2 Poemas de Jacques Dupin

Tradução: Vítor Teves

Desde que a minha palavra seja obscura ela respira
 
seus braços mergulhados na água gelada
entre as algas verdes de outras presas
geladas como as lâmpadas no dia
 
Tão pouca realidade alcança os vivos
lança violência ou a semeia
arduamente sobre a pedra e as águas
 
o céu esticou a escansão dos martelos
alguns entre nós entramos intercedendo
para produzir novas nuvens
 
……………………………………………………………………
 
Aberta em poucas palavras
como por um remoinho, numa qualquer parede,
um recesso, nem mesmo uma janela
 
para manter a pouca distância
esta região da noite onde o caminho se perde
 
exausta uma palavra nua
 
………………………………………………………………………

 

Tant que ma parole est obscure il respire
 
ses bras plongt dans l’eau glacée
entre les algues vers d’autres proies
glacées comme des lampes dans le jour
 
Si peu de réalite parvient au vivant
qu’il fasse violence ou qu’il séme
hardiment sur la Pierre et les eaux
 
le ciel tendu la scansion des marteaux
quelques-uns parmi nous sont entres intercédant
pour produire de nouveaux nuages
 
……………………………………………………………………
 
Ouvert en peu de mots,
comme par un remous, dans quelque mur,
une embrasure, pas même une fenêtre
 
pour maintenir à bout de bras
cette contrée de nuit où le chemin se perd,
 
à bout de forces une parole nue

 
                                            De: “Cops Clairvoyant” (1963-1982) (Gallimard,1999) /

                                                   “Corpo Clarivedente” (1963-1982) (Gallimard,1999)

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Retrato de Jacques Dupin por Alberto Giacometti, 1965.

Postais de Boas-Festas

Árvore da Vida, Gustav Klimt

Árvore da Vida, Gustav Klimt

Há muitos séculos, a cultura semita decidiu transformar os ritos pagãos do solstício de Inverno numa narrativa mais encantatória. Havia palavras e gramática suficientes para essa revolução, e é sabido que sempre que pode haver uma revolução, há. Assim nasceu o Natal (faço uma filologia à la Nietzsche), outra forma de enaltecer as conjuras astronómicas que travavam o avanço da escuridão.

Primeiro, quando ainda éramos biológicos, celebrou-se a emergência da vida e a fortaleza da família ou da tribo. Depois, pouco a pouco, sob o impulso de um cristianismo cada vez mais metafísico, desfiaram-se chamamentos ao Além, misericordioso e enigmático. Continuou-se a louvar a vida, mas era de outro tipo, descarnada.

Finalmente, vieram as generosidade e bondade, sem moderação, ligadas a coisas humanas, demasiado humanas. O festim gargantuesco substituiu qualquer resquício de espiritualidade (mais do que religiosa), agora arremessamos prendas uns aos outros e comemos até à sobre-saciedade. Há, é verdade, uma brisa de mudança no ar, parece insinuar-se uma nova frugalidade, mas está longe de ser relevante.

É neste quadro (talvez imitando Francis Bacon) que me permito desejar-vos, queridos leitores, boas-festas. Se possível retomando a embriaguez original do ciclo lunar, quando ainda se sentia um aperto explosivo no coração porque o dia tinha resistido ao progresso mortífero da noite.

Victor Gonçalves


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O Natal é também um ritual de transição. Todos os anos bebemos à pessoa que fomos nos últimos doze meses, com mais ou menos alívio de abandonar esta pele, abraçando o que é novo com mais ou menos sofreguidão. Celebremos os que já não estão connosco à mesa. Sejamos preguiçosos. Tiremos uns dias para ver filmes, para ler livros, para passar tempo com aqueles que amamos. Talvez façamos menos merda no próximo ano. Talvez seja possível sermos melhores. Para todos um Feliz Natal e um bom 2019.

José Pedro Moreira


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Fra Angelico pintou esta Anunciação em meados do século XV e pode ser vista no Convento de S. Marco em Florença. Não sei se alguém alguma vez escreveu algumas linhas sobre o desastre que este fresco parece ser em termos de linguagem corporal da Virgem. “Porquê eu??, meu Deus!!,” é o que todo o corpo dela diz. O rosto dela deveria expressar a gravidade do momento e a sua inata bondade, a humildade que recai sobre os escolhidos para um dever que em muito ultrapassa as suas capacidades. Mas há na postura do corpo qualquer coisa de defensivo, como implícito nos braços cruzados e que não encontra eco na postura do anjo (embora os braços dele estejam na mesma posição, o corpo inclinado para a frente sugere mais ataque do que defesa, e os braços cruzados são um reconhecimento da tensão no corpo da Virgem). E, no entanto, qualquer coisa no rosto dela trai o princípio de uma abertura.

