Roger Federer

Jogo ténis federado há bastante tempo, vou a torneios (sem grandes resultados, diga-se) e treino cerca de 3 vezes por semana. Vim do basquetebol, uma transição difícil, ali muitas coisas fazem-se no ar, o cesto fica lá em cima, no ténis, pelo contrário, os pés devem estar bem assentes no chão, embora não fixos, cada golpe de raquete (ou raqueta) tem de ser desenhado e impulsionado com os pés em contacto com o solo (há excepções, mas é muito difícil bater bem a bola em suspensão e será sempre uma pancada de recurso). Vi aparecer Roger Federer no circuito há cerca de 15 anos, e já na altura o achava genial, tecnicamente genial, mas tacticamente inconsistente, incapaz de se tornar um competidor de topo, de vencer sistematicamente os melhores jogadores. Isto parecia demonstrado por entre 1999 e 2002 ter perdido 3 vezes na 1.ª ronda de Wimbledon. Subitamente, contra os mais justos prognósticos, em 2003 ganha o torneio, o primeiro de 5 consecutivos.

Enganei-me tanto na minha avaliação que agora, apesar de conhecer muito melhor este jogo (hesito em chamar-lhe desporto), quase não aposto no futuro de jovens jogadores. Bom, mas ainda bem que errei, mesmo tendo sido um “erro forçado”, isso significa que Roger Federer foi capaz de desenvolver uma inteligência táctica ao nível da sua extraordinária qualidade técnica. Culminando na vitória de ontem em Wimbledon, a 8.ª (sem perder qualquer set), aos quase 36 anos (idade incompatível com a importância de se ser fisicamente explosivo, mas Federer compensa isso integrando harmoniosamente no seu jogo a experiência acumulada), aliás, este ano venceu o open da Austrália e os master 1000 de Indiana Wells e Miami, uma verdadeira excentricidade, questão de mito mais do que de realidade.

O blogue da Enfermaria partilhou há dias um artigo magnífico de David Foster Wallace, que foi jogador de ténis no circuito universitário americano antes de se dedicar à vertigem da escrita, a linha de sentido está no título: “Roger Federer as Religious Experience”. E Wallace escreveu isto em 2006, quando Federer tinha apenas 8 Grand Slams, hoje, com 19, só poderia ser considerado uma religião (inspiradora mais do que prescritiva). Milhares de outros artigos, sem exagero, foram e vão ser escritos sobre este acontecimento épico, não quero rivalizar com a qualidade de muitos, sobre ténis escrevem poetas e prosadores de alto gabarito. Mas não pude calar o impulso para render homenagem ao jogador que mais me inspirou, dizendo-me repetidamente sem reservas que não basta “pôr a bola do outro lado”, é preciso fazê-lo respondendo a certos imperativos do belo. É preferível fazer 50 erros não forçados a tentar uma pancada “perfeita” (é aqui que mora a beleza do ténis) do que ganhar um jogo a “cortar fiambre”, a dar “madeiradas” eficazes ou a lançar “bolas mortas ao adversário”.

É já um cliché dizer que Federer joga para lá de ténis, que o que ele faz tem mais a ver com a respiração cósmica misturada com leis da física sublimadas pela arte do que com bater numa bola com a raquete num campo. Tudo nele parece irredutivelmente natural, nenhum gesto é forçado, não se descortina cansaço, quase não transpira, baila no campo, devolve a bola de tantas maneiras que parece testar todas as possibilidades do jogo, e é silencioso, porque não precisa de qualquer exterior, o campo, a bola, a raquete e ele são uma totalidade plena, nada é acidental, artificial no seu jogo, ele é o jogo. É por isso que Federer suspende o tempo, uma resposta de esquerda angulada, um slice, um vólei... e o tempo pára, o que ele faz não foi previsto pelos demiurgos. E pronto, fica o apontamento, tosco, mas é meu dever escrever sobre o que admiro, o que me leva a tornar-me qualquer coisa de diferente. Hoje à noite, lá vou tentar no treino imitá-lo, o que resulta sempre num certo ridículo, mas por vezes vislumbro uma ténue aproximação, e isso basta-me. Para a história pode ficar a frase que Miguel Esteves Cardoso escreveu no Público: Federer “Não é só o melhor tenista de sempre. Melhorou o próprio jogo.”

