Pier Paolo Pasolini, "O verdadeiro fascismo e portanto o verdadeiro antifascismo"

 
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Tradução: João Coles


O que é a cultura de uma nação? É crença corrente, também de parte de pessoas cultas, que esta é a cultura dos investigadores, dos políticos, dos professores, dos literatos, dos cineastas, etc.; ou seja, que é a cultura da intelligentsia. Todavia, não é assim. Nem tão-pouco a cultura da classe dominante, que, precisamente através da luta de classes, procura impô-la pelo menos formalmente. Não é tão-pouco, enfim, a cultura da classe dominada, isto é, a cultura popular dos operários e dos camponeses. A cultura de uma nação é o conjunto de todas estas culturas de classe: é a média delas. E seria por conseguinte abstracta se não fosse reconhecível – ou, a bem dizer, visível – na vida vivida e no existencial, e se não tivesse consequentemente uma dimensão prática. Durante muitos séculos em Itália estas culturas eram distinguíveis apesar de historicamente unificadas. Hoje – quase de repente, com uma espécie de Advento – distinção e unificação históricas cederam o lugar a uma homologação que concretiza quase miraculosamente o sonho entre-classista do velho Poder. A que se deve tal homologação? Evidentemente a um novo Poder.

Escrevo “Poder” com maiúscula – coisa que Maurizio Ferrara acusa de irracionalismo em «l'Unità» (12-6-1974) – apenas porque sinceramente não sei em que consiste este novo Poder e quem o representa. Sei simplesmente que existe. Não o reconheço no Vaticano, nem nos poderosos cristãos, nem nas Forças Armadas. Já nem o reconheço na grande indústria porque esta deixou de ser constituída por um número determinado e limitado de grandes industriais: tenho para mim, pelo menos, que esta surge, pelo contrário, como um todo (industrialização total), e, além do mais, como um todo não italiano (transnacional).

Conheço, também porque as vejo e as vivo, algumas das características deste novo Poder ainda sem face: a recusa pelo antigo sanfedismo (1) e pelo antigo clericalismo, a decisão de abandonar a Igreja, a determinação (coroada como triunfo) de transformar camponeses e sub-proletários em pequenos burgueses, e sobretudo a mania, cósmica, por assim dizer, de executar até ao fim o “Progresso”: produzir e consumir.

O retrato deste novo rosto ainda em branco do novo Poder atribui-lhe traços vagamente “moderados”, devidos à tolerância e a uma ideologia hedonista auto-suficiente; mas também traços ferozes e substancialmente repressivos: a tolerância é falsa, pois nunca nenhum homem foi obrigado a ser tão normal e conformista como o consumidor. Quanto ao hedonismo, este esconde evidentemente uma decisão de pré-ordenar tudo com tal impiedade que a história jamais conheceu até hoje. Portanto, este novo Poder ainda sem representantes, que se deve a uma «mutação» da classe dominante, é na verdade – se quisermos preservar a velha terminologia – uma forma total de fascismo. Mas esse Poder também “homologou” culturalmente a Itália: trata-se, portanto, de uma homologação repressiva, apesar de ter sido alcançada através da imposição do hedonismo e da joie de vivre. A estratégia da tensão é um indício, ainda que substancialmente anacrónico, de tudo isto.

Maurizio Ferrara, no artigo citado (tal como Ferrarotti, em « Paese Sera », 14-6-1974), acusa-me de estetismo. E com isto tende a excluir-me, a circunscrever-me. Muito bem: a minha pode ser a óptica de um « artista », isto é, como pretende a boa burguesia, de um louco. Mas o facto que dois representantes do velho Poder (que agora servem, na verdade, ainda que interlocutoriamente, o Poder novo) se tenham chantageado mutuamente a propósito de financiamentos aos partidos e dos caso Montesi, pode ser também um bom motivo para enlouquecer: ou seja, desacreditar totalmente uma classe dirigente e uma sociedade diante dos olhos de um homem, a ponto de o fazer perder o sentido de oportunidade e dos limites, lançando-o num verdadeiro e autêntico estado de «anomia». Vai dito, aliás, que o ponto de vista dos loucos é de tomar em séria consideração: a menos que se queira progredir em tudo salvo no problema dos doidos e limitar-se comodamente a mantê-los à margem.

Há certos loucos que olham para a cara das pessoas e para o seu comportamento. Mas não porque sejam epígonos do positivismo lombrosiano (2) (como grosseiramente insinua Ferrara), mas porque conhecem a semiologia. Sabem que a cultura produz códigos; que os códigos produzem o comportamento; que o comportamento é uma linguagem; e que em determinado momento histórico em que a linguagem verbal é totalmente convencional e estéril (técnica) a linguagem do comportamento (físico e mímico) assume uma importância decisiva.

Voltando assim ao início do nosso discurso, parece-me que temos boas razões para afirmar que a cultura de uma nação (em concreto a Itália) é hoje exprimida sobretudo através da linguagem do comportamento, a linguagem física, mais uma determinada quantidade – completamente convencional e extremamente pobre – de linguagem verbal.

É a este nível de comunicação linguística que se manifestam: a) a mutação antropológica dos italianos; b) a sua completa homologação a um modelo único.

Portanto: decidir deixar crescer o cabelo até às costas, ou mesmo cortar o cabelo e deixar crescer o bigode (numa evocação pré-novecentista); decidir pôr uma banda na cabeça ou enfiar uma boina até aos olhos; decidir sonhar com um Ferrari ou com um Porsche; seguir com atenção os programas televisivos; conhecer os títulos de alguns best-seller; vestir-se com calças e camisolas prepotentemente na moda; ter relações obsessivas com mulheres postas de lado como meros adornos, mas, ao mesmo tempo, com a pretensão de que são «livres» etc. etc. etc.: tudo isto são actos culturais. Hoje, todos os jovens italianos cumprem estes mesmo actos, têm a mesma linguagem física, são permutáveis; uma coisa velha como o mundo, se estiver limitada a uma classe social, a uma categoria: mas o facto é que estes actos culturais e esta linguagem somática são inter-classistas. Numa praça repleta de jovens, já ninguém poderá distinguir, pelo corpo, um operário de um estudante, um fascista de um antifascista; algo que ainda era possível em 1968.

