Já só posso ser isto

Ernesto “Caballo” Cruz, sanguinário dentista cubano que me revestiu a boca de chumbo por intermédio de intermináveis marteladas, ganha agora a vida vendendo perfumes no aeroporto. Se mo tivessem contado, não acreditaria, mas fui eu, Átila Júnior, filho de pai incógnito, professor de francês em situação de pré-reforma vai para mais de duas décadas e meia, e autor de cinco gloriosos romances que esperam editor que lhes dê fama, quem testemunhou, com estes trémulos olhos que a terra tragará, aquilo que ninguém deseja testemunhar: a decadência de alguém que me foi mais próximo do que qualquer antigo amante ao qual tenha confiado os mais escabrosos segredos. Passei um par de noites em branco, regando a ansiedade com chávenas de chá de camomila e meditando sobre o desditoso destino de um animal que, no auge da carreira, era pela sua clientela apodado de açougueiro. Não apago a visão daquele corpanzil quase sexagenário gingando por detrás do balcão, impingindo frascos de Chanel e cremes faciais a velhotas turistas, espargindo beijocas pelo desfalecido mulherio, exibindo aquele branco sorriso que outrora me convenceu a espatifar o dinheiro que tinha e o que não tinha para que ele me metalizasse este cemitério que transporto no lugar da boca.

 Os meus dentes têm sido motivo de constante arrelia. Posso dizer que, sem cáries, sem a constante necessidade de recorrer ao alicate e à anestesia, eu seria pessoa para sentir real felicidade, habitaria um corpo deslumbrante, resultante da combinação de músculo, beleza e inteligência. Porém, na condição em que me encontro, arrancando dentes quase todos os anos, cobrindo de chumbo aqueles que se vão salvando, e sonhando com marmóreas dentições à Hollywood, subsisto à base de comprimidos e de religião. O meu caso é tão grave que trabalho unicamente para sustentar sapateiros diplomados em escavacar maxilares. Guardo o número telefónico de dois ou três dentistas para hipotéticas urgências. Movido por pura curiosidade científica, faço visitas regulares a consultórios de clínica dentária. Com a intenção de preservar os dentes que me restam, bochecho a boca dez vezes por dia com os mais dispendiosos elixires. Caso raro, o meu. Afeiçoo-me a dentistas e acredito que, caso me fosse concedida a oportunidade de voltar atrás no tempo, formar-me-ia em medicina dentária para com outra agilidade solucionar estes problemas dignos de famélico.

Longe de ser o mais talentoso ou carinhoso dentista com que privei ao longo desta jornada de trevas que foi a minha existência, Ernesto Cruz destacava-se no entanto pela veemência, pela rapidez com que decidia que certo dente deveria ser arrancado ou pela determinação com que limpava a cárie e a substituía pela chamada amálgama, produto cinzento, metalizado, que nos recorda da nossa indigente condição humana. Numa das primeiras consultas, impressionou-me a firmeza com que ele declarou que naquele dia havia arrancado dentes a vinte e dois pacientes, todos eles imigrantes e pobres e oriundos de ambientes familiares que não preveniam a pessoa para as virtudes da escova de dentes. “Só me falta você”, afirmou ele, com uma risada orgulhosa que me pôs a rezar pelo futuro. Quarenta minutos e duas anestesias depois, ao descobrir com a ponta da língua que ainda conservava a maior parte dos dentes, agradeci-lhe pelo serviço prestado e senti que uma amizade ou plataforma de compaixão começava a borbulhar. Durante seis meses, visitei o seu consultório semana sim, semana não, enchi-me de chumbo, gastei milhares e milhares de dólares para que me tratassem como um suíno num matadouro. Mas ganhei respeito e, em certa medida, admiração pelo feérico cubano. Ele foi o meu herói secreto.

Ernesto não se revela abatido no desempenho das novas funções, vende perfumes com a mesma alegria com que espetava seringas nas gengivas. Independentemente da profissão ou do lugar, nasceu para brilhar. Quando lhe perguntei que fazia ali, entre a plebe, afastado de seus alicates, contou-me, sem pestanejar, que motivos de grandeza maior o haviam privado de exercer o ofício para qual Deus o enviara ao mundo. Em primeiro lugar, disse ele, estavam as dívidas a fornecedores e às finanças. Em segundo lugar, acrescentou, vinham o divórcio e a consequente perda de metade da fortuna. Finalmente, revelou ele que o facto de não possuir qualquer diploma ou habilitação para a profissão de dentista havia sido determinante para que a polícia lhe tivesse entrado de rompante no consultório e levado de algemas, como a um vulgar criminoso. Por mais incompreendido ou frustrado que se sentisse, Ernesto nada poderia fazer para contrariar a justiça: nem sequer terminara o liceu, e só desenvolvera o gosto pela arte de tratar da boca alheia por, desde miúdo, se ter habituado a arrancar dentes aos vizinhos.