 

Salman Rushdie: "Bem-vindos à era do impossível"

Numa entrevista recente para a revista de divulgação filosófica francesa Philosophie Magazine, Salman Rushdie desenvolve um pensamento crítico sobre os tempos que correm (não costumamos dizer que os “tempos andam”), resumido, como indico no título, no sintagma a “era do impossível”. Permito-me, tentando respeitar o princípio de propriedade intelectual da revista, expor as linhas de reflexão para mim mais importantes, acrescentando-lhe porventura alguns suplementos discursivos.

1. Uma fatwa individual e universal. Recordamo-nos da polémica teológica, e política, que a publicação de The Satanic Verses provocou em 1988, culminando na fatwa lançada pelo Ayatollah Ruhollah Khomeini em Fevereiro de 1989, à época líder supremo da teocracia iraniana. Rushdie, ateu, mas de cultura muçulmana, tinha ousado blasfemar contra o islão e o seu livro sagrado, o Alcorão; ao mesmo tempo, agravando a acusação, declaravam-no apóstata. Rushdie passou então a viver na clandestinidade, ainda hoje, em Nova Iorque, a sua segurança exige cuidados extremos. O histrionismo fanático provocou tumultos em várias cidades, editores e tradutores foram atacados ou mortos e o próprio Rushdie escapou por pouco a um atentando em Agosto de 1989. Enfim, os maníacos de Deus traçaram linhas de vingança e de reparação moral que passaram por tentar aniquilar todos os “impuros” que, de uma forma ou de outra, estiveram ligados a este projecto editorial. Recorde-se que ainda hoje, segundo os Guardas da Revolução iraniana, permanece válida a fatwa contra Rushdie. Mas, para o autor, esta espada de Dâmocles pende sobre todas as cabeças que querem “usufruir da liberdade de expressão, ter a possibilidade de não acreditar, beber um copo de vinho numa esplanada, ouvir música; como também sobre todas as mulheres que não desejam usar véu nem viver sobre o domínio dos homens... fomos todos condenados à morte pelos fanáticos.” Explanação que encaixa no 11 de Setembro de 2001 e posteriores ataques terroristas, destacando-se os do Bataclan e de Manchester.

2. A era dos impossíveis, ou como criar contradições estéreis. Rushdie convoca três impossibilidades que incarnam a realidade actual, são impossíveis-possíveis que desafiam a ideia de que o mundo é tendencialmente lógico. À pergunta sobre por que razão se sente inquieto, Rushdie responde que “entramos na era do impossível”. Justifica-se com três exemplos: a) o Brexit. A sua educação inglesa (diplomado pela Universidade de Cambridge em 1968) mostrou-lhe sempre os ingleses como “pessoas sensatas, inteligentes e calmas”, formados no pragmatismo dos comerciantes. Parecia-lhe, pois, impossível um Brexit que põe o país numa situação geopoliticamente insustentável, quase pária, com dificuldades reais em encontrar o seu lugar na rede das relações internacionais. b) Donald Trump. Vivendo em Nova Iorque, Rushdie testemunhou uma tendência de cosmopolitismo e aprofundamento das liberdades individuais nos dois mandatos de Barack Obama. Tanto mais que este presidente recuperou a economia da crise dos subprimes, “A América aberta e liberal (no sentido americano do termo) tinha ganho.” Mas houve uma guinada, e a estupidez e a autocracia tomaram conta da Casa Branca, admitindo Rushdie que afinal não tinha percebido bem toda a realidade do país onde vivia. O problema, defende o autor, não está na ignorância incomensurável de Trump, mas no facto de “não compreender o que saber alguma coisa significa.” Concluindo que ele “tem uma forma de se orgulhar da sua própria ignorância que põe a democracia em perigo.” c) Narendra Modi. Para Rushdie, o Primeiro-ministro indiano vai arruinando o pluralismo democrático assente no politeísmo indiano, uniformizando e instrumentalizando a religião para executar uma via nacionalista. Para este fim, aproveita-se da falsa ideia de uma homogeneidade hinduísta (construída pelo colonialismo inglês por facilitismo taxonómico), uma síntese ideológica falsa que aproxima o projecto de Modi da “própria organização do partido nazi.” Assim, a muitas vezes considerada “maior democracia do mundo”, apesar de imperfeita e corrupta, onde havia verdadeira liberdade de expressão, pluralismo político e alternância democrática, está hoje numa deriva nacionalista e fascista.