A vida, assim o prova o ciclo de um ano, está cheia de situações impossíveis, tensas, imprevistas. Politicamente o ano foi um desastre. O mundo é um lugar menos aberto. Restam-nos os pequenos mistérios, a felicidade que existe em coisas inesperadas, a possibilidade de não nos fecharmos no nosso lugar, de querermos viver entre as coisas que nos ultrapassam. E talvez até isso que um frade nascido na periferia de Florença há mais de seiscentos anos entreviu ao pintar as asas coloridas deste anjo doce e um pouco efeminado: o lado misterioso das mensagens que os outros nos trazem, a adequação do imprevisto enquanto resposta tanto para os perigos quanto para as monotonias da existência (se nós não cairmos no desespero ou na indiferença quando eles nos calham), a urgência da vida que nos varre com ela.

Não me apetece decidir muita coisa para 2019, ainda que isso seja mais ou menos inevitável: depois desta breve trégua, o ano novo virá com os seus velhos combates e as suas parvoíces renovadas, mas um dos melhores poemas que li este ano (em Fuck the Polis de João Miguel Fernandes Jorge) acabava com dois ou três versos em que se podia ler qualquer coisa como: come a tua comida, lê os teus livros, vais continuar a existir. Pode existir entre o lado forte do mundo, que ataca, e o lado que se defende, alguma ternura, uma aliança de onde algo de melhor possa vir.

Que sempre que penso na Virgem, grávida sem querer, também pense que o mundo precisava de uma Anunciação pintada por Paula Rego é matéria para outro postal.

Tendo dito isto, um excelente 2019, meus caros leitores!

Tatiana Faia


Que este ano o Natal seja sinónimo de alienação para todos: vivam as fantasias, vivam as desconstruções, mas vivam sobretudo as alienações: é daqui que nasce o caos e do caos também nascem flores.

João Coles

Porto Ainda 

Tenho levado repetidas vezes amores à nossa cidade, 
Todos acabaram por se perder, ao contrário do que de ti 
Ainda uso em sonhos, lá fui feliz com elas, dias de Sol, 
A cidade contigo aparece-me sempre cinzenta, 
Mesmo assim preferia ter recebido das tuas mãos 
O prazer que trocamos em crepúsculos dourados, 
Estranhamente não encontro mais as nossas ruas, 
Não sei mais se é a cidade que não é a mesma ou eu, 
E tu apenas a recordação ridícula de um pedaço de caminho, 
Fundo como o vento, devias estar com o que já passou, 
Estranho-me quando penso que as espelhei no rio, 
Uma a uma, ainda com os seus sabores na boca, 
Como comparando-as com o que mais amei 
Daquela cidade, a vontade do teu desejo triste. 
 

17.12.2018 

Turku

"Maria" de Bertolt Brecht - um poema de Natal

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Tradução: J. Carlos Teixeira

Maria

A noite do seu primeiro parto tinha sido
Fria. Nos anos seguintes, porém,
Esqueceu inteiramente 
O gelo nas vigas da mágoa e a fornalha fumegante 
E o sufoco das secundinas pela manhã.
Mas mais do que isso, esqueceu a vergonha amarga
De não estar só
E que é tão própria do pobre. 
Principalmente por isso,
Anos depois fez-se festa, na qual
Tudo havia.
O grulhar cru dos pastores calou-se. 
Mais tarde, a história fá-los-ia reis. 
O vento, que era muito frio,
Fez-se canto dos anjos. 
Sim, do buraco no teto por onde o gelo entrava, ficou apenas
A estrela que por aí espreitava.
Tudo isto
Veio do rosto do seu filho, que era simples,
Amava o canto,
Chamava os pobres até ele,
E tinha o hábito de viver entre os reis 
E de ver à noite uma estrela pairando sobre si.