“Certas coisas não se aprendem na escola”, suspirou, abafado pelo laço preto à garçon que o obrigavam a usar na perfumaria. Não há dinheiro que compre o talento, ou aquela faísca ou trovão que instiga o palhaço a brilhar no escuro, que motiva o escritor a vergar a página em branco, que inspira o professor para iluminar os espíritos dos estudantes amorfos. “Que culpa tenho se me fizeram mais talentoso do que aos outros?”, perguntou o cubano, com um encolher de ombros tão elegante que quase me convenceu a comprar-lhe um perfume. 

Custa aceitar que um homem tão experiente como eu, que rodou as mais variadas casas profissionais dedicadas ao arrancar de dentes, não tenha percebido que o seu dentista preferido, aquele pelo qual nutriu afeição, era um farsante. Conquanto me sinta usado e talvez até defraudado, na medida em que certos tratamentos que me foram aplicados poderiam ter sido evitados, nada posso alterar em relação ao que me foi feito: os dentes que me foram arrancados não voltam, e de qualquer maneira não prestavam, estavam podres. Guardo a admiração, a sensação de ter privado com um ser fascinante, com uma dessas raras almas que existem para reinar, não importa o que façam. E ao olhar para trás, para aquilo que vivi e para aquilo que gostaria de ter vivido, concluo que somos como aquela indelével poeira que a vassoura empurra porta fora.

Abrir mundos

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Espelho.
Espectro.

Duas palavras abrem vários mundos. Cada um de nós, leitores, poderia relacionar “espelho” e “espectro” de diferentes maneiras. Ao ler este breve poema de Luis Marcelino Gómez, eu vejo um homem cansado, olheirento, talvez meio despido, contemplando um espelho. Gasto por tremendos trabalhos, esse corpo assoma, fura o escuro, arrasta consigo muitas carapaças. Vejo, no fundo, um espectro, uma criatura que perdeu parte da energia ou do idealismo, que viveu sonhos, tantos deles convertidos em desilusões, e que agora está ali, resistindo a uma furiosa vontade de deixar de ser quem é. Espectro, coisa pesada, remete-me para uma certa ideia de regresso ao passado, de reviver a juventude, de voltar a ser aquele que tudo fazia sem medo. O jovem que não era fantasma. Uma sombra de nós mesmos, eis o que acabamos por ser a certa altura. Uma vida enrugada cobrindo um montão de existências antigas. Estas poderiam ser chaves para uma aula de escrita criativa.

Espectro.
Espelho.

A partir daqui, pedimos aos estudantes que inventem um mundo. Poesia, arte. Muito passa pelo que não está escrito.

Camões vende legumes na praça

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“Must I write? Dig deep into yourself for a true answer.”

Rilke, Letters to a Young Poet

Pensar em escrever, desejar escrever, sonhar com escrever, palrar na esplanada sobre escrever, nada disso é escrever. 

“Deixa esmagar o cigarro e já componho a versão melhorada da Montanha Mágica. Mais uma cigarrada. Lá para a primavera. Aguardem-me.”

Escrever ocorre no presente, agora. O verbo implica acção, furiosa, intensa e imediata actividade. Tinta no papel. Rugas a mirrar os olhos. Folhas rasgadas, espalhadas pelas mesas, pelo chão. A escrita, como os humanos, como o mundo, é imperfeita. 

“Logo agora que comprei caderno forrado a pele de crocodilo, trinta euros investidos, vou conspurcá-lo-lo com frases da minha autoria, ai Cervantes…”.

Quando não está a escrever, ocorre ao escritor pensar que viver é outra coisa, que passou ao lado do destino. 

“Os meus conhecidos são todos estrelas de cinema e eu ando na mercearia a gastar dinheiro em pão.”

Em vez de escrever, Camões vai vender legumes na praça.

Os amigos peroram acerca de tópicos fundamentais para o futuro da ciência e do universo, mas o escritor, engolido pela própria voz, cerzindo diálogos interiores, ignora o que não inclua falhar, falhar com estrondo na página. Falta-lhe aquele agir, aquele gesto de deslizar a caneta entre os dedos, de cofiar o queixo à conta de frase desprovida de ritmo, de bater com a ponta dos dedos no teclado do computador, de levar a caneca do café aos lábios, até no estômago não caber mais café, aquela forma de viver que para o comum mortal é uma espécie de morte. Afinal, é para poucos, isto de o sujeito somente se sentir bem virado para uma parede branca, buscando cinzelar com toque artístico as palavras, matando o tempo naquele vazio, perdendo horas para arrancar ao tédio o vocábulo preciso.

“Um soldado perdeu o isqueiro que lhe fora oferecido pelo pai e degolou três companheiros com uma faca de mato. Esta é a história que me preparava para escrever quando o telefone tocou, quando o carteiro me bateu à porta, quando chegou a hora de jantar, de ir para a cama.”

 Escrever sem razão, por prazer ou vício, devido a uma inadequação a situações que requerem executar tarefas que excluem a escrita. Entre o escrever e o estar vivo intrometem-se infindos trabalhos secundários, escritor, professor, canalizador, calceteiro, camionista, trabalhos padrastos que forçam o escriba a privar-se de si próprio, a ser quem não é durante muitas horas. Escrever, sim, mas antes disso vem a sobrevivência, o cheque para a mercearia, para os lençóis lavados, para a água do banho. 