3. O inábil purismo da esquerda. Pode a esquerda política actual, cada vez mais fragmentada, evitar o crescente autoritarismo nacionalista? Rushdie confessa-se desiludido, nos Estados Unidos Trump ganhou a Hillary Clinton porque Bernie Sanders defendeu em muitos sítios a abstenção, o mesmo se passou com Jean-Luc Mélenchon em França, ambos preferiram manter-se fiéis às suas convicções em vez de, com o pragmatismo que se lhes exigia, combater a direita autoritária e populista. O problema da esquerda, diz, é a “obsessão pela pureza”, isso impede-a de estabelecer compromissos com a realidade e desenvolve dissensos graves entre os partidos políticos que ocupam esse espaço. Por exemplo, na Índia o purismo ideológico fraccionou tanto a esquerda que hoje existem cerca de 25 partidos comunistas indianos. Por isso, Rushdie acredita que agora só se pode “combater ao centro”, um centro, tolerante e inclusivo, permanentemente ameaçado pelos extremismos (contra Francis Fukuyama, a história continua).

4. A ficção: entre verdade e mentira. Em Outubro de 2006, Rushdie afirmava que só havia narrativas, a nação, a religião, a comunidade... eram produtos narrativos.  (Point of Inquiry) Ora, essa tese contradiz o seu presente combate às fake news. Rushdie admite o paradoxo, mas consegue explicá-lo. Mantém que os humanos vivem pelas narrativas, só elas dão sentido à existência. O problema é que actualmente proliferam os conflitos entre narrativas, o mundo israelita contra o palestiniano, claro, mas também, por exemplo, no interior dos Estados Unidos entre o aparelho mediático do presidente e a imprensa. Isto desenvolve, refere, um “fermento de guerra civil”. Portanto, não se trata tanto de polarizar verdade e ficção, esta distingue-se da mentira, visto tentar “aproximar-nos da verdade.” Seguramente é a-científica, mas procura, ainda assim, acolher a verdade “abrindo outra porta.” Pelo contrário, a mentira não pretende sequer vislumbrar a verdade, ela opõe-se irredutivelmente à verdade. Mais, fá-lo ocultando a sua natureza, enquanto a ficção revela imediatamente que é qualquer coisa forjada, produzida pela imaginação. Ainda assim, Rushdie mostra-se optimista, acredita que a verdade resiste à mentira. Mas talvez uma pletora de dissensos entre narrativas aumente exponencialmente a conflitualidade estéril no mundo.