Os problemas de um intelectual pertencente à intelligentsia são diferentes dos de um partido e de um homem político, ainda que a ideologia seja a mesma. Gostaria que os meus actuais opositores de esquerda compreendessem que estou em condições de dar-me conta que, caso o Progresso sofresse detenção e tivesse uma recessão, se os Partidos de Esquerda não apoiassem o Poder vigente, a Itália simplesmente se desmantelaria; se pelo contrário, o Progresso continuasse tal como começou, seria indubitavelmente realista o chamado «compromisso histórico», o único modo para tentar corrigir esse Progresso no sentido indicado por Berlinguer na sua relação com o CC do partido comunista (cfr. «l’Unità », 4-6-1974). Todavia, como a Maurizio Ferrara não competem as «caras», a mim não compete esta manobra de prática política. Aliás, eu tenho, quando muito, o dever de exercitar sobre ela a minha crítica, quixotescamente e talvez de maneira extrema. Quais são, então, os meus problemas?

Eis um, por exemplo. No artigo que suscitou esta polémica («Corriere della sera», 10-6-1974) lia-se que os reais responsáveis pelos atentados de Milão e de Brescia (3) são o governo e a polícia italiana: porque se o governo e a polícia tivessem querido, estes atentados não teriam tomado lugar. É um lugar comum. Pois bem, por esta altura vão fazer pouco de mim se disser que os responsáveis destes atentados somos também nós progressistas, antifascistas, homens de esquerda. De facto, em todos estes anos não fizemos nada:

1) para que falar de «atentados de Estado» não se tornasse num lugar comum e que ficasse por ali;

2) (e mais grave) não fizemos nada para que os fascistas não existissem. Apenas os condenámos gratificando a nossa consciência com a nossa indignação; e quanto mais forte e petulante era a indignação, mais tranquila estava a nossa consciência.

Na verdade, comportámo-nos com os fascistas (falo sobretudo dos jovens) de maneira racista: quisemos apressada e impiedosamente acreditar que eles estavam predestinados racialmente a serem fascistas e, perante esta decisão do destino deles, não havia nada a fazer. E não o escondamos: todos sabíamos, no fundo da nossa consciência, que quando um daqueles jovens tomava a decisão de tornar-se fascista, era puramente casual, não era um gesto desmotivado ou irracional: talvez tivesse bastado uma só palavra para que isso não tivesse acontecido. Mas nenhum de nós falou com eles ou a eles. Aceitámo-los imediatamente como representantes inevitáveis do mal. E talvez fossem rapazes e raparigas adolescentes nos seus dezoito anos, que não sabiam nada de nada, e atiraram-se de cabeça nesta horrenda aventura por simples desespero.

Mas não conseguíamos distingui-los dos outros (não digo dos outros extremistas: mas de todos os outros). É esta a nossa aterradora justificação.

O padre Zósima (a literatura pela literatura!) soube de imediato distinguir, entre todos aqueles que se amontoavam na sua cela, Dimitri Karamazov, o parricida. Então levantou-se da sua cadeira e foi prostrenar-se diante dele. E fê-lo (como diria mais tarde ao Karamazov mais novo) porque Dimitri estava destinado a cometer o mais terrível acto e a suportar a mais desumana dor.

Pensem (se tiverem forças) naquele rapaz ou naqueles rapazes que foram plantar bombas na praça de Brescia. Não era de nos levantarmos e de irmos prosternar-nos diante deles? Mas eram jovens de cabelos compridos, ou com bigodes à século XX, tinham bandas na cabeça ou boinas enfiadas até aos olhos, eram pálidos e presunçosos; o problema deles era vestirem-se à moda e todos da mesma maneira, ter um Porsche ou um Ferrari, ou mesmo motas para as conduzirem como pequenos arcanjos idiotas com mulheres ornamentais atrás, sim, mas modernas, e a favor do divórcio, da libertação da mulher, e em geral do progresso... Eram, enfim, jovens como todos os outros: nada os distinguia fosse como fosse. Mesmo que o tivéssemos pretendido não teríamos sido capazes de nos prosternarmos diante deles. Porque o velho fascismo, ainda que através da degeneração retórica, distinguia: enquanto que o novo fascismo – que é toda outra história – deixou de distinguir: não é humanamente retórico, é americanamente pragmático. O seu objectivo é a reorganização e a homologação brutalmente totalitária do mundo.



(1) O Sanfedismo, cujo nome deriva de “Exército da Santa Fé”, foi um movimento religioso anti-republicano nascido no final do séc. XVIII na Itália meridional quando as monarquias tradicionais foram depostas e substituídas pelas repúblicas napoleónicas. Os sanfedisti eram grupos e associações religiosas que lutavam pela defesa da Santa Fé e das monarquias tradicionais.

(2) Marco Ezechia Lombroso, também conhecido por Cesare Lombroso, um dos expoentes do positivismo, foi o fundador da antropologia da criminalidade. As suas teorias, influenciadas pela fisiognonomia, pelo darwinismo social e pela frenologia, baseavam-se no conceito de “criminoso à nascença”; teorias que defendiam que a criminalidade era hereditária e que partir da identificação de certas características anatómicas à nascença, se poderia deduzir que determinado indivíduo se tornaria num criminoso.

(3) Pasolini refere-se aos atentados de Piazza Fontana em Milão (12/12/1969) e de Piazza della Loggia em Brescia (28/05/1974), dois actos terroristas neofascistas. O primeiro é considerado o ponto de partida e o momento incandescente dos “anos de chumbo” em Itália, que culminou em vários atentados terroristas até ao início dos anos 80; o segundo, foi um atentado terrorista fascista que teve lugar no decurso de uma manifestação contra o terrorismo neofascista, onde uma bomba explodiu e provocou a morte de 8 pessoas e feriu outras 102.

Publicado originalmente no «Corriere della Sera» a 24 de Junho de 1974 com o título "O poder sem rosto”.