Maria

Die Nacht ihrer ersten Geburt war 
Kalt gewesen. In späteren Jahren aber
Vergaß sie gänzlich
Den Frost in den Kummerbalken und rauchenden Ofen
Und das Würgen der Nachgeburt gegen Morgen zu.
Aber vor allem vergaß sie die bittere Scham
Nicht allein zu sein
Die dem Armen eigen ist.
Hauptsächlich deshalb
Ward es in späteren Jahren zum Fest, bei dem
Alles dabei war.
Das rohe Geschwätz der Hirten verstummte.
Später wurden aus ihnen Könige in der Geschichte.
Der Wind, der sehr kalt war
Wurde zum Engelsgesang.
Ja, von dem Loch im Dach, das den Frost einließ, blieb nur
Der Stern, der hineinsah.
Alles dies
Kam vom Gesicht ihres Sohnes, der leicht war
Gesang liebte
Arme zu sich lud
Und die Gewohnheit hatte, unter Königen zu leben
Und einen Stern über sich zu sehen zur Nachtzeit.

Relato de Gustavo Soares

Dorothea Lange, Eloy, Arizona, 1934

Dorothea Lange, Eloy, Arizona, 1934

Diz Gustavo Soares, escreve, num pequeno caderno de apontamentos que me veio parar às mãos, mais propriamente à secretária, num primeiro momento, por procedimento de ofício, e depois, passados dois dias, efectivamente às mãos, escreve Gustavo Soares ter feito do seu local de trabalho, ao longo dos anos e por ardis cuja moralidade me escusarei de avaliar, plataforma de sedução, de engate (segundo escreve), tendo como alvo jovens do sexo feminino, frequentadoras dos banhos termais de Santana, onde até há bem pouco o indivíduo trabalhava como funcionário, repartindo o horário laboral entre tarefas administrativas, atendimento ao público e serviços de manutenção geral. Escreve, cito: fiquei a saber da parte de um conhecido, de um quase semi-amigo, psicólogo ou psiquiatra de profissão, que os indivíduos do sexo feminino, nomeadamente as mulheres mais jovens, com passado complicado no que à relação com o pai diz respeito, principalmente por morte ou abandono deste, têm maior propensão a deixar-se seduzir por homens mais velhos, não exactamente por idosos, mas por indivíduos cuja idade, estatuto e aparência física possa preencher na sua psique o lugar deixado vazio por uma figura paternal ausente. Como eu. Continua: esse dado, associado a uma necessidade premente de satisfação sexual, por me encontrar de momento a solo nesta vida (escreve mesmo assim, a solo), inspirou-me a conceber uma estratégia com vista à obtenção de alguma informação mais concreta relativa à paternidade de uma ou outra frequentadora deste charco, de modo, como se depreenderá, a aumentar as hipóteses de sucesso das minhas planeadas investidas. Sob o pretetxto de uma reformulação e actualização das fichas de inscrição do estabelecimento, pude abordar, numa primeira fase, três moças de considerável potencial para os meus objectivos, tendo-lhes então solicitado novo preenchimento do formulário em questão, ao qual havia acrescentado, por minha própria iniciativa e sem o conluio ou sequer o conhecimento de qualquer outro colega, o campo “Filiação” (numa primeira versão, amadoramente referido como “Nome do Pai / Nome da Mãe”, tendo igualmente sido considerada a hipótese, porventura menos discreta e logo abandonada, de pretender recolher mais dados pessoais acerca do pai da jovem em questão, de forma a avaliar o grau de proximidade entre os dois). Tendo havido pronta colaboração das jovens em causa, sensíveis às costumeiras burocracias dos estabelecimentos de recreio e terapia do Estado, quis a sorte ter uma delas apenas preenchido o nome da mãe (escuso-me, por algum sobrevivente dever de confidencialidade, a revelar aqui quaisquer nomes), sugerindo orfandade, corte de relações, ou pura e simplesmente um desconhecimento da identidade do pai, fruto de abandono em tenra idade ou de promiscuidade sexual materna. À primeira oportunidade que tive, saía a moça em questão do balneário em direção à sopa (a maior e principal piscina de água quente no recinto), interpelei-a a esse propósito (Peço desculpa, Menina S., se me permite), justificando a diligência pela necessidade de manter nos registos formulários devida e integralmente preenchidos. Pude então obter da senhorita a sentida e honesta confissão de que não, não podia dizer-me o nome do pai, pelo simples facto de o desconhecer por completo. Terá aí começado, nesse momento de espontânea abertura, uma relação de crescente intimidade, por mim potenciada sempre que possível, com o propósito já aqui exposto, confessa Gustavo Soares no seu relato.

