O DERRADEIRO POEMA SOBRE O VÍRUS (...)

O DERRADEIRO POEMA SOBRE O VÍRUS

                COM O SUBTÍTULO

            ABRIL EM CHERNOBLY

  Ou será Chernobly em Abril? Não sei,

não sei, não interessa! Este é o derradeiro

poema (quero dizer, Soneto) à vinda

do Birus, do Vírus, do Tirus. Tirus? Sim

vinte tiros (com sotaque do norte) no pé.

Mas pior é ver a Genética com a Estética

(mais alguma palavra que acabe em -ética?)

Bom, eu até procurava no dicionário mais

alguma bonita palavra, mas, confesso, não

me apetece nada ir receber o Camões.

E, sim, este poema, este soneto de cama,

é mau. É, claro, que é mau. Tinha de ser

mau para servir de lupa amplificadora

do vírus que anda por aí em jornais de

duas siglas. Mau até dar com um pau.

                          (até rima, já viram?)

Recapitulemos: este poema, sim, é o

derradeiro poema sobre o vírus. Mas

qual vírus? O da linguagem (Langua

ge is a virus) ou do contente nome?



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Laurie Anderson - O superman, 1982.

 

Pier Paolo Pasolini, “Trabalho o dia inteiro como um monge”

Tradução: João Coles

Trabalho o dia inteiro como um monge
e à noite passeio como um gato vadio
à procura de amor... Proporei
à Cúria de ser declarado santo.
Respondo à mistificação
com a brandura. Observo com o olho
de uma imagem os afectos à linchagem.
Olho para mim mesmo massacrado com a serena
coragem de um cientista. Pareço
sentir ódio, e porém escrevo
versos plenos de oportuno amor.
Estudo a perfídia como um fenómeno
fatal, como se dela não fosse objecto.
Sinto piedade pelos jovens fascistas,
e aos velhos, que os considero formas
do mais horrendo mal, oponho
apenas a violência da razão.
Passivo como um pássaro que vê
tudo, voando, e leva dentro do coração
no voo em pleno céu a consciência
que não perdoa.

21 de Junho 1962,

In Poesia in forma di rosa, Garzanti, 1964


Lavoro tutto il giorno come un monaco
e la notte in giro, come un gattaccio
in cerca d’amore... Farò proposta
alla Curia d’esser fatto santo.
Rispondo infatti alla mistificazione
con la mitezza. Guardo con l’occhio
d’un’immagine gli addetti al linciaggio.
Osservo me stesso massacrato col sereno
coraggio d’uno scenziato. Sembro
provare odio, e invece scrivo
dei versi pieni di puntuale amore.
Studio la perfidia come un fenomeno
fatale, quasi non ne fossi oggetto.
Ho pietà per i giovani fascisti,
e ai vecchi, che considero forme
del più orribile male, oppongo
solo la violenza della ragione.
Passivo come un uccello che vede
tutto, volando, e si porta in cuore
nel volo in cielo la coscienza
che non perdona.


21 giugno 1962

Da Poesia in forma di rosa, Garzanti, 1964

Do teu Quarto em Atenas (dois anos depois)

Do teu Quarto em Atenas (dois anos depois)

(…) Por isso te digo o seguinte: tu escreves fundo. Demasiado fundo, pouco fundo, à superfície e por dentro. Escreves por todo o lado. Mas mais do que tudo, o teu quarto não está vazio de gente. Pode ser pequeno, pode não haver espaço para todos os livros, filmes e gesso que lá guardas, mas ele está profusamente habitado e é acanhado porque tem muita gente lá dentro. (…)

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Oku no Hosomichi 

Recebi um livro de Bashō que não me lembro de ter encomendado, 

Não é sequer um livro de haikus, é um diário de viagem, 

Não sei quem o enviou, provavelmente alguém que já me esqueceu 

E no entanto, julga conhecer-me, li a versão em português, 

Numa das últimas visitas a Portugal, terá sido alguém com lugares comuns, 

Mas distantes, como as ilusões que partilhamos, as mentiras em que escolhemos acreditar 

E as verdades que não quisemos ver, deve ter sido alguém que me teve 

Como ninguém e mesmo assim me deixou secar na certeza de um aperto estrangulador, 

De Bashō, prefiro a poesia, em cada haiku a eternidade na simplicidade, 

Um beijo que se toma sempre fresco a cada nova leitura, um olhar que não se apaga, 

Mesmo assim, fiquei feliz com o livro, como quando se encontra uma carta 

Do dia de São Valentim, entre os cadernos de escola, uma carta ridícula e inocente, 

Agora inócua, como todos os amores que se consumiram até à cinza, 

Contudo seguro o livro com tristeza, nunca o irei ler, há viagens irrepetíveis e ainda bem. 