In Il fascismo degli antifascisti, Garzanti


Il vero fascismo e quindi il vero antifascismo

Che cos’è la cultura di una nazione? Correntemente si crede, anche da parte di persone colte, che essa sia la cultura degli scienziati, dei politici, dei professori, dei letterati, dei cineasti ecc.: cioè che essa sia la cultura dell’intelligencija. Invece non è così. E non è neanche la cultura della classe dominante, che, appunto, attraverso la lotta di classe, cerca di imporla almeno formalmente. Non è infine neanche la cultura della classe dominata, cioè la cultura popolare degli operai e dei contadini. La cultura di una nazione è l’insieme di tutte queste culture di classe: è la media di esse. E sarebbe dunque astratta se non fosse riconoscibile – o, per dir meglio, visibile – nel vissuto e nell’esistenziale, e se non avesse di conseguenza una dimensione pratica. Per molti secoli, in Italia, queste culture sono stato distinguibili anche se storicamente unificate. Oggi – quasi di colpo, in una specie di Avvento – distinzione e unificazione storica hanno ceduto il posto a una omologazione che realizza quasi miracolosamente il sogno interclassista del vecchio Potere. A cosa è dovuta tale omologazione? Evidentemente a un nuovo Potere.

Scrivo “Potere” con la P maiuscola – cosa che Maurizio Ferrarà accusa di irrazionalismo, su «l’Unità» (12-6-1974) – solo perché sinceramente non so in cosa consista questo nuovo Potere e chi lo rappresenti. So semplicemente che c’è. Non lo riconosco più né nel Vaticano, né nei Potenti democristiani, né nelle Forze Armate. Non lo riconosco più neanche nella grande industria, perché essa non è più costituita da un certo numero limitato di grandi industriali: a me, almeno, essa appare piuttosto come un tutto (industrializzazione totale), e, per di più, come tutto non italiano (transnazionale).

Conosco, anche perché le vedo e le vivo, alcune caratteristiche di questo nuovo Potere ancora senza volto: per esempio il suo rifiuto del vecchio sanfedismo e del vecchio clericalismo, la sua decisione di abbandonare la Chiesa, la sua determinazione (coronata da successo) di trasformare contadini e sottoproletari in piccoli borghesi, e soprattutto la sua smania, per così dire cosmica, di attuare fino in fondo lo “Sviluppo”: produrre e consumare.

L’identikit di questo volto ancora bianco del nuovo Potere attribuisce vagamente ad esso dei tratti “moderati”, dovuti alla tolleranza e a una ideologia edonistica perfettamente autosufficiente; ma anche dei tratti feroci e sostanzialmente repressivi: la tolleranza è infatti falsa, perché in realtà nessun uomo ha mai dovuto essere tanto normale e conformista come il consumatore; e quanto all’edonismo, esso nasconde evidentemente una decisione a preordinare tutto con una spietatezza che la storia non ha mai conosciuto. Dunque questo nuovo Potere non ancora rappresentato da nessuno e dovuto a una «mutazione» della classe dominante, è in realtà – se proprio vogliamo conservare la vecchia terminologia – una forma “totale” di fascismo. Ma questo Potere ha anche “omologato” culturalmente l’Italia: si tratta dunque di un’omologazione repressiva, pur se ottenuta attraverso l’imposizione dell’edonismo e della joie de vivre. La strategia della tensione è una spia, anche se sostanzialmente anacronistica, di tutto questo.

Maurizio Ferrara, nell’articolo citato (come del resto Ferrarotti, in « Paese Sera », 14-6-1974) mi accusa di estetismo. E tende con questo a escludermi, a recludermi. Va bene: la mia può essere l’ottica di un « artista », cioè, come vuole la buona borghesia, di un matto. Ma il fatto per esempio che due rappresentanti del vecchio Potere (che servono però ora, in realtà, benché interlocutoriamente, il Potere nuovo) si siano ricattati a vicenda a proposito dei finanziamenti ai Partiti e del caso Montesi, può essere anche una buona ragione per fare impazzire: cioè screditare talmente una classe dirigente e una società davanti agli occhi di un uomo, da fargli perdere il senso dell’opportunità e dei limiti, gettandolo in un vero e proprio stato di «anomia». Va detto inoltre che l’ottica dei pazzi è da prendersi in seria considerazione: a meno che non si voglia essere progrediti in tutto fuorché sul problema dei pazzi, limitandosi comodamente a rimuoverli.

Ci sono certi pazzi che guardano le facce della gente e il suo comportamento. Ma non perché epigoni del positivismo lombrosiano (come rozzamente insinua Ferrara), ma perché conoscono la semiologia. Sanno che la cultura produce dei codici; che i codici producono il comportamento; che il comportamento è un linguaggio; e che in un momento storico in cui il linguaggio verbale è tutto convenzionale e sterilizzato (tecnicizzato) il linguaggio del comportamento (fisico e mimico) assume una decisiva importanza.

Per tornare così all’inizio del nostro discorso, mi sembra che ci siano delle buone ragioni per sostenere che la cultura di una nazione (nella fattispecie l’Italia) è oggi espressa soprattutto attraverso il linguaggio del comportamento, o linguaggio fisico, più un certo quantitativo – completamente convenzionalizzato e estremamente povero – di linguaggio verbale.

È a un tale livello di comunicazione linguistica che si manifestano: a) la mutazione antropologica degli italiani; b) la loro completa omologazione a un unico modello.

Dunque: decidere di farsi crescere i capelli fin sulle spalle, oppure tagliarsi i capelli e farsi crescere i baffi (in una citazione protonovecentesca); decidere di mettersi una benda in testa oppure di calcarsi una scopoletta sugli occhi; decidere se sognare una Ferrari o una Porsche; seguire attentamente i programmi televisivi; conoscere i titoli di qualche best-seller; vestirsi con pantaloni e magliette prepotentemente alla moda; avere rapporti ossessivi con ragazze tenute accanto esornativamente, ma, nel tempo stesso, con la pretesa che siano «libere» ecc. ecc. ecc.: tutti questi sono atti culturali.

Ora, tutti gli Italiani giovani compiono questi identici atti, hanno questo stesso linguaggio fisico, sono interscambiabili; cosa vecchia come il mondo, se limitata a una classe sociale, a una categoria: ma il fatto è che questi atti culturali e questo linguaggio somatico sono interclassisti. In una piazza piena di giovani, nessuno potrà più distinguere, dal suo corpo, un operaio da uno studente, un fascista da un antifascista; cosa che era ancora possibile nel 1968.

