Dois poemas de "Silvina" de Leonor Buescu

isso é a tua incumbência
que eu não chego às plantas
tu quem trata lá no alto
a ligeireza
inteireza fresca com que
levas a água à existência
verde forte do caule

cresce porque lhe
dizes o dia a hora
do sol franco embora
tímido
por vezes na sua rega

contigo a folha vence
brota o botão
a flor capaz


machadinha

pomba
pombinha
se tu és minha
aí na rua
também eu sou tua
quieta
esmagada
impressa
plo pneu
e pla chuva

nem distinguem
as penas do alcatrão
camuflada
tudo cinza
aberto
opaco e mudo
leque de espinhas
e sangue morto

pomba
pombinha
há quem te diga
grande praga
mas esses
não te vêem
quando voas

2 poemas de Que Coisa é um Alguidar? de J. Carlos Teixeira

METADES DE UMA LARANJA

para a Mafalda Sofia Gomes

I

Quando Maria se perdeu no deserto
não sei se seriam
cálices ou ondas
que lhe desciam pelos seios
enviuvados.

II

O tumor da tempestade
arrastou o túmulo da tua cria,
levando consigo o calor sombrio
dos rebanhos em negação.

III

Escreveram nas paredes
que os pombos tombaram.

IV

O teu filho morreu
e no fundo dos montes
ouvem-se os gritos das mulheres
ecoando nas bocas dos peixes.

V

Esses olhos nunca mais
voltarão a cair aos seus pés
como mantos pousados aos ombros
das montanhas.

VI

Ventre da manhã,
os tambores já não tocam
nesta cidade.

ACOLITAR

Um terço do meu corpo
poderia cobrir uma boca
como pão e vinho

não seria ensinamento,
seria romance
aprender o catecismo
de pé descalço

acenderam a candeia:
            debaixo da tua batina
            caberia uma romaria.

J. Carlos Teixeira, Que Coisa é um Alguidar?, Editora Exclamação, 2024

Três poemas de Polaroide de Miguel Marques

Segunda

Desenlaço espelhos cobertos,
emudecidos sem mais, com um cantor esquecido
em gaiola opaca, sem alimento nem água,
em puro silêncio,
escutando o teu nome à solta.

Mas sou capaz de olhar um espelho
e dizer-lhe na cara: esse não sou eu,
refaz o teu ofício simples.

Baço, como nevoeiro, e o seu manto de veludo
arrastado bem cedo
pela manhã, lugar onde há quem plante estátuas
de crianças nuas a crescer lentas num jardim.

Até um rio nasce e cresce para morrer
num distante fim de linha.

O seu arbusto de água corrente quando,
desavindo, espanto-me com o delta desenhado.
Margens movediças o sobem, limitando
lençóis de água onde se lava roupa, junto ao
bordado dos açudes, e povoadas por mulheres
magníficas.

Chegam a parir pequenas estátuas de mármore
roxo
– afligem-se quando não berram,
não respiram –,
e, assim, vão plantando estátuas nuas
pela manhã iluminada.

Mais tarde, as estátuas imaginam as suas próprias
vestes esvoaçantes,
e a formiga trepa-as,
dos pés à cabeça,
o basalto emplumado repousa
nos seus ombros delicados,
lembrando pássaros.

Se a cabeça viaja, crava unhas nos cabelos
entrançados devagar,
nas vestes imaginadas a rasgarem-se
no sopro breve de cada
nova manhã.

O círculo de crianças numa brincadeira de menires
soberbos.

Quarta

Toda a casa é trancada pelo Sol abrasador
enquanto escondo,
na cabeça repleta,
minúsculas células de lanternas vivas a clarear-me
o pensamento.

Os meus mortos sentam-se comigo à mesa, as
chávenas mornas
nas suas mãos brancas.

Mãe, eu ainda tremo.

Não hesites assim tanto, minha mão, quando
escreves.

Escuto as memórias que pairam como
helicópteros ruidosos em
agonia ascendente.

Felizmente, tenho apenas uma boca, demasiadas
vozes me tomariam de assalto, em sobressalto,
enquanto pássaros de luto sobrevoariam
o telhado deserto.

Uma boca húmida
onde mantenho lascas de carvão
em brasa, caverna de vapor aquecido
sem chaminé erguida.

Digo que as lágrimas dos meus mortos são
estrelas nos seus rostos marmóreos,
e qualquer estrela
é uma lâmpada por apagar, esquecida
quando de vez se tranca
a casa vazia.