Descreve Gustavo Soares ao pormenor o aspecto físico da acompanhante (nas suas palavras, a mulher que me acompanhava e, mais adiante, por evidente escrúpulo profissional, a utente, a cliente), concentrando-se com especial interesse na ossatura, e avaliando também a feliz adaptação de carnes e músculos às protuberâncias ósseas. Tudo aquilo tão fascinante, ainda que ao mesmo tempo distante do foco principal do seu relato. Ou talvez eu me equivoque por completo, não saiba de todo, sim, estou porventura enganado e este caderno de notas e impressões, na sua caligrafia cuidada, a dar-se toda a ler por qualquer um, não pretenda fixar os contornos principais de um caso de polícia, desse negligente descuido que os nossos serviços de vigilância cometeram no espaço público de umas termas municipais, mas sim registar aquela figura feminina (sou eu que assim a chamo) nas mais variadas poses e movimentações, sim, em todas as diversas poses que obrigam o corpo a torcer-se ou endireitar-se, como quando Gustavo Soares, levando-a pela mão pelos corredores ilicitamente iluminados dos banhos e chegando ao salão da piscina principal, descobriu os nossos agentes nos preparos e empreendimentos que a mim mais interessa registar. Conta Gustavo Soares, logrei convencer a utente, após um bom número de encontros crescentemente românticos, a cometer delito de trespasse, a saber, penetrar comigo o espaço termal fora do horário de abertura, fazendo dele, por este meio, privado espaço de recreação nocturna. Queria tirar-lhe a roupa e beijá-la muito, admite. Primeiro tirar-lhe as peças de roupa, depois beijá-la imenso nas minhas partes preferidas, em particular nos recantos e ângulos que já lhe admirara. Joelho, escreve, dobra de joelho, leitoso interior de coxa, ventre, colo, carnes axilares. Já ilicitamente infiltrados no interior das termas, relata Gustavo Soares, ao dobrar ligeiramente a esquina do corredor, provenientes do bebedouro na direcção da piscina mais quente, pude imediatamente vislumbrar dois homens dentro de água, em silêncio, ocupados com uma qualquer instalação de cabos eléctricos que não pude no momento perceber. Detenho o passo e com o corpo impeço também que a utente prossiga, embalada atrás de mim. Vai para falar mas já eu estou em cima dela e ponho-lhe a mão sobre a boca, sem violência, antecipando-me com elegância, porque já sei que seguramente haveria de dizer alguma coisa, perguntar o que se passa, não é por aqui?, qualquer coisa, não tendo visto, como eu, dois indivíduos na piscina, de fato de banho, com água a meio torso, junto aos tabuleiros de xadrez em mármore, que no centro da piscina costumam entreter os clientes mais idosos, ocupados eles, os dois sujeitos, com fios e pequenos dispositivos. Viro-me para ela, coloco-lhe a mão direita sobre a boca e com esquerda, quase ao mesmo tempo, envolvo-lhe a cintura de adolescente, puxando-a para mim, para mantê-la sob controlo, imobilizada, consciente portanto de uma certa gravidade de circunstâncias, embora sem o temor ou tensão extrema resultantes da noção de um perigo, descreve assim Gustavo Soares, virando aqui a página do seu caderno. E na folha seguinte continua, puxo-a para mim e de imediato sinto a proeminência do ílio na minha coxa, numa agradável pressão de ossos, empolada pela aventura da situação. Segredo-lhe, não digas nada, estão ali pessoas, e sem que disso esteja de início consciente, percorro-lhe com os dedos da mão esquerda o vale (sim, Gustavo escreve vale) que ao fundo das costas antecipa as nádegas volumosas. Segredo-lhe isto, menos em jeito de alerta que de pedido caridoso, e passo o olhar, num relance, pela fascinante elevação óssea por detrás da orelha de leite. Recordo a primeira vez em que pude contemplar-lhe o que vim a saber chamar-se processo mastóide do osso temporal.