I problemi di un intellettuale appartenente all’intelligencija sono diversi da quelli di un partito e di un uomo politico, anche se magari l’ideologia è la stessa. Vorrei che i miei attuali contraddittori di sinistra comprendessero che io sono in grado di rendermi conto che, nel caso che lo Sviluppo subisse un arresto e si avesse una recessione, se i Partiti di Sinistra non appoggiassero il Potere vigente, l’Italia semplicemente si sfascerebbe; se invece lo Sviluppo continuasse così com’è cominciato, sarebbe indubbiamente realistico il cosiddetto «compromesso storico», unico modo per cercare di correggere quello Sviluppo, nel senso indicato da Berlinguer nel suo rapporto al CC del partito comunista (cfr. «l’Unità », 4-6-1974). Tuttavia, come a Maurizio Ferrara non competono le «facce», a me non compete questa manovra di pratica politica. Anzi, io ho, se mai, il dovere di esercitare su essa la mia critica, donchisciottescamente e magari anche estremisticamente. Quali sono dunque i miei problemi?

Eccone per esempio uno. Nell’articolo che ha suscitato questa polemica («Corriere della sera», 10-6-1974) dicevo che i responsabili reali delle stragi di Milano e di Brescia sono il governo e la polizia italiana: perché se governo e polizia avessero voluto, tali stragi non ci sarebbero state. È un luogo comune. Ebbene, a questo punto mi farò definitivamente ridere dietro dicendo che responsabili di queste stragi siamo anche noi progressisti, antifascisti, uomini di sinistra. Infatti in tutti questi anni non abbiamo fatto nulla:

1) perché parlare di « Strage di Stato » non divenisse un luogo comune, e tutto si fermasse lì;

2) (e più grave) non abbiamo fatto nulla perché i fascisti non ci fossero. Li abbiamo solo condannati gratificando la nostra coscienza con la nostra indignazione; e più forte e petulante era l’indignazione più tranquilla era la coscienza.

In realtà ci siamo comportati coi fascisti (parlo soprattutto di quelli giovani) razzisticamente: abbiamo cioè frettolosamente e spietatamente voluto credere che essi fossero predestinati razzisticamente a essere fascisti, e di fronte a questa decisione del loro destino non ci fosse niente da fare. E non nascondiamocelo: tutti sapevamo, nella nostra vera coscienza, che quando uno di quei giovani decideva di essere fascista, ciò era puramente casuale, non era che un gesto, immotivato e irrazionale: sarebbe bastata forse una sola parola perché ciò non accadesse. Ma nessuno di noi ha mai parlato con loro o a loro. Li abbiamo subito accettati come rappresentanti inevitabili del Male. E magari erano degli adolescenti e delle adolescenti diciottenni, che non sapevano nulla di nulla, e si sono gettati a capofitto nell’orrenda avventura per semplice disperazione.

Ma non potevamo distinguerli dagli altri (non dico dagli altri estremisti: ma da tutti gli altri). È questa la nostra spaventosa giustificazione.

Padre Zosima (letteratura per letteratura!) ha subito saputo distinguere, tra tutti quelli che si erano ammassati nella sua cella, Dmitrj Karamazov, il parricida. Allora si è alzato dalla sua seggioletta ed è andato a prosternarsi davanti a lui. E l’ha fatto (come avrebbe detto più tardi al Karamazov più giovane) perché Dmitrj era destinato a fare la cosa più orribile e a sopportare il più disumano dolore.

Pensate (se ne avete la forza) a quel ragazzo o a quei ragazzi che sono andati a mettere le bombe nella piazza dì Brescia. Non c’era da alzarsi e da andare a prosternarsi davanti a loro? Ma erano giovani con capelli lunghi, oppure con baffetti tipo primo Novecento, avevano in testa bende oppure scopolette calate sugli occhi, erano pallidi e presuntuosi, il loro problema era vestirsi alla moda tutti allo stesso modo, avere Porsche o Ferrari, oppure motociclette da guidare come piccoli idioti arcangeli con dietro le ragazze ornamentali, si, ma moderne, e a favore del divorzio, della liberazione della donna, e in generale dello sviluppo… Erano insomma giovani come tutti gli altri: niente li distingueva in alcun modo. Anche se avessimo voluto non avremmo potuto andare a prosternarci davanti a loro. Perché il vecchio fascismo, sia pure attraverso la degenerazione retorica, distingueva: mentre il nuovo fascismo – che è tutt’altra cosa – non distingue più: non è umanisticamente retorico, è americanamente pragmatico. Il suo fine è la riorganizzazione e I’omologazione brutalmente totalitaria del mondo.


Publicado originalmente no «Corriere della Sera» a 24 de Junho de 1974 com o título "O poder sem rosto”.

In Il fascismo degli antifascisti, Garzanti

2018: “Um quarto em Atenas” e “Fuck the Polis”


“Memória é ter sede
e todo o futuro é sempre possível”

Tatiana Faia

“Espaço
que guarda a história de si mesmo e
também a do outro”

João Miguel Fernandes Jorge

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Os grandes poetas têm sempre a capacidade de ver além do seu tempo. Quando todos rumam à direita, eles rumam à esquerda ou, simplesmente, param. Param, não no sentido de ficarem imóveis ou desistirem, param porque são capazes de sentir o seu tempo, de vê-lo sem qualquer distúrbio ou filtro social imposto. Param e conseguem entender que só regressando, dando uns passos atrás, podem continuar e avançar em frente. São herdeiros, ou filhos diretos, da Capacidade Humana de regenerar-se, de ultrapassar dificuldades, vencer. Dirão e bem: “Mas a poesia não muda nada!”. Será? Tenho sérias dúvidas! Claro que um poema não pode resolver a dívida “soberana” de um povo, mas ela lança a semente nos corações dos homens. Uma aqui, outra ali… e, talvez, indiretamente, algo se modifica, mesmo que para isso demore anos e anos. Novalis diria: “Alguns grãos poderão ser estéreis – mas basta que uns quantos germinem”. É preciso muito tempo para se ser qualquer coisa interessante! Tempo, aquilo que ninguém diz ter e, talvez, seja preciso estar-se morto para se viver realmente, pois, estar morto como diz Sloterdjik, na fieira de Platão, é condição para o pensamento, criação. É preciso estar-se longe, estar-se fora da cidade, fora da pátria, para se criar aquilo que é mais inovador e imponentemente belo.