E não é que o exemplo dos mortos
conduz os vivos?

Basta ver quem lidera o pelotão de cada
funeral.

Décima sexta

Hasteada a bandeira de fumo branco
a drapejar na brisa, ténue,
como o fio vibrante da teia de uma
pequena aranha.

Ou cordões de água que desenham as alças
do teu vestido imaginado.

Ou ainda, lírico cabelo desatando linhas
compridas de versos, onde
as aranhas aprenderiam
a tocar harpa
se as suas presas, de tão assustadas,
não lhes desafinassem as teias.

Nas memórias visíveis
que são as polaroides, uma floresta
de mãos abertas
com as suas unhas pintadas de verde,
dedos nus que se entrelaçam profundamente.

Se a primeira árvore da floresta
lança raízes à estrada,
a última leva os ramos à cabeça
em desespero.

Uma moeda de ouro rola
pelo declive das copas
do arvoredo,
tenta encontrar a ranhura certa,
dando início a mais um jogo noturno.

E bem no centro da imagem
desbotada, de lábios vivos,
a mulher que fuma
num desassossego,
erguida a bandeira de fumo branco
que drapeja no hálito quente
do vento.

Arde que arde na bandeira furiosa.

A mudança (um poema de Marija Dejanović)

Tradução de Tatiana Faia
de Dobrota razdvaja dan i noć
(A Gentileza Separa a Noite do dia)
a partir da tradução inglesa de Vesna Maric

a mudança do nosso organismo aconteceu
durante a noite 

deitámos fora a nossa armadura de carne
e esquecemo-nos de como nos sentir oprimidos 

isto não nos incomodou grande coisa 

o corpo vibra ao deitar-se junto ao lago

um lírio cresce das suas orelhas
e a sua espinha
é uma seta
apontada a sul 

para onde vão as cores
quando as pétalas caem e regressam ao abraço do chão? 

para dentro do teu nariz

elas vão para dentro do teu nariz


O perfil de Marija Dejanović na Enfermaria 6 pode ser lido aqui.
A tradução inglesa do livro A Gentileza Separa a Noite do Dia está disponível aqui. Recomendamo-la vivamente.

Milan Kundera, elogio fúnebre

A morte de Kundera permitirá que toda a cena seja ocupada pela sua obra, era isso que ele pretendia, beckettizar-se (lemos este belo neologismo num qualquer jornal de referência que agora não conseguimos citar), desaparecer por detrás da sua obra.

Em jeito de homenagem, Tatiana Faia e Victor Gonçalves escrevem sobre os seus encontros com o autor da Insustentável Leveza do Ser.

Tatiana Faia

Numa entrevista bastante recente à BBC, Salman Rushdie, falando do ataque de que foi vítima em 2022 em Nova Iorque, recordava, a propósito da morte de Milan Kundera, que ele era um escritor que acreditava que o riso era uma forma de desmontar os extremismos. Isto fez-me ir à procura da última entrevista que Kundera deu à televisão francesa (em Apostrophes, 1984). O tema era o erotismo em A Insustentável Leveza do Ser, sem dúvida o livro mais lido de Kundera, e nela Kundera diz que vivemos numa época onde a intimidade é facilmente exposta e que sem intimidade a personalidade evapora-se. Isto recordou-me uma anedota contada por Philip Roth, que se encontrara com Kundera na Checoslováquia, e que contou algures como aí tinha sido vigiado pela polícia e um amigo seu, Ivan Klima, tinha sido, depois de ele ter partido, interrogado sobre os motivos da sua presença, ao que ele respondeu perguntando ao polícia que o interrogava se ele tinha lido os romances de Roth, que o motivo pelo qual ele fizera aquela visita eram as mulheres. Talvez haja nesta história sobre um outro escritor qualquer coisa do riso de Kundera, o tal que desmonta o extremismo, faz entrar pela porta da violência a normalidade, os traços de natureza das pessoas pelas quais elas vão sendo gente (é com o mesmo amor ao detalhe menor que outro escritor, Saramago, tende a olhar para as suas personagens).