“Kafka trabalhou num escritório. Herberto Helder descascou batatas em França.”

A solução para os fracos

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Peçonhento, manhoso e tantos outros piropos de cariz luminoso regurgitou Camilo aquando da apoteótica entrada pela microscópica porta da tasca de seu proscrito amigo Zacarias, o mais conceituado e consistente distribuidor de prazer sexual por entre o mulherio casado do município. Matilde, madame de respeito e virtude, caíra no engodo de requerer os préstimos de Zacarias, sem prestar atenção ao detalhe, para todos irrelevante menos para o marido, de ser casada com Camilo, dono de napoleónica figura, pelo menos em termos de calvície, volume da barriga e estatura. 

Não obstante os três pares de estalos, o divórcio e o processo em tribunal exigindo exílio em África para a traidora e decapitação para o patifório amigo, a desonra viera para ocupar, quase por inteiro, o espaço mental de Camilo, o pobre de espírito, que da traição em diante daria em bêbedo de aguardente e fumador daqueles de acender o cigarro no cigarro acabado de chupar. Idas ao médico, recomendações de exercício, visitas a prostíbulos, miminhos sexuais da dona Rute, prostituta reformada para quem a tristeza dos outros se curava a partir de coito não remunerado. Nada removia o encornado do limbo. Camilo não esquecia, não perdoava o amigo Zacarias — já Matilde lhe sobressaltava menos a mente. Zacarias pedia perdão, quinhentas vezes de joelhos, de rojo, murmurando por favor, meu amigo, olvida meu pecado. Não, exclamava Camilo, às vezes encolerizado, outras vezes, muito por causa da bagaceira, mais pacificado. 

Camilo pedia punição terrena para o ex-amigo, mas o dia do julgamento final, da sentença máxima, do desterro, dos trabalhos forçados, da chacota pública, tardava como os milhões de dólares a entrarem na conta bancária do pobre. A justiça atingiria Zacarias no preciso dia em que traidor e traído se avistaram na tasca. Camilo sugava seu cigarro, ao mesmo tempo que com a língua raspava os restos de cera depositados no dedo mindinho, soprava adjetivação contra o inimigo, como se a palavra o fosse tombar ou enfraquecer, quando, quase do nada, um homem enegrecido, gigantesco, poderoso e medonho acariciou a nuca de Zacarias com um murro que lhe furou o osso e o matou logo ali. Eunuco, eis o nome desse bisonte de dois metros de altura que, também ele ferido na sua honra de marido, viera em busca do malandro para lhe entregar o poder da lei. Zacarias morto. Camilo vingado. A nossa história termina aqui, mas o suplício de Camilo estender-se-ia até ao túmulo: não há solução para os fracos. 

 

A Celeste do sétimo ano

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Não tem dentes na boca, a galdéria, nem um, apresenta a cremalheira partida, uma boquinha de bebé com as gengivas rosáceas. Os primeiros dentes tombaram à força dos estouros do Zé, o chulo. Os outros apodreceram de apodrecimento natural, e também porque a droga, quando mamada em abundância, é material que perdoa pouco. Coitada, ofertando felácio na esquina, pobre, logo a Celeste que era tão boa em termos de feições e beijocava de uma maneira que...ora bem, para descrever seus beijos teria de consultar enciclopédia e explicar o fenómeno das estrelas cadentes e da invasão de Marte por Arnold Schwarzenegger naquele esquecido filme de domingo. A língua de Celeste, bicho húmido, chupa-chupa, pirolito, metia ao barulho matemática, pintura, ciência, química e aromas. Celeste, desfigurada. E eu que a pedi em casamento no sétimo ano, na aula de inglês, perante o mumificado Luís Pedro, a melhor fotografia viva de pôr na campa que conheci. Luís Pedro, cábulas de plantão, empenhado em fazer voar a ponta do giz até à nuca do professor. A propósito de professor, isto de lecionar em Massamá esfalfa um santo. Ontem, de alma mirrada, buscava conforto nos beiços de uma menina de rua, e quem encontro, Celeste, a mesma do sétimo ano, agora na pocilga. Gorda, quiçá, mãe de três potros, casada com um devorador de feijoadas ou pedreiro ou jardineiro ou calceteiro ou canalizador, imaginava-a a fazer qualquer coisa menos associada a um gandulo agarrado à heroína, acometido por recorrentes impulsos de arrancar dentes ao soco. Celeste, debruçada sobre o carro, cuspia que o serviço me custaria dez biscas - pagas cinco no imediato, dez no fim, com gorjeta e taxa de juro, que isto é como nos bancos, pagas em cómodas modalidades, mas a dobrar. De modos que a Celeste, desdentada, me desabotoou as calças de ganga da Levi’s que a minha mãe comprou nos saldos. E não tardou a matar-me a saudade daquela vivacidade que só ela tem. Retomei o amor, pedi-a em casamento, ela aceitou, amanhã compraremos as anilhas de ouro e já planeamos fugir para o Brasil, uma vez que de má reputação estamos cheios até ao pescoço.