Três poemas de Tiago Dias

Reflexões sobre o pé da bailarina

como pensar no peso
se o movimento encanta
espalha qualquer névoa
nódoa bolha de sangue ?
perto do chão
conseguir-se altivo idílico
como
questionar a dor interpelar o segredo
a alimentar a beleza de carregar o peso
enquanto agrada a multidão
muito mais por aquilo que dela
passa contorcendo-se ?
como
entender o limite equilíbrio
o entre: carregar o peso é dança

Sina de bom moço é colocar bem-me-quer na correnteza

ela estava entre
o entrudo e o carnaval
vendendo seus poemas
pintados no corpo nu
aqueles leitores jamais esqueceriam
do movimento de suas rimas
do verso quebrado em praça pública
da palavra rebolando
para caber na métrica perfeita
e de repente a poesia ganhava
finalmente um sentido social

Breves notas sobre o suor e a palpitação de mais um leitor

oito anos de idade não servem
para uma montanha russa
é preciso mais noites e dias
com oito anos não sabia nada
da noite dormia e sonhava
assim casou-se com um homem
velho quase sem cores e riso
exceto nas madrugadas
em que não se adormecia
controlava-se a respiração
pouco a pouco até que ela
crescesse engolindo a escuridão


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tudo em volta é só tristeza

tudo em volta é só tristeza
pedras em terra destecem
como tecendo se-fossem
todas tetras faces cíclicas
como tecendo se-fossem
sobre o céu de abril – silentes
cábulas – e a mata em flor  

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

um corpo sempre é feito
de ciclo assimilado
daquilo que fizeram
com os tecidos fios
de seus vazios internos: 
um corpo sempre é feito  

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

como se tudo só tecesse
as tão brancas margens do sal
ou um deserto nu de nadas
como tecesse tudo só 
um grão de areia entre as próprias
verticais paisagens de morte
ou elementares enigmas
na dita máquina da vida  

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

que o tecer não
é nunca só 
de apenas um
fio destecido  

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

o que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou
a aparição da arredia face em
úmidas pétalas do negro galho
tudo se acha à meia parte da via
a dura palavra em pedra tecida
que pela escura selva sempre em ciclos
faz levar mas também é conduzida
a essa selva selvagem rude e forte
onde o meio andar refaz-se e não finda  

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

não há fugir não há esperança
tudo é mudo e tudo está deserto
como no fim do voo um pássaro
pro passado ao olhar decompõe
as próprias asas e em círculos caindo
ao profundo dum lago tecendo-se
fosse muda sombra nada 

*

Cinco anos após a extinção da lira

o telejornal da noite anuncia a continuação dos conflitos étnico-religiosos na turquia
(coisa de criança que brincava de espingarda e quando cresce
não tem com o que brincar) 
o repórter nem mesmo se exalta com o som de tanta bomba
para espanto da lembrança de quanto te conheci anos atrás
quando ainda não havia correria ou preocupações monetárias
mas mesmo que o dedo que puxa o gatilho esteja longe
assim como o cano da arma está longe
nada garante que nenhum dedo tenha ativado nenhum gatilho
disparado nenhum tiro contra o seu peito ou costas, o menino turco que se importava
com as mesmas coisas que se importam os rapazes menos fúteis das terras de cá 
que já enfeitaram os meus dias em momentos menos arrastados
naquele tempo você dizia que a tela do computador era a nossa chance de risos
e a gente só dormia separado pelas horas
alegria era aprender a embolar a língua com palavras estranhas
pastorear bodes entre os prédios da cidade, conhecer canções que só tocam
no interior do pensamento do jornaleiro europeu
embora muito tenha mudado, eu ainda não sei pedalar
meu equilíbrio ainda não é dos melhores, as vontades estéticas ainda são as mesmas
mas eu queria saber de você 
como vão as coisas por aí? 
o medo ainda faz cordão de fitas em seu peito ou te causou maior mal? 
ainda pareço um índio ou a sua melhor ideia de casamento? 
sabe, já te descrevi em linhas como o sonho mais suado de um dia
o traço fundo na areia por onde a água do mar entra para invadir os castelos
você dizia que o seu país era triste
que não sabia o que era amor e que o amor às vezes apertava muito sem doer
será ainda? 
por aqui o ventilador vai funcionando bem
eu lembro das suas reclamações sobre o calor
conheci um fotógrafo que me apresentou o livro das coisas absurdas
dos pés que fazem rufar tambores asiáticos
ele diz que tudo vira grama dourada sob o peso de um olhar feliz
ou de uma bola de canhão, o que no fim não importa já que é tudo uma coisa só 
mas no fim do dia vez em quando ouço a água correr pela tubulação
e lembro o teu sorriso
ainda lembro o teu sorriso, aquele mesmo preso entre duas orelhas tímidas
do tempo em que estrelas siamesas ainda eram desconhecidas e chovia menos no verão
quando nenhuma criança se afogava em praias negras pelo sonho de  viver em paz
sem mais i love yous
até hoje eu não esqueci que os leões são os que
mais sonham com libélulas