Tudo isso vem a propósito de dois livros, publicados neste ano de 2018, um no seu início “Um quarto em Atenas” (Janeiro) de Tatiana Faia e outro no seu fim “Fuck the Polis” (Novembro) de João Miguel Fernandes Jorge. Ambos parecem ir ao encontro do mesmo objetivo: revisitar, repensar, reescrever e, até, desacelerar. Esse desacelerar do Tempo é o encontrar-se, renovadamente, perante a rica tradição clássica, do objeto artístico mais convencional (pintura/escultura/arquitetura), sem esquecer um certo olhar político: a defesa dos “oprimidos”, da simplicidade da natureza e do sossego longe da azáfama da cidade.

O retorno, o eterno retorno, do ambiente da cultura greco-romana não é um maneirismo tosco, mas um indício de que a salvação ainda é possível, a salvação pessoal e coletiva. Divago, bem sei. Mas, não se trata, aqui, de fazer crítica literária. Deixo tal pretensão para outros académicos. Interessa-me apenas apontar algumas impressões de dois livros por mim lidos e amados, neste ano que, lentamente, termina.

Desde “A terceira Miséria” de Hélia Correia (2012), que não lia um livro de poesia portuguesa contemporânea em que a Grécia Antiga /Moderna fosse pano de fundo. Para quem leu, na adolescência, intensamente Sophia e Kavafis, e na idade adulta Homero, nas fabulosas edições Cotovia, não poderia ficar indiferente a esses dois livros, de dois fabulosos poetas. Diferentes entre si, a começar pela idade/geração, mas tão parecidos e que marcam a sua geração com uma força difícil de apontar em palavras. Dois poetas (e não digo “Poetisa” em relação à Tatiana) de primeira categoria que, queiramos ou não, são pilares, cada um à sua maneira, das respetivas gerações. Dirão: “Que exagero!”. Há exagero no Amor, na Amizade, mas Não na capacidade de devido Reconhecimento.

As diferenças são facilmente notórias, os poemas longos da Tatiana contrastam com os poemas, relativamente, curtos de João Miguel Fernandes Jorge. Mas o que me interessa são os pontos de contacto entre ambos, que poderemos sintetizar: a) o fascínio pela arte grega, b) a evocação de personagens literárias e mitológicas gregas e c) o caráter declaradamente político dos dois. O último aspeto é o que me fascina particularmente. O poema “O retorno: 2016” de Tatiana Faia, dedicado ao poeta “exilado” na Finlândia - João Bosco, é o mais duro retrato de uma geração apanhada nas teias de uma grave crise económica, uma geração que se vê obrigada a emigrar, a sujeitar-se a trabalhos precários e que vê os seus sonhos defraudados. Um poema que nos diz: “não acredito que o país do puro pássaro seja possível”. É talvez o poema mais doloroso de “Um quarto em Atenas”, onde se sobressai nas entrelinhas/linhas um olhar crítico ao presente, a um presente ceifado, amputado.

Do mesmo modo, ainda que talvez mais subtilmente, o poema de João Miguel Fernandes Jorge “De um homem, a vida” mostra-nos uma vítima das crises económicas: a visão de um pedinte em “súplica” e a entrega “sobre a palma da sua mão direita” de uma pequena moeda, uma “envergonhada moeda”. A defesa dos mais frágeis, o olhar para a realidade crua do mundo que os rodeia: eis o que liga esses dois poetas. [E aqui tenho de fazer um parênteses para evocar um outro livro “político” de 2018: “A Foz em Delta” de Manuel Gusmão, com um caráter ainda mais fortemente político, longe de João Miguel Fernandes Jorge ou Tatiana Faia, é certo: “Em Portugal, 51% dos jovens/ licenciados estão no desemprego. É/ uma violência que lhes é feita, assim/ como ao país que se vê por essa via/ impedido de utilizar o seu trabalho/ qualificado.” (“Baile Mandado”).]

O caráter político dos dois livros, de Um quarto em Atenas e Fuck the Polis, sobressai durante toda a sua leitura. O “Fuck the Polis”, de João Miguel Fernandes Jorge, já no seu título aponta para esse aspeto iminentemente político, esse graffiti escrito na rua dedicada a El Greco (“Rua Doménikos Theotokopoulos”), parece em “última análise” ser a resposta dos poetas expulsos da cidade ideal de Platão. Na epígrafe, retirada de Pausânias, é evocada Nemésis (“a mais implacável entre os deuses”), é assim apresentado, desse modo ao leitor, “a nota” de que o livro foi escrito sobre o ímpeto da indignação, a mesma indignação “política” que aqui e ali parece surgir em “O Bosque” (livro-diário escrito nos anos de 2012, ano do auge da crise económica em Portugal). Assim se compreende o aparecimento, no livro de João Miguel Fernandes Jorge, de “mortos vivos”, “mendigos”, “operários” ou, ainda, homens em desespero no metro.

Para além do caráter político do livro, há a grande entrega aos poemas sobre obras-primas da Arte Grega. Os corpos criados pelos “nossos escultores favoritos” da Tatiana Faia (“Café Drama”) estão todos em “Fuck the Polis”: Policleto (“Na estela, o Doryphoros” e “Diadoumenos de delos”); Crítios (“Agôn”); Fídias (“A descalçar uma sandália”); Praxíteles (“De um homem, a vida”) e ainda os escultores das métopas de Olímpia (“Leva-te o arco de Adriano”). Se em “Um Quarto de Atenas” encontramos evocados Caravaggio, Brueghel e Manet; em “Fuck the Polis” temos, também evocados, Malevitch (“Hieratic Cross”) e El Greco (Rua Doménikos Theotokopoulos”): nos dois a mesma pincelada da pintura. Se em Tatiana Faia há um “jardim fechado no meio do nada”, em João Miguel Fernandes Jorge há um “Jardim perdido”, um poema que fala de um eco de cavalgada, o mesmo “eco” tão presente em Fernandes Jorge. Há vários pontos de contacto entre as duas obras e, como é óbvio, diferenças consideráveis, mas isso exige releitura, sensibilidade e Tempo. O já evocado Tempo.