5. O realismo reduz a esperança de vida dos romances? Rushdie assegura que os seus livros se inspiram na realidade (não cabe aqui discutir as fragilidades do conceito). Mas isso parece acelerar a obsolescência das obras. Bem, o autor tem o antídoto: “um romancista deve concentrar-se na dimensão humana”. Trata-se de desenhar personagens que os leitores vão seguir, e ser seguidos por elas, o contexto histórico é apenas um pano de fundo. Em Guerra e Paz, a campanha napoleónica é menos importante do que as personagens principais que compõem o romance, são elas que prendem o leitor. Assim, é possível ser racionalista e realista, como Rushdie pretende ser, e ao mesmo tempo criar ficções que trabalham no inverosímil. É que não temos apenas um “realismo hardcore”, à la Martin Amis, há igualmente, por exemplo, o realismo mágico de Gabriel Garcia Márquez, que Rushdie admira. Aliás, é bom que imaginação e razão se contaminem e controlem mutuamente. A “imaginação sem razão produz monstros”, é esse o caso de qualquer alucinação fanática. Conhecem-se também os perigos do racionalismo, por exemplo “o colectivismo soviético, ao tentar criar um novo homem sem religião nem espiritualidade, gerou horrores.” Por isso, defende o autor, é preciso ligar estas duas dimensões centrais do humano, sem isso emergem os riscos que referimos e, além disso, “nenhuma arte é possível”. Portanto, para se regressar à era dos possíveis é preciso insistir na articulação entre imaginação e razão, conhecendo e respeitando o que há, por vezes definitivamente fixado, e inventando outras formas de viver, sem que nenhum dos campos esmague o outro. Não nos esqueçamos que Trump diz ser um sonhador, isto é, alguém que só atende à imaginação, permitindo-se gerar, ou deixar gerar, sem qualquer remorso epistemológico, contínuas fake news.

 

Lobo Antunes e Dinis Machado, subsídios para mitigar uma possível polémica

Anselm Kiefer

Anselm Kiefer

1- História de uma micro-polémica. A crónica de Lobo Antunes para a revista Visão, n.º 1263, de 18 de Maio, “Subsídios para a biografia de Dinis Machado”, mereceu uma resposta indignada de Rita Machado, filha de Dinis Machado, na mesma revista, n.º 1266, de 8 de Junho (aqui). Os ecos desta polémica não foram, pelo menos por enquanto, muito visíveis, ou audíveis, mas quem sabe, podem chegar brevemente ao lugar errado. Em jeito de possível bombeiro por antecipação (apanhar o futuro é um desejo frívolo, sei-o bem), deixo aqui uma nota de apaziguamento.

2- Je est un autre”. Somos sempre outros, nunca ninguém nos apanhou, do exterior, na pureza de uma identidade fixa, esculpidos em material indeformável. Nem nós o conseguimos ao olharmos para dentro, porque no interior tudo é quântico, resultado permanentemente alterado de combinações possíveis, juntando e dissociando órgãos, ideias, sentimentos, coisas antigas e coisas recentes, olhares fúnebres em direcção ao passado ou cheios de faísca em relação ao futuro. É assim, o “eu é sempre outro”, até o cartão de cidadão, documento que prova o domínio da burocracia sobre os projectos mais modernos, e libertários, de cidadania, tem de ser renovado.

2.1- Não havendo, pois, qualquer centralidade identitária, sendo cada um de nós uma espiral lançada no mundo, constantemente sacudida pelo acaso, que às vezes finge bastante bem ser determinismo ou, pelo menos, livre arbítrio definido pela vontade subjectiva, devíamos doar sempre um eu, uma forma de ser eu, à caricatura. Seria um acto de humildade e generosidade contra todas as formas de fanfarronice e de codificação burocrática. Seria também a maneira de manter uma linha de auto-irrisão sempre viva, quebrando a tentação de nos fixarmos num qualquer panteão auto-referencial.

3- Percebo que a filha de Dinis Machado ache insuportável a pretensa caricatura do seu pai, acusando por isso Lobo Antunes de mau gosto e de pedantismo. Mas percebo também que essa indignação resulte de uma leitura hipertrofiada pela constelação de sentimentos que uma filha normalmente alimenta pelo pai. Tudo legítimo, entendam-me bem, tudo permitido pelas leis da hermenêutica (um texto tem sempre vários sentidos possíveis), da ética (o valor, ou desvalor, de algo é sempre extrínseco) e do amor. Por outro lado, por mais que o queiram as boas-almas, a escrita nunca é pacífica nem limpa. Não sublinhei na minha leitura da crónica aquilo que Rita Machado critica, isto prova que não existe um sentido único no texto. E o pior que poderia fazer agora era ir reler esse mesmo texto, com o filtro da indignação da Rita; certas composições, mais intensivas do que compreensivas, devem ter somente uma leitura, nunca cirúrgica, é preciso apanhá-las como se fossem um organismo vivo a quem vamos dar um abraço ou um murro. Creio ser o caso das crónicas de Lobo Antunes.

