Olimpíadas

Hoje acordei com o cheiro
da morte como uma nódoa
na omoplata ou seria uma planta
de floração tardia?
Um nevoeiro espesso cobre
a cidade escondendo-os
sentados em escritórios ou à borda
da cama eles e eu indignados
Ninguém diria que hoje
é o dia da grande festa
Pelo Sena em desfile
vão passar de todo
o mundo os corpos
dos atletas

O outro que era eu

Fechado no bafiento gabinete londrino
à procura de Ruben A., por equívoco
falando com uma tal Laura enquanto lia
no gesso dos seus ombros uma Beatrice
de Dante tornada doutora em filosofia,
vi em mim um sentimento de pertença
posto do avesso. Receoso de rasgar
o vulcão de porcelana à minha volta,
do óbito do serviço de chá e sortido
de livros à brutalidade sedosa da saia
travada, ocorreu-me uma portuguesa
história de desenganos que célebre
atravessou os séculos e foi despejar
as culpas da minha inépcia na vala
da deserção intelectual, cavada
após um salto mortal do cinismo.

Foi um dia em que acordara aquém
do dinamitado espírito britânico,
embora além do seu vorticismo,
não me interessando já a vigilância
dos ataques aéreos no topo da Faber
& Faber
, cansado dos poetas titãs
combatendo na torre do capitão:
pus em marcha na imaginação
a figura de um oleiro de Alcobaça
e um bom açoriano chamado Mateus
Álvares, a par de um doce pasteleiro
do Madrigal, sem esquecer Marco Túlio,
o aventureiro italiano: todos condenados
à forca por se fazerem passar pelo outro,
todos querendo apenas ser Outro,

não o salvador ou messias judaico,
apenas alguém que não fosse oleiro
em Alcobaça, açoriano nos Açores,
aventureiro e logo italiano, só pessoa
que a outra fama colasse o nome inteiro.
Sonhando em prol do ocioso campesinato,
em defesa do alegre Chesterton, armado
em anarca detectivesco, abandonei
o gélido gabinete de Laura, notando
nos seus ombros o gesso da Beatrice
de Dante, na filosofia da sua mente
como na minha, uma alcova dissonante. 

(inédito)

Do paraíso ao inferno

Hieronymus Bosch, Jardim das Delícias, 1504

O Paraíso, que parecia ser só um e nos deu a altura devida (plena felicidade) para que a queda fosse exemplar (descobrimos os valores, as palavras e a dor), tornou-se, substantivado ou adjetivado, um mot-valise. Está, como não podia deixar de ser, em toda a economia industrial do turismo, mas igualmente noutras áreas da civilização do consumo (produção, consumo e lixo, na verdade).

Sabemos que vivemos numa retórica do hiperbólico, ampliamos, engrandecemos o mais que podemos tudo o que tiver a mínima condição para se destacar, sobressair ligeiramente num certo contexto. Estamos, pois, longe da paciência e da contenção avaliativa. Não que eu defenda, em modo inactual, uma hermenêutica judiciosa por sovinice, mas porque ninguém sai a ganhar com a banalização do grandioso (partamos do princípio que é possível defini-lo sem cair na arbitrariedade).

Nietzsche viu bem esta decadência no início do era dos todos os perigos (segunda metade do século xix). A ressaca do culto do génio romântico, que queria democratizar capacidades e competências, deixou emergir um spleen bafiento que ressuscitou, com demasiada facilidade, hierarquizações grotescas. Contra isto, escrevia aquele pensador: «E um povo — como um homem, aliás, — só vale pela marca da eternidade que for capaz de imprimir nas suas experiências.» (O Nascimento da Tragédia, § 23)

Dar-se-á agora também o caso de que de tanto paraíso, tanto paradisíaco resulte um cansaço que nos leve a abrir as portas do inferno (que, como sabemos depois de Sartre, são sempre os outros). E talvez este inferno, partindo de uma visão catastrofílica, seja somente a descoberta de que a civilização atingiu o colapso sistémico, não cultural ou psicologicamente (leia-se o Mal-Estar na Civilização de Freud), mas ambientalmente. A descoberta, de polichinelo, de que a Terra já não nos suporta (na dupla acessão: material e afetiva).

Se nos desalienarmos da retórica consumista (que colonizou todos os atos de fala, por mais anódinos que sejam), nem sequer sentiremos uma inquietante estranheza (das Unheimliche), mas, na melhor das hipóteses, resignaremos poeticamente e viajaremos sem agitação através do inferno à espera de sermos submersos pelos detritos: plásticos, linguísticos e imagéticos.

Achado num comboio para a Antuérpia

Os meus poemas no estrangeiro não valem nada.
Os poemas estão no estrangeiro e carecem de valor
de verdade, lógica proposicional, efeito perlocutório,
força locutiva. Não digo que os meus poemas
nada valham no estrangeiro como se o problema
pudesse resumir-se a uma indubitável querela
de mercado, questão de preferência em estranho viveiro.
Não: eles existem no estrangeiro porque alguém os quis
lá, um forasteiro ou talvez mesmo dois – conduzem
a sua existência estrangeirada em condigno exagero,
mas perderam por algum motivo o valor de circulação.
Não me contaram, fui eu encontrá-los ainda limpos,
com as vísceras soltas, cabeça inteira e cauda intacta,
com vestígios de brilho num balde do lixo plásmico.
Foi-lhes atribuída uma certa indulgência planetária,
um cosmos de rouquidão perpétua votado em plenário,
e assim vivem sem saber falar uma língua franca,
desastrados, aos saltos numa corrida do saco
entre a comunidade dos novos astecas astrais
e a acolhedora seita terrestre que caldeia os aflitos
de sempre, ocupados com transacções de papel,
tela, celulóide, toda a fita coloidal da criação. São
figuras que o velho Bruegel votaria ao silêncio da gravura.
A sua glória é o seu ponto fraco, a tudo preferem o calor dúbio
de um agasalho, gostam de ser afagados ao colo de um mendigo
durante os circuitos fechados de uma ventosa madrugada.

(inédito)

2 poemas

Ōkōchi Sansō, Arashyiama (Quioto)

Novembro 2023

Komorebi

Aspiras à ascensão do silêncio bruto,

Abrupta a certeza do impalpável momento,

Mais lento que um suspiro no desmoronamento

Da partida, o toque último das pupilas

No deslocamento dos astros, todas as ilusões

O vento que move as distâncias imperceptíveis,

Derrotas-te a cada desejo,

Mas nem o impacto violento de um definitivo olhar

Consegue tolher irremediavelmente

Uma eternidade humana.

Fazer a Janta

O pão endurece, as manhãs perdem-se uma a uma

E sobre a mesa, alho e cebola, esperando o azeite quente,

Um pôr-do-sol que valha a pena, um reflexo estrangeiro

Num mar familiar e mitológico,

Quantas vezes há menos poesia na poesia

Que num gesto quotidiano executado com graça,

Viver, esse ensino constante da perdição, abrir mão,

Teme-se mais o esquecimento que ficar sem resposta,

Por isso se erguem monumentos à incerteza

Para que perdure na eternidade,

Deixa-se cozer o ragu, mexe-se um pouco a massa

E espera-se, uma nuvem permite um pouco de sol,

Toca a campainha, é tudo.