Recordei nesse momento? Ou talvez agora, que escrevo este relato, para memória futura, deleite ou desplante de alguém que não conheço. Foi no nosso segundo encontro, sentados num banco do Jardim de Santana, ela a falar-me do pai desconhecido, desse não-pai que ali me servia de poderoso aliado, e eu a olhar-lhe a face de perfil, o descomunal comprimento das pestanas maquilhadas, o movimento dos lábios na verbalização dos revezes da existência. Enumera Gustavo Soares, o olhar virado para diante, à procura talvez desse pai perdido no mundo, o cabelo arrumado por detrás da orelha sublime por dedos lestos e nervosos. E depois, entrevisto por entre os cabelos dourados, aquela maciça orla de crânio, montículo redondo de osso a anunciar a planura do pescoço, decorado por um sinal muito pequeno e muito escuro, descaído sobre o lado direito. A luz da tarde colaborava. E após o pai (tenta aqui Gustavo Soares recriar-se no conceito do já enunciado não-pai, mas sem grande sucesso, arriscando despai, impai, ambas as soluções rasuradas), ao mesmo tempo que por dentro me regozijo na descoberta daquele tesouro, passa ela de um momento para o outro a queixar-se da mãe, olhando-me apenas por um segundo, para se certificar da minha atenção. Estou mais atento que nunca, absorvido por completo, e ela agora desencosta-se do banco e fica ligeiramente dobrada para a frente, com as mãos unidas sobre as coxas, e o melhor osso do ano revela-se ainda mais, num ângulo mais favorável. Eu a escutá-la, não obstante, que a mãe realmente não sabia como amar uma filha, que na verdade nunca soubera o que era o amor, e que ela agora temia um dia ser mãe e também não saber como é, como se faz. Tenho nesse instante o meu cérebro partido ao meio, escreve assim mesmo Gustavo Soares. Dois processos cognitivos desenvolvem-se em simultâneo, como sempre acontece quando estou com ela. A forma e o fundo. Nesse banco de jardim, mais tarde no corredor nocturno dos banhos termais e também da última vez que a vi, nesse dia que, em podendo escolher, preferiria nunca mais recordar. Dois registos diversos, mais concomitantes. As coisas dela e a minha coisa. Sim, o cérebro a querer respeitar reflexões de espírito, assuntos importantes, mas sequioso da imediatez da carne, escreve Gustavo Soares, muito sério e ponderado, com a tinta preta da caneta já sem o fôlego inicial.

Muda para o azul, prossegue. Liberto-a, primeiro a mão da boca e logo a seguir o braço da cintura. Ela encosta-se à parede do corredor, aparentemente tranquila, sem aquela perigosa urgência de ver pelos seus próprios olhos. Eu sim que preciso. Quero ver mais pelos próprios olhos. Quero, devo. Ainda que fora do horário de serviço, sou funcionário deste estabelecimento termal, lembra Gustavo Soares. Preciso de ver, preciso de entender, quem se move no meu domínio. Dois indivíduos de fato de banho instalam um qualquer aparelho no interior de um ralo de escoamento, na face superior da estrutura central da piscina, com os seus bancos e tabuleiros de xadrez. Estão agora a repôr a tampa do ralo e parecem fazer testes de som. Auriculares nos ouvidos, receptor na mão. Um deles diz, fui a casa da vizinha pedir ovos mas ela não estava. A minha acompanhante encontra-se também toda à escuta e a estas palavras franze o sobrolho numa expressão de estranheza. O mesmo indivíduo acrescenta então, na Argentina o gado bovino supera em cabeças o número de habitantes. Quero explicar à utente que os homens estão a testar um aparelho de escuta, e não a fazer enigmática conversa de circunstância. Quero explicar-lhe, pois está quase a rir-se, ignorante da gravidade da situação, por isso puxo-a um pouco mais para junto de mim, para o limiar do meu ângulo de visão, para que também ela veja, para que se inteire e assim saibamos os dois a mesma coisa. Sinto-lhe no corpo um estremecimento, creio que percebe o que afinal se passa. Não sei se terá completa consciência, mas estas situações não são desconhecidas. Máquinas de ouvir e registar. Gente detida e interrogada por algo dito em confidência. Tenho ouvido dizer, e de repente, sem que o tenha previsto, sinto um rasgo de indignação atravessar-me o corpo e estou para entrar no recinto de rompante e pôr um termo a tudo aquilo. Estou afinal no meu direito, sou funcionário do estabelecimento, apesar de a desoras, em flagrante prática de delito ligeiro. Mas quando estou para avançar sinto-a puxar-me o braço. Olha para mim, com uma expressão de gravidade a tender para um pedido que não pode ali verbalizar. Está a dizer-me que não, que não faça nada, que o melhor é agora virar costas e sair dali . Penso que não quer ver-me em perigo, ver-nos aos dois em perigo. Olho para ela e percebo. Desejo por um lado confrontar aquelas presenças insultuosas, mas ao mesmo tempo sei que isso ditaria o final abrupto dos meus planos com ela. E desse modo, eu próprio preso, morto ou no mínimo desmascarado, não poderia concretizar o meu sonho. Aquilo que eu ainda não lhe disse, que ainda não lhe tive coragem ou palavras certas para dizer (será preciso?), mas que tenho mesmo de alcançar, pois é da natureza dos sonhos, ou da própria natureza deste em particular, a absoluta necessidade de concretização, para que no meu caso algo faça sentido e eu possa acreditar ainda que nem tudo é estrita efabulação da mente, e sempre é possível alguma coisa verter-se em realidade, em momento que depois se recorde e, como num ciclo que se repita, trate por sua vez de alimentar a cabeça por muito tempo.