4- É só mais uma prova de que o perspectivismo superou as hermenêuticas absolutistas, que acreditam na recuperação pelo leitor da verdade de um texto. Li a crónica de Lobo Antunes sobre Dinis Machado e não senti que estivesse, como pretende a filha, a “Ridicularizar e caluniar” a sua memória. Mas a minha leitura não é melhor do que a da Rita, é somente distinta, feita a partir de outra perspectiva. Esta diversidade de interpretações é tanto mais legítima quanto se trata de um texto que não pretende ser demonstrativo. É verdade que pode dar a entender, até pelo título, tratar-se de um esboço biográfico, mas em Lobo Antunes tudo acaba por desaguar na ficção, há um delírio na sua escrita que impede qualquer rigidez demonstrativa. Ele procura o infinito no finito, por isso não pode ser fiel aos factos (se tal coisa existir realmente). Assim sendo, não se deve realmente acusá-lo, como faz Rita Machado, de confundir “realidade com ficção”, para ele a realidade é só mais uma parcela da ficção. Lobo Antunes constrói narrativas antropológicas possíveis, inventando novos mundos povoados por organismos humanos que já não o são verdadeiramente.

5- Subsídios para uma estética. Lobo Antunes vive da força das suas visões, e nelas sobressaem sobretudo os aspectos caricaturais das personagens que vitaliza (nem sempre de forma cómica). Não se trata, pois, de uma estratégia retórica para “ridicularizar”, mas de estilo, da sua forma de tecer narrativas encantatórias (é uma espécie de realismo mágico que valoriza o disforme, corporal e mental, social e pessoal, mesmo se isso serve por vezes para melhor se cobrir a si mesmo com um verniz de boa ilusão). Lobo Antunes fala-nos simultaneamente, e contraditoriamente, das ruínas do mundo e das pulsões que lhe dão permanentemente uma renovada vitalidade. O sexismo primário do trolha ou a lascívia do velhote enamorado pelas meias de vidro de uma senhora, por exemplo, mostram como o demiurgo se enganou quando criou o mundo, mas, ao mesmo tempo, desenha um feixe de forças arcaicas que só podem provir da fonte mesma da vida, ainda sem moral mas já cheia de pujança inventiva. Lobo Antunes acrescenta realidade ao mundo, desbaratando as regras que os tecelões da verdade instituíram com soberba minúcia, por isso não pode ser fiel aos factos, ou melhor, apanha os factos de través e sacode-os para que formem parcelas das suas narrativas, encaixem no seu estilo e na visão dos mundos que vai fabricando com a sua escrita.

6- Todos estão sujeitos a cair, e a Lobo Antunes não deve agradar o cinto de segurança imaginário de um qualquer panteão. Se lhe interessa o céu, é, talvez, como a Ícaro, para ter altura de onde cair. Por outro lado, percebo neste escritor imenso a maior das qualidades para se fazer alguma coisa de jeito: não ter medo do ridículo. Como escreve o seu amigo George Steiner, “só há profundidade se não houver medo do ridículo”, não de um ridículo vulgar, mas daqueloutro que convive, amando-as, com as vidas disformes expulsas da arena dos bem-comportados. Lobo Antunes mergulha no lodo para aonde a sociedade decente lança os seus detritos, abraçando e rindo com figuras ridículas, é aqui, onde quase ninguém já vai por vergonha, que ele ganha a profundidade inventiva que lhe permite desdobrar o humano como as pregas de um leque. Rita Machado, compreendo-te, admiro até a defesa arriscada e comovente que fazes do teu pai (um escritor de quem gosto muito), mas Lobo Antunes está acima da calúnia, ele cria mundos, tem esse enorme talento, e às vezes salpica de lodo barrento uma ou outra personagem, efeitos colaterais mínimos que nem Deus, tudo o leva a crer, conseguiu evitar.