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Clarissa Comin, dois textos

vestíbulo para uma anti-prosa 

 

Tenho o demo dentro de mim e assim floresce a grande prosa.  

Caminho cabeça baixa, fuçando os vãos daquela tarde – inverno de 2003 – o chão de bancos rosados, ao lado da casa assaltada pelos policiais, beijos e anões; chegam os informes sobre uma mancha escura grudada nua num canto invisível, crime inafiançável! Meus leões disfarçam para não voarem tuas veias abaixo, para poderem adubar e raptar o diesel e o carvão, para devorarem na porta o disco, bolacha-canção, e deixar só verocidade.  

Isso foi ontem, segredos encontrados numa caverna. 

Deixei-me enganar pela toalha dobrada em A4, se querendo livro, salpicada de letrinhas corante-86.  

Não sou Champollion.  

Sou estraga-prazeres: proparoxítona terminada em ó 

 

nebulosa nº 3 

 

apontar os mesmos defeitos usando o dedo do meio esquerdo porque a última vez que estive aqui era essa mesma ponte agarrada a uma coisa cheiro de casa mal amarrada à cara clara exalando coisas amargas e perguntava de onde vinha o gastro amor imaginário de onde vinha esse fantasma engarrafado há milhas que me lia daí de onde vinha aquela água pesada levando ao mesmo tempo para longe esse medo tolo de deixar sentir também tinha aquilo do aumento impreciso das taxas cambiais e do cultivo de feromônios em campos fechados regados com água mineral livre de metais nodosos e eu pegava o caderno amassado mentia que estava tudo pago percorrendo imagens looping and roll de uma noite cinema em que o dedo roçou a ponta do cabelo alheio o brilho do passo estreito forçando a barra pra caber num espaço exíguo 50 x 50cm bom seria ter senso ser meu do-it-yourself atacar quimeras chamar umas fadas vestidas de tapetes numa ilha etérea etc etc mas o povo é viciado em dar corda para boi dormir espantam inimigos pra depois sentir-lhes falta acostumei-me com o desalinho da falta de tempo visto-me de pinho e escovo sapatos cabelos dentes com uma mão só mas agora não tinha mais isso sobraram relicários de gravatas camisas botas mal passadas sangrando a céu aberto uma perna enfiada de qualquer jeito ocupa a reta entre dois pés um não e um quadrado mágico só você sabe montar no entanto saberia você dizer por quê começou a chover esse cheiro de ontem de letra posta de molho sem fermento no fim eu só peço uma coisa no fim se pudesse dizer algo à toa à deriva último respiro antes de fechar a página seria ver a fonte nascer uma família inteira para nos dizer. 

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respondendo à hipótese do vazio

se nunca mais repleto o mundo
— dentro em nós, apenas— canta
em cada esquina, cada luz solar, 
inundação no riso, brilho em pele, 
prestes mesmo ao nada exorbitante, 
espelho de conflitos puro, raro
de reflexo, rente de célula a célula  
não mais que grito em cacos, dê 
um passo atrás saindo à sombra
e eis o sol: se agora queima a cútis, 
ou por mera aurora ainda avaro, 
fique. desça a cortina dos olhos, 
a fricção gentil de mão a mão. tão sós, 
nos cumpre sempre descobrir o sol.