Fecho o caderno, pois o parágrafo seguinte vem antecedido de uma enorme rasura de meia página. Palavras ilegíveis que desse modo me fazem parar, suspender a leitura, para reflectir. Desconheço os motivos da redacção deste relato e na verdade não sei o que fazer com ele. Devo extrair destas notas, de acordo com o procedimento, o essencial para os nossos serviços. O chefe diz, o tutano. Só que eu não entendo porque Gustavo Soares nos conta tanto ou me conta mais do que eu precisaria de saber. Quer mostrar-nos conhecer as nossas transgressões, mas desconheço porque nos revela as dele. É que assim fico confundido e já não sei o que é realmente importante naquelas linhas. Sabemos que se demitiu do trabalho nas termas municipais no final do mês passado e que no dia seguinte partiu para parte incerta, tendo enviado por correio este caderno, ao cuidado do nosso director. Estou em crer que devo tão somente registar as circunstâncias em que os nossos instaladores foram detectados na execução das suas tarefas. Requerer informação acerca do actual estado de funcionamento do sistema de registo e gravação do estabelecimento termal de Santana. Recomendar averiguações junto dos funcionários do dito estabelecimento, a fim de avaliar a extensão do conhecimento acerca das nossas actividades de vigilância. E consoante os resultados dessas averiguações, recomendar ou não o desmantelamento das escutas. Ou então ir à procurar dela, da senhorita S. Ou simplesmente não fazer nada, cruzar os braços à luz baça de Outono, e esperar que Gustavo Soares reapareça ou se dilua no tempo. Esquecer o homem, deixá-lo em paz e esperar até que tenha logrado realizar o dito sonho. Viro a página.

É muito de manhã e ela dorme ainda. Está deitada ao meu lado, com uma das pernas de fora, joelho subido à altura do ventre e cobertor preso entre as pernas. Vem-me à cabeça transmitir-lhe algumas regras no que ao dormir juntos diz respeito, em particular a proibição de se reter ou monopolizar o cobertor comum, o qual deve, em condições ideais, ocupar sempre toda a extensão do leito, sem deslocações excessivas ou escusadas entradas de ar. Penso que irá perceber. A primeira luz do dia alastra pelo quarto empoeirado. Tento reconstituir um sonho, mas não consigo. A presença dela domina-me. Passo os olhos por uma marca de nascença que já me é bem conhecida. Na coxa, um pouco acima do joelho. Sei que se aparenta com uma qualquer ilha do nosso planeta, tenho a certeza. Folheei certo dia todo um atlas diante dela, à procura da ilha perfeita e contentei-me na altura com uma grã-bretanha esguia e deformada à esquerda. Agora penso, devo continuar à procura. Talvez na imensidão do pacífico descubra a amplificação física de uma perna despida. Ela dorme profundamente e dentro das calças de pijama intuo a possibilidade de concretizar com ela o tal sonho de sempre. Está muito duro, o grande barco, e húmido na ponta. Já muito molhado da contemplação de lençóis desfeitos e terras britânicas. Saio da cama, tiro-o para fora e coloco-me de pé, diante dela, do seu rosto adormecido. E começo então a passar-lho muito lentamente pelos lábios semi-cerrados, primeiro o de cima, depois o de baixo, muito devagar, em jeito de maquilhagem lenta ou combate ao cieiro. Entusiasmo-me muito aos brilhos que lhe ponho na boca, com ela a dormir numa paz de fazer inveja. E imagino então que, a meio de um sonho enigmático, todo feito de fragmentos desconjuntados, ela entreabre os lábios para pronunciar uns quantos projectos de palavra, pedidos incompreensíveis, mas sem urgência, não, sem qualquer angústia ou alvoroço. E eu então passo-lho também muito ao de leve pela fileira dos dentes, várias vezes, de um lado para o outro, envolvido por lábios de seda, inconscientes. Depois volto a guardar o grande barco e beijo-lhe a testa despenteada. Deixo-a dormir e vou fazer café.