perto de place de l’odeon
que nunca atravessaste
sem te lembrares
que certa vez aí robert desnos
tinha tentado esfaquear ezra pound
num jantar em que este queria afinal
ter esfaqueado jean cocteau

e onde tu não tentaste matar ninguém
e quiseste apenas esquecer walt whitman
canto de mim mesmo
e duas frases riscadas a vermelho
num caderno de capa verde
com a parte de baixo manchada de café
e eu queria ter aprendido de cor
a tua solidão as suas complicadas sílabas
compreender que rosto teria ela
em que língua a sua respiração
queria rever uma última vez
a tua dignidade complicada
de homem demasiado alto
erradamente surpreendido
no enredo de um quadro de el greco 

e no meio de todas as tretas
que entretanto me contaste
e que entretanto te contei
tão abaixo da beleza
qual seria a sua verdade
qual seria a verdade de quem és
na tua solidão
quanto valeria afinal
o som da tua voz num quarto vazio
esta lacuna de conhecimento
que já é
o meu arrependimento e tristeza
a prova irrefutável da minha
total ignorância
agora que posso livremente declarar
que prefiro que me esmurrem o nariz
a deixar-me abraçar por ti  

e mais tarde esse traço de um som
perdido num risco de caneta
numa desatenção silenciosa
transferiu-se
como às vezes
o papel absorve a tinta
e teve a sua metamorfose 

veio a tornar-se a minha solidão
esta quieta forma de lucidez
que me encontrou já tarde uma noite
ao descalçar os sapatos
debaixo de uma mesa
num pequeno apartamento
nos arredores de chicago
enquanto oitocentas pessoas
respiravam ao meu redor
em blocos intermináveis
de anonimato e betão armado
e assentou sobre a minha pele
como suor de um trabalho só meu
pesou sobre mim como o som dos trompetes
como a canção de jazz que nandia
ainda haverá de escrever a milhas daqui
em harilaou trikoupi
porque são os meus amigos
e não como ela me disse
os dela
a minha mais perfeita obra de arte  

a que me acompanhará até quando me alcançar
tudo o que já não irei entender
até o modo como duas tristezas se podem
encontrar e confundir
sem nunca se assemelharem
e de como o mesmo
nunca é verdade da alegria 

uma verdade demasiado real
subtraída a um jogo de que me tinha esquecido
onde os contrários vão para se anularem
onde deixa de importar se são
botões de saias ou nós de gravatas
se durou dez horas ou quatro minutos
se o bar se chamava ingrato inquilino
ou pensão amor 

lugar em que se confundem coisas incríveis
e onde há gente capaz de recusar
defender-se
capaz de recusar parecer bem
na fotografia enquanto por dentro
se contorce de dor
só para que na sua lápide se leia:
a vida – podia ter sido pior
essa gente cada vez mais difícil de encontrar
com uma certa dignidade mágica
que talvez eu já não vá descobrir
em lugar nenhum 

de tudo o que me falta
falta-me agora a tua coragem
que nem sequer está já
junto ao mar para lá de assos
onde ulisses quase morreu
de amor e vontade de regressar
e onde quase me afoguei
certa vez do modo que se afogam
sempre os estúpidos
julgando que conhecem o mar 

digo-te mesmo que tem de haver alguém
que se lembre alguém que possa mesmo nadar tanto
e não como uma maneira de fugir
numa cidade onde os poetas
se esfaqueiam uns aos outros
mas para o teu encontro contigo
e do meu com coisas ainda sem nome
e até com o ataque de pânico da capitã
da equipa de rugby da universidade
estendida num tapete ao lado do meu
na última aula de yoga do dia 

o inalador da asma ao lado
da sua chave de casa e da carteira
o meu susto ao ver chegar
o seu terror absoluto
um galope que ninguém poderia parar
o frenesim que o deus dioniso
inspira nas bacantes  

e porque só as mulheres são bacantes
esperado e planeado para acontecer
numa sala onde só vão mulheres
o seu choro
como o começo de um vendaval
um mapa magnético cheio de testemunhas
mas afinal com apenas um sujeito
e um só predicado
uma das poucas vezes em que sei ter visto
uma tristeza total
que gramática nenhuma
de língua nenhuma
podia ter redimido
uma tristeza julgada impossível
num corpo feito para vencer
e sentindo pela primeira vez
com uma terrível incompreensão
uma inexplicável derrota  

e pode ser que seja só tudo um jogo
só que eu não quero
fingir e sobreviver não quero
e escrevo isto para te dizer
que já sabes que morro sempre
e depois da morte regressarei
não para viver todos os momentos
que não vivi junto do mar
mas para te pedir coisas
exorbitantes e surpreendentes
que continuam a ser para mim  

o necessário desconhecido

Oxford, 9 de Março de 2023