Donald Trump: o terrorista ambiental

Fui aprendendo que os impulsos ideológicos recuperam sectarismos arcaicos, obrigatoriamente simplificadores do pensamento crítico. Por exemplo, sou filiado num partido ambientalista e animalista, o PAN, que defende igualdades pós-antropocêntricas (entre todos os seres sencientes) e, estatutariamente, uma democracia participativa (em vez da tradicional representativa), há dois anos até entrei na campanha eleitoral. Bom, mas quando chegou a hora da verdade o que decidiu tudo resumiu-se a uma vontade de poder egoísta absolutamente elementar, ideias, princípios, estatutos... foi tudo passado a rolo compressor pelos mais arrivistas. Aceder ao poder deixou de ser um meio e passou a um fim em si mesmo, o poder pelo poder, e, claro, os privilégios, sociais e económicos, associados. Por isso, fui adormecendo as parcelas políticas que me compõem, transladei a sua energia para outros territórios, que considero muito mais férteis, uma vírgula tornou-se mais importante do que um Decreto-Lei ou um daqueles combates retóricos, cheios de bazófia e gesticulações primárias, desenhados para a auto-glorificação, que preenchem os debates na Assembleia da República. Resisti, pois, a escrever, e por vezes até a pensar dentro do mundo da política, a sua irracionalidade intrínseca parece incompatível com análises e interpretações justas.

Por outro lado, apesar de me considerar um conservador vanguardista (um dia escreverei sobre este aparente paradoxo, que recuperei de Peter Sloterdijk), interiorizei há muito as enormes virtualidades da democracia (já escrevi sobre isso aqui). As mais avançadas, orbitando em torno do Ocidente alargado, têm mecanismos de checks and balances capazes de mitigar os assaltos ao poder de cariz totalitário. Além disso, os actos eleitorais e, em muitos casos, a limitação de mandatos, impendem que um indivíduo se mantenha ad aeternum no poder (embora em Portugal tenha havido o quase perpétuo Alberto João Jardim). Claro que há linhas subterrâneas de influências que favorecem certos grupos sociais, reservando-lhe o domínio de uma parte significativa da economia e da opinião vinculativa. Noutros termos, reconheço que até nas democracias avançadas há demasiadas diferenças que se transformam em desigualdades, não sejamos ingénuos. Todavia, mesmo depois de ler Michel Foucault, Gilles Deleuze, Byung-Chul Han ou Slavoj Zizek, não creio que os princípios básicos do “governo do povo, pelo povo e para o povo” estejam total e irremediavelmente capturados por grupos-de-interesse que apenas deixariam viver um simulacro de democracia, tomando-a nós, qual personagens platónicas agrilhoadas no fundo da caverna, por uma democracia autêntica. Claro que existem zonas opacas, claro que os capitais cultural, económico e social, para usar a terminologia quase revogada de Bourdieu, favorecem injustamente uma pequena parte da população. Mas, sem querer retomar Winston Churchill ou Leibniz, creio que ela é o melhor dos regimes políticos possíveis.