São Paulo 

12.03.2020 

Bónus para "um crítico" entediante

"Até a poesia (não me refiro a uns versos miseráveis que

um vate presumido deu ao país, há poucos dias), hoje

sentida como a mais entediante das artes, começa a

circular como um bónus, um suplemento pra gente entediada".

- António Guerreiro, telegrama de sexta-feira 27.03.20

       UM POETA FALA

 

Sempre estive mais preocupado

em ser melhor pessoa do que

melhor poeta ou outra coisa

qualquer. Sempre estive mais

preocupado em dizer o que

os outros fingem não ver.

Sempre estive mais preocupado

em terminar uma frase banal do

que suar por mais uma metáfora

de merda. Sempre estive mais

preocupado com a real vida do

que com a ausência de vida.

Sempre estive mais preocupado

em morrer e não voltar do que

voltar para dizer o mesmo que

agora e banalmente dito. Banal

como a flor que cai sobre as mãos

dos que ainda querem acreditar.

Sempre estive mais preocupado

em dizer a água transparente do

que a enigma mais elaborado.

Sempre estive mais preocupado

em ser esquecido do que lembrado.


MEIA LARANJA DE TÉDIO

 

Sobre a lareira um jasmim

pedia ao vento da janela

a vibração que não tinha.

Sem braços fechado na

caixinha do tédio só lhe

restava namorar a laranja

sobre a mesa – sossegada

tão segura da sua perfeita

cor pouco tinha a oferecer.

Se ao menos nessas chamas

do tédio pudesse tocar-lhe

ganharia meia dose para

aturar-se a si próprio por

mais uma longa temporada.

          Exercício Cesaryniano

 

É preciso dizer Intervalo em vez de dizer Morte

é preciso dizer Outro em vez de dizer Umbigo

é preciso dizer Ternura em vez de dizer Febre

é preciso dizer Planeta em vez de dizer Mundo

 

É preciso dizer Oração em vez de dizer Tablet

é preciso dizer Hoje em vez de dizer Amanhã

é preciso dizer Silêncio em vez de dizer Rapidez

é preciso dizer Mãe em vez de dizer distância


GUSTON CRUCIFICADO EM PRAÇA PÚBLICA

 

O grupo ria muito.

Tinham entre si aquela facilidade de fingir

como quem vai às comprar num domingo à tarde.

A Gallery of the king fechara cedo.

Amarelo carmim azul cobalto

algum verde esmeralda sob o braço

era a altura de estender as telas e

escrever tudo aquilo que era suposto escrever.

Pintar quero eu dizer!

E pintava “macacos” figuras grotescas que saiam

do padrão aceite

afinal eram o grupo da expressão calculada

sem linha fechada sem contorno.

Com a galeria fechada Guston mudou de rumo

sentou-se no seu estúdio e começou a desenhar

freneticamente mas antes

prevendo as linhas do tempo futuro

como bom artista que era

desenhou a tabela das inimizades.

E os dias foram crescendo

Amigo D.F.    X    Amigo D.K.    X    Amigo E.F.   X

Amigo G.S.   X    Amigo F.H.     X    Amigo F.F.   X

E a cada dia que passava a lista crescia crescia

e nada o demovia a regressar aos

padrões do grupo

era teimoso tão teimoso como

um perfil geométrico de Piero della Francesca.

Meio ano depois

Guston tinha matado todos os Deuses outra vez.

um a seguir a outro e outro e outro e outro.

Ao fim desse ano

a fogueira foi armada na praça pública -

o castigo era agora inevitável.

Guston queimado despedaçara o seu coração

mas chegara ao cúmulo do seu destino certo:

o pódio da liberdade.

 O LADO CERTO


É a capacidade de produzir discursos

(ou será Descursioós?) trôpegos,


precários, ricos em jogos telúricos, em

ERROS de bárbara transcrição; herdeiros


da educação mais elevada, feita na

sombra, no silêncio e na recusa, que 



conseguem evitar o lado errado da vida!

Porque o excesso de razão cega loucamente

como se pode ler na cuidada gramática

do teu pulso que nada acrescenta à vida.

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 Julian Schnabel, 2020