Da importância da história

Ao longo dos tempos o homem pensou que era só um. Depois veio a Revolução Francesa e ficou tudo na mesma. Alguns até sabem a data de cor, que eu não sei, mas mesmo assim são capazes de assegurar que a partir daquele momento nada mais como aquilo se passou. Na verdade, na verdade vos digo: nunca se passou nada disso. O homem nunca foi à lua. Ou melhor: o homem foi à lua antes de ficar tudo na mesma. Que é o mesmo que dizer: o homem nunca foi à lua.

A lua não é um satélite, sabeis? Fica bem falar assim (sabeis), porque me distraio sempre do fundamental: ao longo da história tudo se repete, ainda que ninguém esteja disposto a admitir que algo se repetiu. Ora bem, vejamos, sim, os refugiados, coitados. Mas quais refugiados? Refugias-te em ti, refugias-te em mim, e depois dizes que nunca refugiste de ti. Ouve bem: “refugiste”. Soa-te estranho no cérebro? Ainda bem, é sinal que ainda tens algum senso de novidade. Voltaste a fugir, mas agora sabes que nunca pudeste fugir de ti, nem seria bom que o fizesses. Alguém disse - sei perfeitamente quem, só não estou para o dizer - que nunca ninguém fugiu de si, por mais exilado que fosse. Belo, é isso mesmo. Mas esqueçamos a individualidade: ninguém pode ser indivíduo, nunca, não, a indivisibilidade está só ao alcance dos superbusões ou de um qualquer elemento que nunca será visível. Eu divido-me. Agora, por exemplo, divido-me em história.

E quem é ela? Quem é?

Bom, genocídios.

Venham os genocídios. E contemos um a um.

Os Nazis?

Chamem os Romanos. Chamem todos. Todos eles genocidaram. E depois ficaram parados, porque morreram. Coitados dos refugiados - bem entendido - nós. Não sou de sublinhar palavras: mas aqui fica. NÓS.

Mas há sempre este grave problema. Nós não somos eles. A menos que a história existisse, e que soubéssemos que tudo o que vivemos já foi vivido de outra forma e noutra altura.

Mas isso, meu bom amigo, é impossível. Se vinte e cinco de Abril ou quarenta e quatro de Maio ou o trezentos e cinco de Março existiram foi para serem isso mesmo: uma data.

CALEM-SE DATAS.

Sabes que “data” (agora não me apetece investigar, estou a escrever um manuscrito isolado no monte Parnasso) é algo plural que foi dado. Mas sabes que nós, os que somos amiúde e frequentemente (passo o pleonasmo) presenteados esquecemos a dádiva. Daí que tudo seja dado pelo esquecimento.

Mas, desculpem, o tema de hoje (reparem na ambiguidade entre o tu e o vocês) é. História. A História não existe, a não ser que seja para nomear Júlio César como o grande general romano, e não como o filho da puta que destruiu o que restava do futuro da República. Sim, não se esqueçam, hoje podíamo-nos estar a esquecer de como Roma foi cada vez mais uma República até que se tornou numa república, com Cristo e tudo, até ao ponto em que foi sodomizada pelos Bárbaros (que só sabiam dizer bar-bar-bar), que vieram de algures, para depois serem por sua vez remasterizados pelos próprios pagãos-cristãos vindos de alhures que afinal era o mesmo sítio. E depois voltávamos a agora, num ponto talvez mais à frente, num ponto em que cristão-muçulmano-indígena-hindu fosse uma onomatopeia: “oh”, ou como dizem bem os ingleses: AWE (não, tu aí, não confundas com יהוה, olha que te podes tornar ecuménico).

Bom, tudo somado: não à história. Não há história.