Portanto, até hoje deixei Donald Trump (esse cómico involuntário) ou Vladimir Putin em paz, quase não escrevi ou sequer pensei sobre deles. “É jogo político e pouco mais”, disse. Confio na dita sociedade civil, nos indivíduos, nos grupos de pressão estritamente altruístas, como a Quercus em Portugal. Mas subitamente o presidente dos Estados Unidos – representante da democracia moderna mais antiga, chefe supremo da maior máquina de guerra de que há memória e do país que mais poluiu a Terra – decide rasurar o compromisso ambiental que o seu antecessor estabelecera há bem pouco no Acordo de Paris (2015). Num discurso simplório, escrito por vinte ou trinta cabeças semi-ocas, veio dizer-nos, a nós e às gerações futuras, a nós e aos restantes seres vivos, a nós e ao planeta, que por razões económicas (silogismo com uma única premissa) retirava a América, é assim, tomando a parte pelo todo, que gosta de nomear os U.S.A, do mais importante, e vital, acordo sobre alterações climáticas que se conseguiu até hoje. E não se obteve, antes fosse, porque subitamente o mundo se desfez da mesquinhez nacionalista do deve e haver, houve acordo porque não restam dúvidas a nenhum ser com uma sanidade mental média de que caminhamos para um desastre ambiental severo e global. Sabe-se que ninguém tem nada a ganhar com o aquecimento global, sabe-se, aliás, que temos muito a perder, excepto uns cépticos desmiolados, cheios de elucubrações funestas, espalhados por todo o planeta mas que medram bem na terra do senhor Trump, principalmente nos terrenos do provincianismo megalómano. Se nos chateia muito o grau elevado de esquecimento das promessas eleitorais, Trump, neste caso, é irrepreensível, cumpre aquilo que prometeu (normalmente em pacotes de poções obscurantistas), e, em boa verdade, os que olham para o céu e não vêem (o método do olhar) os famigerados gases de efeito de estufa votaram nele e agora foram recompensados. Talvez tenham alguma razão, uma explicação que meta à bulha Deus e o Diabo é, para eles, muito mais interessante e verosímil do que estudos cheios de números e de previsões catastróficas. Tanto mais que o capitalismo mais básico precisa do optimismo como pão para a boca, e não é fácil manter a esperança se nos dizem que vamos começar a assar ou a morrer afogados.

Assim, Trump obrigou-me a retomar um activismo político – sem folclore, a única arruada em que participei pôs-me uma semana de cama –, devo-o à Terra e às futuras gerações, mas também aos mais carenciados que hoje vivem em países sem recursos para mitigarem as alterações climáticas. Designei Trump como um terrorista ambiental, e como tal deve ser combatido. O mal que ele pode provocar leva-me a pensar que abatê-lo pode ser um direito de legítima defesa, se não fisicamente pelo menos retirando-lhe, através de artimanhas se for necessário, o poder que tem. Conheço a minha insignificância, mas milhões, milhares de milhões de insignificantes poderão fazer qualquer coisa. E eu quero juntar-me a eles, formando um vasto espírito de repúdio, de nojo, de combate. Abaixo o Trump, abaixo de qualquer maneira, abaixo que ele é um terrorista ambiental, o pior terrorista que a história do planeta já conheceu. Ele é o perigo de todos os perigos. Contra os tambores tresloucados, marchar!

Manchester

Edvard Munch

Edvard Munch

Subitamente irrompeu uma brecha na luz de Manchester, de onde irradiaram as trevas, aquelas que conhecemos e desconhecemos (pensar o abominável é já, diz-se, desculpá-lo um pouco) e às quais dedicamos cada vez menos caracteres indignados. Se nos habituarmos, vencem-nos. E nós habituamo-nos. A odiosa revelação de um niilismo, preenchido por círculos de escorpiões, que sente comprazimento na razia de vidas quase ainda por viver, vidas de futuro, cheias de entusiasmo e esperança, vem agora ter connosco como um mal esperado. Estamos no limiar de um abanão profundo, convocaremos, porém, ainda velhos rituais de compensação (homenagens, textos fúnebres, vagas policiais, vinganças jurídicas). Mas fazemo-lo sabendo que em breve algo virá novamente comer vidas e alegria, o terrorismo desbragado (acredito num terror que se quer conjurar a si mesmo) é um glutão insaciável, e nós, que vemos Manchester nos mass media, espectadores panópticos, aguardamos tristes pela próxima garfada. As vítimas de sangue (ainda tão juvenil, raios!) deixaram-nos e afogaram de dor quem as amava, como sabemos há muito mais do que 22 cadáveres. Queira alguma coisa bondosa que o magnífico enxame de estrelas, que nos visita tanto melhor quanto a noite for escura, reponha uma certa justiça.