Desacordar um acordo ortográfico

Paulo Matos volta a expor Bárbaro – Ao – Ataque Ortográfico; de 1 a 3 de Julho, no Palácio Cabral, Espaço Cultural Santa Catarina, Lisboa. Desde 2012, a obra esteve patente no Espaço Cultural das Mercês, Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, Casa da Cultura dos Olivais, Ler Devagar (LxFactory) e Fábrica Braço de Prata.

Ao falar com o autor percebi que foi cruzando várias linhas de inspiração, polvilhadas com laivos de rebelião, que nasceu esta peça, maneira de simbolizar o ataque acéfalo, mas oportunista (uma intelligentsia misturando políticos carreiristas e megalómanos com linguistas ufanos por protagonismo), a um código ortográfico que servia bem, e há bastante tempo, as nossas necessidades de comunicação e criação. Paulo Matos referiu várias vezes a necessidade de constância, que um meio de interacção tão complexo como uma língua precisa de sistemas de codificação relativamente permanentes. Não se trata, evidentemente, de petrificar a língua portuguesa, de a obrigar a manter-se ad aeternum fiel a regras linguísticas fixas. A língua, diz Paulo, pode, e deve, evoluir, incorporar, deslocar, apagar, inventar… novos vocábulos e novas formas de expressão. Se assim não for, morre, o latim é disso exemplo. Mas, simultaneamente, deve acompanhá-la uma certa estabilidade semântica e sobretudo morfológica. Até para contrariar o carácter efémero da actualidade, materializado entre a limitadíssima esperança de vida dos gadgets tecnológicos e o estilo speed dating das relações sociais. Vivemos na vertigem de mudança, muitas vezes sem sabermos para quê nem para onde. É preciso manter uma linha de inteligibilidade entre o “agora”, a multiplicidade, por vezes caótica, do presente, e o passado; alimentar um lastro que nos dê profundidade cultural e existencial. Ora, a melhor maneira de o fazer é não mexer arbitrariamente na língua. Aliás, a forma em espiral da obra de Paulo Matos estabelece similitudes com a espiral do ADN, estrutura da vida, com uma força de permanência essencial à evolução filogenética e ontogenética das espécies orgânicas.

De um ponto de vista mais estético, em si mesma a peça parece estar perto de descrever literalmente o gesto bárbaro que golpeou uma parte da língua portuguesa, forçando alterações morfológicas, gramaticais e até fonéticas que o seu uso não exigia. O “Bárbaro” é, pois, um gesto arbitrário de vontade de domínio, um “cortar a direito” para gáudio de uns quantos aprendizes de demiurgos. Mas, em boa verdade, a alta densidade simbólica da obra inscreve-a numa complexidade trágica, numa arriscada negatividade que dificilmente, aprofundando o nível interpretativo, permite a sua compreensão imediata e definitiva. Estamos plenamente no jogo pós-moderno do inteligível contaminado pelo ininteligível, do fetichismo do inapreensível, de um neo-dandismo que ao mesmo tempo que assegura a intervenção Crítica na realidade se afasta para o Olimpo de uma elite que ri do “prazer da arte” ou da moral da utilidade e bondade. Paulo Matos, sem estar inteiramente no esteticismo snob do actual mundo da arte, abraça através desta peça um refinamento simbólico que mistura Pop Art (a extensividade figurativa…) com uma austeridade neo-neo-clássica (a espada, os blocos maciços constituídos pelos dicionários...) adequada ao culto da decadência que novamente nos assalta.