Nestes apontamentos de hoje, quero ainda referir que no livro “Fuck the Polis”, João Miguel Fernandes Jorge escreve poemas extraordinários que nos parecem muito próximos da “narratividade fluida” de Tatiana Faia, é o caso de “Com a beleza cerâmica de uma pyxis”, “Pensei que era Fedra” (ver “Aula de Natação para Fedra” de Tatiana Faia) e “Cândia”. Ao dizer tal afirmação, procuro chamar à atenção para a juvenilidade da poesia de João Miguel Fernandes Jorge neste último livro. Apesar da diferença de idades, experiências e geração, há um encontro entre os dois poetas, ambos conhecedores da Grécia física e literária; ambos parecem encontrar-se em forma, em expressividade e em temática. Sendo eu, leitor de um e de outro, não pude deixar de reconhecer diferenças e semelhanças; impressões que precisam ser mais trabalhadas com o tempo.

João Miguel Fernandes Jorge atinge com “Fuck the Polis” um grau de beleza e pureza próximo de “À beira do mar de junho”. Aqui, neste livro, estão alguns dos mais belos poemas, alguma vez criados, em língua portuguesa dedicados à escultura clássica grega, colocando definitivamente João Miguel no mesmo patamar de Sena e Sophia, só para citar os mais óbvios. Há poemas mais complexos, mas, igualmente, poemas de uma subtileza, leveza extraordinária. É o caso por exemplo de “Cadeira”, “Os gansos brancos” (que me fez pensar no “Cantus Arcticus” de Rautavaara) e “Os incorpóreos sentidos”.

É com “Cadeira” que vos deixo: “de espaldar azul/ assento de palha// perde-se / na parede branca / a sombra”, e somos levados à tranquilidade de uma qualquer ilha grega, longe das grandes cidades, uma, porventura, silenciosa ilha onde o Tempo para. Não sendo este texto crítica literária, podemos perguntar: O que diriam os poetas expulsos da cidade de Platão? Simples: Fuck the Polis! Frase esta, eventualmente, também repetida algures por Tatiana. “Que se lixe a cidade!” E dizer “cidade”/”Polis” será dizer: exposição pública, fama, progresso desenfreado, etc. Ou talvez queira, simplesmente, dizer: “Deixem-nos (aos poetas) em sossego perante a natureza e a arte.

Camões vende legumes na praça

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“Must I write? Dig deep into yourself for a true answer.”

Rilke, Letters to a Young Poet

Pensar em escrever, desejar escrever, sonhar com escrever, palrar na esplanada sobre escrever, nada disso é escrever. 

“Deixa esmagar o cigarro e já componho a versão melhorada da Montanha Mágica. Mais uma cigarrada. Lá para a primavera. Aguardem-me.”

Escrever ocorre no presente, agora. O verbo implica acção, furiosa, intensa e imediata actividade. Tinta no papel. Rugas a mirrar os olhos. Folhas rasgadas, espalhadas pelas mesas, pelo chão. A escrita, como os humanos, como o mundo, é imperfeita. 

“Logo agora que comprei caderno forrado a pele de crocodilo, trinta euros investidos, vou conspurcá-lo-lo com frases da minha autoria, ai Cervantes…”.

Quando não está a escrever, ocorre ao escritor pensar que viver é outra coisa, que passou ao lado do destino. 

“Os meus conhecidos são todos estrelas de cinema e eu ando na mercearia a gastar dinheiro em pão.”

Em vez de escrever, Camões vai vender legumes na praça.

Os amigos peroram acerca de tópicos fundamentais para o futuro da ciência e do universo, mas o escritor, engolido pela própria voz, cerzindo diálogos interiores, ignora o que não inclua falhar, falhar com estrondo na página. Falta-lhe aquele agir, aquele gesto de deslizar a caneta entre os dedos, de cofiar o queixo à conta de frase desprovida de ritmo, de bater com a ponta dos dedos no teclado do computador, de levar a caneca do café aos lábios, até no estômago não caber mais café, aquela forma de viver que para o comum mortal é uma espécie de morte. Afinal, é para poucos, isto de o sujeito somente se sentir bem virado para uma parede branca, buscando cinzelar com toque artístico as palavras, matando o tempo naquele vazio, perdendo horas para arrancar ao tédio o vocábulo preciso.

“Um soldado perdeu o isqueiro que lhe fora oferecido pelo pai e degolou três companheiros com uma faca de mato. Esta é a história que me preparava para escrever quando o telefone tocou, quando o carteiro me bateu à porta, quando chegou a hora de jantar, de ir para a cama.”

 Escrever sem razão, por prazer ou vício, devido a uma inadequação a situações que requerem executar tarefas que excluem a escrita. Entre o escrever e o estar vivo intrometem-se infindos trabalhos secundários, escritor, professor, canalizador, calceteiro, camionista, trabalhos padrastos que forçam o escriba a privar-se de si próprio, a ser quem não é durante muitas horas. Escrever, sim, mas antes disso vem a sobrevivência, o cheque para a mercearia, para os lençóis lavados, para a água do banho. 

“Kafka trabalhou num escritório. Herberto Helder descascou batatas em França.”

Uma viagem de carro para a Carolina do Norte

Ouvi, certa vez, de professor algo irrelevante no que diz respeito ao meu desenvolvimento intelectual – não é mentira que não me recordo da aparência física ou do nome deste professor, mas também não é mentira que estar sentado na sala de aula, naquelas bafientas salas de aula lisboetas em que não se punha em causa a sapiência ou a autoridade, em que nos sentávamos a fingir respeito extremo por aqueles intocáveis intelectuais, era razão para ler os romances que não lia na rua-, que qualquer trabalho académico começa com questões. Não sei ainda se esse questionar académico tem relação com a vida prática, uma vez que me parece incompatível atingir paz de espírito e, ao mesmo tempo, procurar respostas e sentidos para uma vida pouco atreita a racionalizações. Porém, quando, há duas ou três semanas, decidir mudar de posto de trabalho e, por conseguinte, de casa, de cidade e de Estado, uma primeira pergunta me aguçou a curiosidade: como seria viajar de carro de Newark para Chapel Hill, na Carolina do Norte?