A seguir ‘tás-me a dizer que o verbo estar não tem as vogais e consoantes que o iniciam, e isso sim, seria perder todo o universo, toda a gente sabe que a fonética sempre se sobrepôs à ética (basta ler o final do último parágrafo). Fonologia não, é outra coisa, é o estudo da mente, mesmo quando ela passa pelo som. Bom, de qualquer das formas escreve-te o grande poeta grandiloquente, Braga Falcão, que ninguém conhece, mas que quando conhecerem dirão: aquele é o Braga Falcão, para depois - estando eu já felizmente morto - o esquecerem. Melhor das hipóteses: uma placa de rua. Sabem (ou sabeis?), ah, awe, יהוה, θεέ, ॐ, como estou prostrado perante o crescendo da música e das palavras (usei “e” e não um genitivo) que denunciam que somos uma rua. Vivi numa rua chamada Rodrigues Sampaio, noutra chamado Engenheiro Miguel Pais, noutra chamada General Torres. Sabem o que gosto mais? Daquelas felizes e tão infelizes décadas em que vivia numa terra de nome sem nome numa rua tão estranha como “Estrada do Parque” (?, sim é mesmo assim), e em que é de supor havia uma vivenda que nunca teve uma placa a dizer que era uma vivenda. Chamava-se “O Pinhal”. Chama-se.

Mas deixem lá isso. Uma história é uma infância vivida a sós. Por isso nunca nos lembramos dela, por isso é tão difícil recordar. Se tivessem discernimento saberiam, como eu nunca fui capaz, amar o verbo recordar.

Tem um coração lá dentro. E isso é verdadeiramente lamechas, e tu sabes como é bom ser lamechas. É o mais próximo que tens de ser mãe ou pai.

Meteram-me neste tempo que tem a história que sempre o tempo teve. Ou esteve. As vogais e consoantes intrometem-se sempre, nímio. Gosto desta palavra que tu não conheces: nímio. Se a conheces, algo de errado se passa contigo, e devias-me escrever. Estarei cá para te escrever, nem que arranje (gosto deste coloquialismo, afasta-me do pai latim) um secretário (já me lixei, cá está ele em segredo).

Seja como for, amanhã haverá outra história. A de hoje: pessoas infelizes fogem, e as pessoas que se julgam a caminho de uma qualquer felicidade dizem que a infelicidade dessas outras pessoas está numa direcção oposta e contrária, digamos assim, em sentido contrário, e portanto mais vale que as lições de matemática estejam certas e que menos com menos, como é lógico, dê menos.

De resto, odeio hoje. Hoje é uma coisa nojenta. Ou vivemos na história, e assim ela nunca há-de morrer, ou vivemos hoje.

E hoje uma merda qualquer com um nome qualquer marcou uma merda de golo qualquer contra um genocídio qualquer, que gritou “coitadinhos”.

Coitadinhos. Deixa-me só aqui desligar o monitor (ah, é bonito não é, aquele que avisa, não estou outra vez para verificar esta raiz, estou certo que sim), e vou encetar esta próxima hipocrisia: a história existe.

A história tem importância. Pelo menos enquanto disciplina. Vá lá, é importante que saibamos algo acerca do antigamente.

E não ser que não.