Do ponto de vista do combate ao último Acordo ortográfico (que, no limite, só Portugal respeitará, em bom dizê-lo), a peça, numa leitura que parte dela mas a ultrapassa, denuncia os processos de simplificação que regozijam com a elementarização do mundo (as línguas francesas e inglesas, por exemplo, dificilmente suprimirão os elementos morfológicos sem uma correspondência fonética imediata e evidente, caminho de simplificação sobrevalorizado pelos nossos obreiros do Acordo). Recordemos que “simplificar” foi sempre a receita de projectos políticos hegemónicos, do estalinismo ao nazismo, passando nos nossos dias pela Coreia do Norte. Levada ao paroxismo, a simplificação é uma tentativa de escapar à “fatalidade das ligações múltiplas” que complexificam as comunidades mais sofisticadas, avessas ao dom-sebastianismo. “Objectivar muito mais a língua portuguesa”, defendiam, e defendem alguns. Anular a “realidade complexa” dos sonhadores, dos hesitantes, dos cépticos, dos criativos. Para as ditaduras, o mundo deve ser governado com simplicidade, a partir de ideias como as de “raça superior”, “materialismo dialéctico”, “igualitarismo”, “capitalismo”... O Acordo enquadra-se bem neste último marcador ideológico: “é difícil escrever, as palavras têm componentes ‘supérfluos’? Simplifique-se! Para que todos, sem esforço, possam escrever ‘bem’”. Aliás, se esta simplificação linguística não for suficiente, em nome da igualdade pode e deve-se acabar com a própria escrita. É bem mais fácil, e eficiente, do que ensinar a escrever.

Para terminar, a peça de Paulo Matos é também uma subtil indicação de que no futuro, não interessa qual, quando tudo for perfeito, as peças de arte perderão a sua importância. Sem nada para criticar, num mundo belo-em-si, os artistas serão então, como escreveu Friedrich Nietzsche, inventores da festa e da alegria” (Fragmento Póstumo 1880, 1[81]).

"Curva-se o homem, subindo os"

Curva-se o homem, subindo os
Degraus da grande escadaria,
Sobre si próprio. Olha para onde
Põe os pés, presta a atenção toda
À violência de cada passo, a
Invadir cada novo limite.

Curva-se, sobe, em si o nome
Com que avança é o peso maior;
Quando se volta para trás vê
A demora toda no espaço vazio,
Doem-lhe, quando se volta, os ombros
De suportar o chão abaixo de si.

Elizabeth Garrett, «Canção»

tradução de Hugo Pinto Santos

Já outros assim jazeram antes de nós —
lado a lado dormidos, brandura a brandura,
osso com osso — e sonharam que, nem pasto,
nem pedra, cresciam onde carne e figura assim se fundem.

Sob a ampulheta do céu, estendem-se os amantes,
Detritos contínuos, vogando fora do alcance do mundo,
juntos jazem, indiferentes ao contacto do sol,
aos grãos do tempo cuja lenta filtragem sob eles se dá.

Já outros assim jazeram antes de nós — 
lado a lado dormidos, cinzas a cinzas,
pó contra pó — e ainda sonham enquanto, infatigável,
a chuva enxuga as suas pedras; entre eles, apenas pasto.

Elizabeth Garrett, A Two Part Invention, Bloodaxe Books, 1999

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Maria Eduarda

 You just get out what they put in
and they never put in enough
Love is like a bottle of gin
but a bottle of gin is not like love 
 

The Magnetic Fields, “Love is like a bottle of gin”

 

Maria Eduarda vê a sala encher-se de gente. Mendelssohn numa recôndita sala de espectáculos de uma cidade de província faz o povo chorar pontualmente às quartas-feiras à noite, independentemente da classe social. Traz ópio num dos bolsos, tem calçadas sapatilhas de pano e quando os músicos começarem a tocar, vai finalmente poder cair do Olimpo, ter o prazer de conspirar consigo mesma. O que Maria Eduarda já sabe: o seu amor é desonesto. O que Maria Eduarda ainda não aprendeu: imaginação e pensamento não são a mesma coisa, não vêm do mesmo lugar. Maria Eduarda imagina muitas coisas, mas pensa muito pouco. Maria Eduarda tem uma tendência para pensar que amor mais imaginação é igual a trabalho (o único possível). As evidências do presente sistema capitalista negam as hipóteses desta suposição, algo que Maria Eduarda tem e terá dificuldades em aceitar, independentemente da conjuntura económica. Bittersweetness não explica tudo mas é para muitos um modo de vida. Maria Eduarda só pode oferecer-se para dar alguma coisa se ninguém lhe pedir nada, de outro modo, sentir-se-ia comprometida (nos dois sentidos do termo). Maria Eduarda sai assim que o concerto acaba. Assim, do escuro da sala para o escuro da rua. Noite escura. 

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