Dir-me-ia o tal professor, sulfatador de banalidades, que procuramos fontes para responder a interrogações. Quiçá viver consista, entre outra coisas vãs, em procurar razões que anulem a vontade de responder a tão essencial pergunta: que faço aqui nesta terra, neste planeta? Instalado em faustosa moradia de quatro metros quadrados situada no Ironbound, zona antigamente portuguesa, agora hispano-americana, inquiri os meus vizinhos, a maior parte falante (unicamente) de português e amante das tradições lusitanas (rancho, fado, vinho, maledicência), sobre as dificuldades de tal empreitada. “Não custa nada”, assegurou-me vizinho experimentado nas lides da vida, não sem a bazófia alfacinha, típica de quem não sente dor alguma, mesmo que lhe espetem uma faca no braço. É bom avisar que o motivo pelo qual o vizinho não sente dores, nem mesmo se lhe cravarmos punhal na carne, prende-se ao facto de ter passado a vida a mover o braço para actividades como levar o cigarro à boca ou procurar o comando da televisão enterrado no sofá. “São oito horas a conduzir, tomas um par de cafés e estás lá”, sentenciou outro vizinho, nortenho, pintor de interiores de apartamentos e vítima de fenómeno estranho, caracterizável por temporárias manifestações de raiva quando, nos intervalos do trabalho, se cruza com a própria esposa. No geral optimistas, as sugestões tendiam para a abundante toma de café e para a prática de rituais que reforçassem o foco do condutor, como misturar coca-cola com uns comprimidos energéticos (talvez Viagra). Somente um vizinho, por todos recomendado como aquele que, por ter trabalhado nas obras na Flórida, sabia um mundo sobre viajar e conduzir, me preveniu com sageza curta mas esclarecedora: “Cuidado.”

O heroísmo latente da vizinhança encorajou-me a enfiar no interior de um Honda Accord toda a mobília, livros, roupa e tralha que encontrei no apartamento. Ainda que não me tenha sido possível acartar mais do que roupa, uma torradeira e uma máquina de café, sobrou-me espaço na viatura para uma mulher a rondar o metro e sessenta de altura e uma criança de três anos e um mês. Como não me restava mais espaço, e porque meu coração já ardia de saudade e nostalgia de Newark, de Nova Iorque, e até de coisas surreais como a padaria portuguesa da esquina, arranquei num domingo à noite, convicto de que oito horas de viagem se fariam como uma ida à praia.

Caracterizada por árvores, motéis, restaurantes de fast-food e infinita estrada plana, a paisagem torna algo monótona a travessia dos Estados Unidos através de autoestrada. Quando, depois de mais ou menos quarenta e cinco minutos a conduzir, o GPS indica que estou perto de Filadélfia, fico com a sensação de me terem mentido, que chegar à Carolina do Norte será fácil. De Delaware retenho uma longa ponte vazia, pelo carro atravessada a uma velocidade bastante superior à permitida por lei. Às vezes chove, chove muito, ao ponto de não ver dois palmos à frente. Outras vezes faz um calor húmido, e sempre o carro rasga a autoestrada como um míssil destinado a só parar no destino final. A criança dorme durante as primeiras três horas e meia de viagem, e a mulher, preocupada com a segurança de todos, vai perguntando se não será tempo de parar. “Só mais vinte milhas, só mais trinta milhas”, vou dizendo, concentrado na música e armado em John Wayne, como se fizesse ideia do que estou a fazer.

Passamos por Maryland. A noite escura pouco permite vislumbrar para além de prédios longínquos. Ao volante vêm-me memórias de Stringer Bell e outras personagens de The Wire, e com essa imagem de droga e corrupção deixo Baltimore adormecida. De repente, contrastando com o deserto contínuo, surge Washington. Embora já passe da meia-noite, e o cansaço me impeça de prestar real atenção ao que me rodeia, sinto que a capital americana surpreende pela imponência e modernidade. “Olha, o Capitólio”, ouço, mas mal tenho tempo de virar a cabeça, pois meti na cabeça que, se não abrandar o ritmo, chegarei depressa ao destino. Com a imponência de Washington para trás, outra vez abafado pelas árvores e pela solitária estrada, paramos na Virgínia, não para o par de cafés recomendado pelo vizinho, mas para dormir num motel, que isto de trazer bebés num carro tem a sua ciência. Após breve duche da praxe, que serve essencialmente para dar uso aos sabões e ao resto a que o cliente tem direito num estabelecimento do género, medito sobre a arte de viajar de carro. Nunca antes me passara pela cabeça que conduzir durante tantas horas pudesse ser viciante, que atravessar tantas cidades e Estados me pudesse estimular como um videojogo. Adormeço a assistir ao preço certo americano.

Tomamos o pequeno almoço e, porque o Estado é vasto, almoçamos na Virgínia. Os habitantes locais observam-nos como se fossemos extraterrestres. Também eles, vindos de um filme barato, fardados com botas de cowboy, apetrechados de bigodaça, cabeleiras fartas e vestes de trabalhador rural, nos surgem como figuras exóticas. Demoramos cerca de três horas a chegar à Carolina do Norte. Felizmente, em certas estradas é possível conduzir a setenta milhas por hora, o que para um português ciente do cumprimento das regras, equivale a oitenta e cinco milhas por hora. Incorporando na figura de Michael Knight, evito pensar que a Virgínia me aborrece. Mas agora, à distância de uma semana, aquilo que era uma impressão ficou em mim cravado quase como certeza: eu e a Virgínia não fomos feitos um para o outro.  