Não me lembro de me ter rido particularmente com A Insustentável Leveza do Ser, mas recordo uma observação que ficou comigo, que mudou uma coisa bastante simples para mim, mas talvez bastante fundamental. Há um momento no livro em que Kundera discute a noção de que a crueldade que exercemos contra os outros continuará a existir enquanto continuarmos a ser capazes de ser cruéis para com os animais. Deu-me uma certa obsessão esta ideia, que é aquela que me ocorre quando de vez em quando sou esmagada por uma verdade que não quero ou não posso combater. Ter lido Kundera, que não sei, nem me importa, se era vegetariano ou não, explica então em parte o meu vegetarianismo. Pode parecer pouco esta anedota, mas aqui fica um desses exemplos que por vezes são clichés de marketing, ou frases ditas por críticos em dias de cansaço, quando estão pouco inspirados, e outras apenas uma maneira de falar de uma verdade – simples e dura como um seixo: de vez em quando um livro encontra-nos e muda a nossa vida. Isto é, então, uma pequena elegia para Milan Kundera.

Victor Gonçalves

O que resta das nossas leituras, que partículas permanecem no nosso sistema de pensamento, que partes do nosso cérebro são influenciadas pelos resquícios do que fomos e da forma como fomos lendo? Os bioarquivos contaminados pelas influências heteróclitas da vida e… das novas leituras.  Todos usamos o «li, mas não me lembro», ou «li, mas quase não me lembro». Um esquecimento que empobrece, com certeza, mas sem ele, como nos ensinou Friedrich Nietzsche, estaríamos condenados ao peso de um passado que esmagaria o futuro.

Milan Kundera pensou o esquecimento noutro sentido: esquecer o passado retira profundidade ao presente e torna o futuro previsível (não há futuro que resista ao conhecimento prévio do que vai ser), isto é, um esquecimento que conduz diretamente à ignorância. No imediato, depois da notícia da sua morte, recordei-me de ter lido a Insustentável Leveza do Ser, a Arte do Romance, a A Ignorância e A Imortalidade. Mas estão fora da memória mais ativa, talvez só trabalhem subterrânea e fortuitamente em mim (que força de modelação tem isso?). No campo da semiconsciência, companheiros distantes mas importantes, tenho, então, as quatro obras referidas. Será também por serem bastante conhecidas e citadas? Muito do que julgamos pensar por conta própria não passa de discurso em segunda mão, mais ou menos bem recondicionado. As nossas ideias são o estrato mais recente de um palimpsesto infinito.

Seja como for, ele mostrou-me uma categoria fundamental do mundo contemporâneo: o Kitsch. Uma produção quase industrial de obras que não são nem lúcidas nem belas (o Kitsch vive de um simulacro de beleza fácil de assimilar pelas massas), uma exaltação do banal. Percebi também outras possibilidades do absurdo, do mau absurdo (o sem-sentido que simula ter sentido, próprio ao regime checoslovaco neoestalinista pós-68, mas também à sociedade de consumo do Ocidente rico), distinguindo-se do absurdo que reforça o anti-determinismo, e por isso mesmo a liberdade, de Sartre e, sobretudo, Camus. O de Kundera está mais próximo do de Kafka (que li intensamente) ou Musil (que admiro), por vezes, talvez de Beckett (que me dá sempre muito a pensar). De qualquer forma, o seu absurdo não abafa o riso, Kundera, dizem os que privaram com ele, tinha um bom humor fantástico, e o risível que provoca boas disposições no ânimo habita na sua obra, pressenti-o eu e asseguram-no alguns dos seus maiores leitores. Talvez o risível seja a via entre os dois abismos que descreveu a Philip Roth (admirador incondicional da sua obra): o do fanatismo e o do cepticismo absoluto. Retenho também a erotização, roçando o pornográfico, sem saídas pelo alto (metafísicas ou libertárias, ambas dionisíacas). Ou a identidade, como nos fazemos e desfazemos constantemente, egos esburacados.

Afirmava que não era um escritor, mas um romancista. Nesta arte, pelo seu poder de diagnóstico e criação, cabia toda a cultura europeia. Deste Cervantes, passando por Diderot e Rabelais e acabando em contemporâneos seus de língua checa. Pelo que tenho lido em vários jornais, Kundera é um dos maiores antropólogos culturais do velho continente, mas também um pensador da geopolítica europeia. A escritora Norma Manea disse há poucos dias ao jornal Le Monde «Perdemos uma testemunha fundamental e um grande pensador da Europa do século XX, das suas convulsões e conflitos.» Uma Europa que ele considerava frágil, em perigo, como o referiu a Roth em 1980.

Esta caracterização aliada a uma vaga, mas persistente, sensação de que o devia ter lido mais, que isso comporia alguns gestos imprecisos da minha forma de pensar (olhar para o mundo, para mim e interpretar, com rigor e com excesso, pensar um futuro para a Europa), conduzem-me para leituras por vir, será o meu próximo (2024) autor de cabeceira.