Parque Eduardo VII às 23h44

Em frente à Praia do Parque, perto das putas,
a solidão aperta bastante.
Não há praia nem amor ­— o néon do parque mente.
Outras raparigas também aqui choraram às 23h44.

Talvez a praia — como o amor —
esteja dentro da rapariga,
no diluvioso instante que lhe alaga o rosto todo
e se sente a maresia.

Baby shoes

For sale: baby shoes, never worn.

Ernest Hemingway

Durante a gestação do primeiro neto, o avô fez mais de uma dezena de sapatos minúsculos, ignorando a opinião desmotivadora da filha. «São bonitos e inúteis. Os bebés não andam. Para quê tantos sapatos?» Não respondia. Limitava-se a sorrir, olhando com orgulho para os sapatinhos de pele com atacadores, em várias cores, alinhados na prateleira da oficina onde gastara praticamente a vida toda a fazer sapatos para pés adultos. Agora que se reformara, e prestes a ser avô, finalmente podia fazer o que mais queria — sapatos de bebé. Pequenas obras de vestuário belas e inúteis; peças talhadas com tempo, pormenor e rigor. O nome do menino, cravado nas solas com caligrafia fina, conferia-lhes algo de joalharia — Ernest. Sou eu. O avô morreu no dia em que eu nasci, horas antes, e não pôde ver-me de sapatos calçados. Eu também não tenho memória de os ter usado, só o registo nas fotografias é que o comprova. Durante anos guardei-os na esperança de um dia ser pai e de voltarem a ter uso. Estão novos. Acho que só mos calçaram para as fotografias. A minha mãe, nunca entendi porquê, ridicularizava o trabalho do avô. «Um disparate. A trabalheira que teve a fazer sapatos para quem não anda.» A mãe morreu antes do meu acidente e não pôde perceber que os sapatos são importantes, mesmo para quem não anda. É claro que, desde que deixei de caminhar, não lhes gasto as solas. Mas nem por isso deixei de gostar de sapatos, quando são bem feitos. Lá porque sou aleijado continuo a ter direito a usá-los. Por isso, desde que capotei dentro do carro e deixei de conseguir dar-lhes uso no chão, continuei a comprá-los. Tenho uma grande coleção. Vale bastante dinheiro porque, lá está, tal como os sapatos que o avô me fez, estão novos. Mas ultimamente deixei de os comprar. Estou a juntar dinheiro para fazer uma grande aquisição. Mesmo no mercado negro as armas são caras. A pensão de invalidez é insuficiente. Ainda falta muito até ter o bastante e estou ansioso.

Então lembrei-me de vender a coleção de sapatos. A de bebé e a de adulto. Vou despachar tudo. Para onde irei posso ir descalço, embora, verdade seja dita, me custe. Os pés cobertos sempre dão alguma dignidade ao morto. Por isso, venderei todos os sapatos exceto um par. Chega bem.

Vou colocar um anúncio.

Vendem-se. Sapatos de bebé e de paraplégico. Como novos.

"Afinal"

1.

AFINAL
Quando o amante cai do pedestal,
surpreendemo-nos
Afinal, não era de loiça
a refinada arte sacra
Afinal, não quebra nem há-de partir
e só ameaça derreter exposta às altas temperaturas
do Hades, ou coisa semelhante que nos valha
Na melhor das hipóteses,
levará anos a decompor-se

Caído o fundamento ao amante,
descobre-se o santuário vívido
Afinal,
não passou de um pseudomilagre

Venderam-nos como viagem
a experiência histérica, inautêntica
Duas voltas de grotesco turismo
E nem por isso deixaremos de colocar nova estátua, novo santo,
na coluna que sustenta, afinal,
o nosso relicário.

 

2.

Façamos a sinopse
Conheces alguém, permites que se aproxime,
deixa-lo chegar mesmo, mesmo perto,
até te alimentar com palavras e gestos mansos
e ficares novamente uma criança, inocente e atenta,
ávida de doces, com o coração muito tenro; um vitelo, é isso,
transformas-te em gado novo
Só então verás o carrasco que te alimentou
Levar-te-á pelo cachaço ao matadouro

Isto acontece várias vezes na imaginação de um animal
Estudos atestam que a criatividade não é exclusivamente humana
Os estudos são, nas sociedades,
uma balança; certificam peso e veracidade aos factos.

 

3.

Por isso, e com vigor,
esfregou-lhe as gengivas e os dentes,
usando o indicador direito untado com pasta dentífrica
Numa prática contrária à das refeições,
explicou-lhe: um coração deve comer-se de boca limpa.