Antigamente, julgava que guiar um carro não era para mim. Agora pago um carro a prestações, aprecio guiar a velocidades imoderadas, palmilho estrada de olhos fechados, como se o volante me soprasse ao ouvido para onde ir. Ensinam os budistas que estamos em constante mudança, que nem sequer existe um eu, que somos um rio em movimento. A minha vida melhorou desde que aceitei fazer parte desse rio, ou melhor, desde que deixei de resistir à mudança e parei de acreditar que a minha personalidade era x e nunca assim deixaria de ser (se era teimoso, achava que não poderia deixar de ser teimoso). A história não se repete, a minha personalidade adapta-se ao tempo e ao espaço, deixo-me ir, o que faz com que mudar de cidade, de casa, deixar para trás centenas de livros, conhecer novas pessoas ou adaptar-me a novas realidades, não seja difícil, porque fácil, difícil, entre outros adjectivos ou formas de categorização, abandonaram o meu jogo.

Entrei na Carolina do Norte exausto, necessitado de jacuzzi, piscina, praia, massagens, e de tudo o mais que deus permite. A paisagem não me fascinou logo. Parecia-me mais do mesmo.  E a casa alugada só estaria pronta para entrar dois dias depois, catástrofe que me obrigaria a dormir mais duas noites em motéis e a levar a torradeira e a máquina do café para todo o lado. Não ter casa permitiu-me deambular sem destino. Conheci Carrboro, Durham, Chapel Hill e Raleigh. Não descreverei aqui os sítios que agora frequento. Atenho-me à viagem de carro. Como tantos outros portugueses, julguei que os GPS enganavam as pessoas, que induziam em erro, que quando se dizia que ir de Newark a Chapel Hill levaria cerca de oito horas, tal significava que essa viagem demoraria não mais de seis horitas. Mas o GPS não falhou. Demorei o tempo que estava previsto demorar. Não me enganei em nenhuma saída. O GPS falhou-me menos do que qualquer pessoa que tenha conhecido (deixemo-nos de passivo-agressividade). Duvido que repita esta aventura tão cedo. Mais uma vez imbuído de estupidez, imagino que, com o carro menos pesado e sem um bebé a precisar de constante atenção, retiraria duas horas à viagem. Esqueço que não dá para fechar os olhos em Newark e abri-los, cinco minutos depois, com quatrocentas e muitas milhas calcorreadas. Esta foi das mais estimulantes experiências que vivi.

 

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Existe amor em São Paulo

 

Eu sempre disse que meu lar é minha terra natal. Quando penso em lar, me remeto ao aconchego do colo da minha mainha, uma senhorinha de poucas palavras e manifestações tímidas de carinho, sua comida preparada em poucos minutos mas não menos caprichosa, ela cochilando em frente à TV e o verde vivo das plantas que ela espalha pela casa. Pensando em lar, lembro dos olhos azuis da minha cadela sempre me fitando ou de eu me perguntando o que ela sonha quando se sacoleja dormindo. Lembro do meu quarto, e do quanto gosto de lá estar. Do travesseiro onde me encosto, as lágrimas que acolheu, o hálito amargo de álcool e cigarros duma noitada, tardes de amor, o meu abraço entediado em cochilos de domingo... Na minha cidade distingo as ruas empoeiradas, os buracos, os botecos, o vento frio das madrugadas, árvores jovens magricelas, às vezes há galos cantando e uma densa névoa que encobre a cidade ao amanhecer, e quando o sol se despede e a noite começa, uma variedade de cores atravessa o céu, e as pessoas registram em seus smartphones. É o meu lugar.

Eu estou voltando para esse berço, é para onde imagino que sempre voltarei. Mas depois dessa oportunidade levo comigo uma pergunta: – Terei encontrado eu um novo lar? Estranhamente me reconheço no andar apressado das pessoas e nos seus olhares indiferentes. Imagino o que sonham, porque parecem muito ocupadas para isso. Eu me reconheço nas árvores que aqui são robustas, vigorosas, e estão perdidas entre uma imensidão de prédios imponentes. Quando conseguimos avistar o horizonte, nele nuvens e fumaça se confundem. Meio que aguardamos que de lá saiam dementadores a nos sugar a felicidade. Aqui o céu tem um valor diferente, atentamos nele de forma distinta. O sol e a lua se escondem. As pessoas se esquecem de se perguntar se há estrelas, de apontar Vênus no meio do breu. Eu reluto em não fazer o mesmo, mas seria isso possível?

Entre buzinas, sirenes, milhões de vozes abafadas, pessoas muito bem vestidas solitárias em cafés, capas de chuva e garoa, eu encontrei uma família que pudesse zelar por mim (na febre, na diarreia e na tosse). Aqui me oferecem fora do matrimônio, cama, comida, roupa lavada, e um lugar para poder voltar (ainda que eu esqueça de levar as chaves). Encontrei ouvidos atentos às minhas histórias, aos meus dramas, às músicas que escuto e ao meu cantarolar que acompanha essas canções.

Dividimos a rotina, cigarros (muitos), alguma preguiça, angústias, desilusões, desconfianças, mágoas e ressentimentos. Os desencontros, as mentiras (as que contamos e as que nos foram contadas), o autoflagelo, a autossabotagem, o lixo acumulado na varanda, a fuligem que cobre o chão e escurecem nossos pés descalços que outrora caminharam por fios de titânio. Desses fios costuramos a colcha de retalho do nosso ser e nele nos aquecemos em noites frias. Apesar de toda a imundície que por vezes carregamos, nos lavamos em banhos quentes em chuveiros difíceis de temperar a água. Nos perfumamos com a lavanda da disposição de desvendar o mistério do ser. No fundo de nossos olhos cintilam os sonhos. Sonhos de que o amor seja sempre grandioso, vasto, porém tranquilo, e que o esquecimento, se nos atravessar, que seja apenas o sopro que é a vida seguindo o seu curso, como uma brisa que corre para o mar. Sonhamos que quando não houver mais juventude e utilidade, que tenhamos sido tão obstinadamente nós mesmos e cultivado tanto amor, que não sobre outra coisa que não a convicção de sermos pessoas tão boas que nos tornemos um lar, um cantinho de conforto para se aconchegar, um oceano para se mergulhar, a beira da praia pra se sentar.

I wont Say Goodbye. Digo até logo, porque um pedacinho de mim ficou aqui, e um pedacinho daqui levo comigo. Na minha bagagem e na minha sacola de cacarecos carrego páginas escritas: Existe amor em Essipê.