Canzione per te

Gosto daquela velha música de Sergio Endrigo
porque nunca mais a escutei

nas serestas de família

Do mesmo jeito, arrebenta os meus olhos
o violão de cordas arrebentadas

no qual ninguém ousa encostar a mão

seja por pena, seja por nojo

As pessoas me parecem mais interessantes
se não conheço os seus nomes

Prefiro-as extraviadas em cartas apócrifas
ou soltas em catálogos ordenados numericamente

Desculpe-me, H., mas as casas são fabulosas
apenas quando não digo: casas. Então, são fabulosas de verdade

É que, ao não dizer: casas
(assim, por inteiro, no sentido total e totalizante da palavra)
só me resta falar sobre os móveis cobertos

sobre o cinzeiro limpo, sobre a torneira fechada

Nestes dias temperamentais, o berço sem criança
tem me comovido mais que a ideia da criança

Há ainda as coisas que se cumprem
pela metade, sempre mais belas e convincentes: a ambrosia que enche
meio estômago, os trinta minutos, o chá de cacto

que não te rouba toda a consciência

Sob a marquise

espero a segunda vinda de Cristo
e torço para que o episódio não saia nos jornais
de grande circulação

Pensa em como seria
se anunciassem a chegada do Nosso Senhor
na mesma placa que agora informa

Consertam-se venezianas

Seguem em paz os coadjuvantes das próprias fantasias
Também eu quero tamanha paz, apesar de saber
que, nesta festa insólita, não me será dado um fiapo sequer

do mais breve sossego.

[Cheiro a maldade no ar como se]

Cheiro a maldade no ar como se
fosse um outro gás tão real
como a hipótese de ser eu a
fazer as coisas malvadas deste lugar

- Não pode ser no avesso o odor
fruste dos sebastianistas que
vão caindo nas valas da cidade?

Mas como poderia tal estar numa
mistura com a própria maldade
com a presença incolor de uma praga
pesada e escancaradamente humana?

Essa confusão vem do ardil
que sempre preparaste ao sonho
ao novo sol que acorda trazendo a
pureza de um perfume fresco e brando
que limpe toda a cúpula da cidade

Subsisto-me nesta possibilidade
nova da linha que termina o céu
ainda que me entupa sempre as
narinas o infausto tempo presente

Eco-Arquipélago no Maratona 1 – MARATONA ÓPERA XXI OPERAFEST LISBOA

Música de João Ricardo
Libreto de Tatiana Faia
Jardim do Museu Nacional de Arte Antiga
Mais informações aqui


Poussin, Eco e Narciso

Poussin, Eco e Narciso


Criada no âmbito da primeira Maratona de Ópera do XXI OPERAFEST Lisboa, onde um grupo de jovens criadores apresentará quatro óperas, Eco-Arquipélago, com música de João Ricardo e libreto de Tatiana Faia estará em cena no Jardim do Museu Nacional de Arte Antiga no dia 30 e 31 de Agosto. Os bilhetes estão disponíveis aqui.

O elenco de cantores é:
Rita Filipe, meio-soprano
Tiago Matos, barítono

Eco-Arquipélago é uma adaptação livre, a um contexto contemporâneo, do mito de Eco e Narciso. Toma-se como ponto de partida a versão narrada por Ovídio em As Metamorfoses. Nessa versão, o adolescente Narciso rejeita o amor da ninfa Eco que, quando este a procura, nada pode fazer além de repetir as suas palavras. Repudiada, esconde-se numa gruta e vai-se transformando em pedra. Um dos muitos amantes que Narciso rejeita, além de Eco, amaldiçoa-o: que ame, mas nunca possa possuir o ser que ama.

Um dia, Narciso vê o seu reflexo na água e, curvando-se para beber, apaixona-se desesperadamente por si próprio, com a mesma intensidade de sofrimento de Eco, até que se consome. No fim, o seu corpo transforma-se na flor do seu nome. Sobre este episódio escreveu o classicista norte-americano Daniel Mendelshohn, em The Elusive Embrace: Desire and the Riddle of Identity, que é sobre dois tipos de identidade: aquela que se define pela diferença e a que se estrutura na mais absoluta semelhança, e que ao justapor a trajetória destas duas personagens, Ovídio sugere que a verdade acerca da identidade humana não é tanto um caso de total polaridade, mas de equilíbrio entre estes dois conceitos. Curiosidade, desencontro, repúdio, a aflição da paixão, identidade, diferença e narcisismo, são a escala de conceitos e emoções que este mito percorre.

A premissa deste episódio de um poema do séc. I a.C. mantém-se atual: não sendo capazes de estabelecer uma ligação profunda com os outros, é no abismo de nós próprios que nos afundamos. Assim Narciso no mito, que se dissolve em fogo perante a sua imagem que lhe foge, até que o seu corpo se metamorfoseia em flor. Interessa-nos, aliando música e texto, enfatizar o elemento melodramático deste episódio, e reter a ideia de encontro e desencontro e da aparente incapacidade das personagens de se ligarem uma à outra, explorando e alterando os motivos por que ambas parecem falhar. Através da música e da narrativa iremos expor os modos em que este mito é ainda hoje pertinente para pensar um dos aspetos mais cruciais das nossas vidas: num tempo em que tudo é mediado pelas imagens que projetamos de nós próprios, e muitas vezes pelo narcisismo que acompanha essas imagens, o modo como sucedemos ou falhamos em estabelecer ligações mais profundas.

O título Eco/Arquipélago encerra a premissa de que a semelhança pode ser o primeiro passo em direção ao outro, mas que este impulso de medo e curiosidade pode encerrar em si um mundo próprio: duas personagens que são como dois pontos isolados mas que juntas, não se dissolvendo nem em diferença nem em semelhança, formam um arquipélago. Abriremos, assim, um espaço para falar do que existe antes dos estereótipos e das ideias que formamos sobre os outros. Prestaremos uma discreta homenagem a Gluck e ao seu tratamento do mito de Orfeu e Eurídice, em Orphée et Eurydice, reescrevendo também radicalmente o nosso final.