Pelos olhos da mariposa

são três da manhã, você não consegue dormir. Seus olhos já vagaram pelo quarto todo, as paredes brancas são brancas apenas no espectro que resta na sua mente porque o escuro mastigou tudo, mas seus olhos estão abertos, a tela do celular projeta imagens e mais imagens que são como um paliativo para os sonhos que você não está tendo. Você nem lembra quanto tempo faz desde a última vez que acordou com as imagens refletidas no fundo do olhos ou quando alguma criança chorando a tarde, no apartamento ao lado, te lembrou de repente a estátua da Pietá translúcida que percorreu tua noite anterior. O som dos teus cílios roçando o travesseiro quando você pisca é a única coisa que interrompe o silêncio imediato. Ao longe ressoam carros, mas a sensação é de que o mundo termina logo atrás das paredes, o resto são irrealidades inúteis. Seu corpo dói, como se estivesse atado ao colchão ou como se você tivesse praticado esportes durante a tarde, o que jamais seria um fato porque as vezes você sente que seu corpo é feito de vidro, ou do mesmo material que as asas de uma mariposa. Hoje você viu uma mariposa negra no banheiro e ao pensar na sua fragilidade a imagem se levanta, te cobre os olhos. Que seria de você se fosse realmente tão frágil como as asas? Os teus dias cansativos seriam algozes, Caronte te levando na barca, você percebe que Caronte é a figura mais intensa do Tempo. São três e quinze da manhã, você vai levantar cedo, provavelmente o despertador começará às sete, quando os olhos se abrirão para perceber que mais uma vez não há memória de um sonho qualquer, nenhuma imagem, nenhuma cor. Talvez então você pense em mentir, porque te é tão estranho não ter uma fantasia se manifestando quando é isso que a psicanálise diz que acontece, e você não quer duvidar,  sãopoucas as tuas chances e se eliminar cada uma delas só vai restar acordar todos os dias para perceber tuas qualidades de mariposa, de coisa tola, ignorada, você vai se encarar como o sendo comum encara a mariposa, uma cópia mal feita de uma borboleta. Mas é que a mariposa tem sua qualidade naquilo que falta à borboleta, sutileza, silêncio, não o berro da cor da borboleta. Mas o bater de asas da mariposa é o frenético debater-se do afogado, a mariposa e você se afogam na realidade da noite, e você não tem nem o alívio do votar, o alívio do sonho para que sua realidade se torne menos intragável. Amanhã acordará apenas para receber a vida em ondas opressivas se movimentando através dos vazios da rotina opaca, desnutrida de fantasias, que tem levado pelos últimos meses e que é como se você esfregasse o pó das asas da mariposa nos olhos, cada vez mais cego, incapaz de ver a luz no fim do túnel.

 

[Ver perfil de Eduardo Henrique Valmobida]

It won’t work out…

A first visit in an island
A first dive in another land
It won’t work out

A hidden traditional dance
A fleeting glance
It won’t work out either

A frenzy dance
What a romance
It won’t work out.

A lost Hamlet
Some crumbs of chocolate
It will not work out

A dry red wine
Family stories of mine
It won’t work out

A night view of the city
That’s the beauty
It won’t work out

Being cold
Good as gold
It won’t work out

But a singing bird into the desert
Waiting for a tree -staying inert
This is what will work out

A fish which flies away
Scared by a donkey bray
This is what will work out

Time is something incredible long
Says an old children song
This is what will work out

Arresting a crisis moment
Like a camera captures an instant
This is what will work out

I prefer the sound of a lute
So, now, finally, I am mute
This is what will work out

depois das lápides

o limite é lateral literal ou litoral já foi dito/ todos os outros estão coxos e você só sabe disso agora o que você veio fazer no clube ela diz que só está aqui para seu aniversário/ pediram champanhe e ainda parecem sedentos ele acabou de fazer trinta e tem má reputação anda por aí com essa triste reputação porque frequenta um clube de luta clandestino de porão/ depois que ele ganhar a rodada me encontra no banheiro/ eu sei que você está cansado de amar com ninguém para amar feche os olhos e deixe a palavra/ pintar mil fotos/ uma boa menina vale mais que mil cabras/ ninguém sabe o que ele realmente faz ele quer me sorver na pia e depois disso me dar algo para beber/ um passo para trás para obter coragem você lembra onde nos conhecemos/ o primeiro passo não há ninguém perfeito/ tenho o pior representante/ o natal se aproxima ela queria ver minha lista de desejos/ vou pedir a sua cabra para outras cabras/ talvez a gente ainda possa se ajoelhar nos degraus da igreja mas primeiro você deve lembrar como esquecer/ eu sei que você está cansado de amar com ninguém para amar/ basta pegar alguém pela mão/ não me deixe com ninguém para amar e cuidado com a boca/ Susana está em casa

[Perfil de Evelyn Blaut-Fernandes]