“Pride” de Matthew Warchus (Reino Unido, 2014)

http://www.hollywood.com 'Pride' Trailer Director: Matthew Warchus Starring: Bill Nighy, Andrew Scott, Dominic West UK gay and lesbian activists work to help miners during their lengthy strike of the National Union of Mineworkers in the summer of 1984. For more movie trailers, celebrity interviews and box office news visit Hollywood.com!

“This is where we would kiss if we were normal”

A citação é uma frase dita às tantas por uma das personagens de Pride, e permanece no meio do filme como o epítome de um dos seus temas mais importantes: a busca pela mediação entre um sentido de diferença e identidade que só pode ser alcançada se o ponto de partida for a solidariedade. Neste sentido, Pride, baseado em factos verídicos, é um filme cheio de humanidade. O filme narra a improvável história de como uma associação de activistas gay veio a tornar-se uma das principais apoiantes de uma pequena comunidade de mineiros no sul de Gales durante a greve de 1984-1985, durante o governo de Thatcher.

Pride não é um grande filme no sentido em que, por exemplo, Twelve Years a Slave é um grande filme. Ambos partilham o facto de serem baseados em histórias verídicas, mas enquanto Twelve Years a Slave se torna uma obra de arte, com a qual temos uma relação ética complicada justamente porque ela atinge este estatuto (sobre isto já aqui se escreveu), Pride não é esse tipo de filme, mas tendo dito isto, é um filme cheio de pulso, baseado numa história cheia de alma.

Eleito, na estreia, filme da semana pela crítica da BBC (a fantástica dupla Mark Kermode e Simon Mayo), Pride é uma pequena história sobre como a solidariedade pode vencer a diferença e o preconceito e desse ponto de vista é uma versão trazida à escala de duas comunidades de um microcosmo de tenções que são em termos abstractos parte de todas as relações humanas. O peso da resposta que o filme nos quer dar acaba por pender completamente para o lado mais positivo dos actos e resoluções que essa escala emocional supõe. O lado mais comovente do filme (Mark Kermode diz que começou a chorar aos quinze minutos e não parou mais) depende em grande parte disso.

Pride é um filme que nos enche de esperança na humanidade, cuja imagem acabada é essa fábula sobre o poder de pequenas comunidades que se juntam contra os grandes poderes opressivos, dos quais fazem parte uma polícia sem grandes problemas em levar a cabo detenções ilegais no meio de uma população desinformada ou as primeiras páginas homofóbicas e pró-Thatcher do The Sun de Rupert Murdoch, elementos que configuram talvez uma das linhas mais interessantes do filme em relação ao contexto da sua estreia – esse comentário contra o poder da desinformação.

Poder-se-ia aqui parafrasear Lampedusa para arrumar este filme entre o número desses objectos contemporâneos que, completamente desprovidos de alma, nos dão a ilusão de que tudo está a mudar para que tudo possa, afinal, ficar na mesma. Nem sempre se pode ser tão cínico e é preciso admitir que, não estando do lado do Leopardo, proferir esta frase não nos dá muitas vezes mais vantagem do que tornarmos óbvio que estamos a ver o que está a acontecer, sem mais vontade de reagir do que um aceno enjoado de grumpy cat.

Uma última nota sobre interpretações. Bill Nighy alcança o prodígio de manter a mesma expressão durante todo o filme (com uma pequena, mas crucial, variação), o que paradoxalmente resulta numa interpretação excelente. Outra alegria que este filme nos traz é poder rever Dominic West, o McNulty de The Wire, e Andrew Scott, o actor  que interpreta Moriarty na mais recente versão de Sherlock da BBC (esta protagonizada por Benedict Cumberbatch e Martin Freeman), o que na ressaca pós-Sherlock, é sempre bem vindo (as séries são emitidas por vezes com dois anos de intervalo). Pride estreia em Portugal em finais de Outubro. 

 

Oração fria de Antonio Gamoneda

A arte de traduzir é, simplesmente, uma das mais elevadas e secretas. Poucos humanos conseguem levar poemas para uma outra língua com essa estranha e árdua fidelidade que reproduz a ebriedade, o ritmo, e o pensar cosido à música da vida da qual nasce o poema. Mais difícil ainda frente ao sentir popular, é fazer viajar a poesia para uma língua aparentemente familiar ou próxima. Mudar, verbo escolhido por Helberto Helder para este facto sagrado que sempre convoca a apropriação de outra voz e a recriação oral e escrita do poema, um verbo que, Gamoneda aceitou e recebeu com gosto. Sempre tem que ser um poeta a mudar a voz de outro poeta e sempre que isto acontece nota-se logo a partir do início da leitura.

            E é neste caso, o labor de João Moita que atesta da validade de todas estas intuições: não só a escolha de poemas de Moita é feliz como a tradução aparentemente mais fiel e menos mudada parece apontar uma facilidade de trabalho que talvez na verdade não exista. Talvez por uma das qualidades essenciais da poesia deste autor espanhol ser a própria musicalidade e a simplicidade do verso, facilite e até explique em grande medida a magnífica e bem-sucedida antologia portuguesa do autor.

            Como dizia, a apresentação da vida e da obra do autor feitas pelo antologista são muito pertinentes e oportunas para o leitor português. A antologia que tem como base uma outra recolha aparentemente definitiva feita pelo autor (Esta luz. Poesía reunida (1947-2004), Galaxia Gutenberg, 2004) é uma boa oportunidade para estabelecer um diálogo panorâmico com esta voz imprescindível pela autenticidade da sua voz ímpar, e onde a musicalidade e o pensar poético se encontram absolutamente fundidos.

            É preciso notar também que a antologia efectuada por João Moita acrescenta cinco poemas presentes no último livro, até ao momento, de Antonio Gamoneda: Canción Errónea. Facto que considero deveras importante por se tratar de um livro que no meu entender supõe um píncaro essencial da obra do autor, uma espécie de planalto a partir do qual a voz poética olha o passado e a ausência futura. A inclusão de alguns poemas deste livro facilita, melhora e acolhe uma necessária impregnação da obra do autor na perspectiva do tempo. Canción Errónea é um livro que supõe a maturidade total da voz e a sabedoria poética, onde alguns dos poemas fazem arrepiar pela profundidade e clareza da voz na perspectiva deste tempo ou desta morte vivida que é sempre a poesia: [...]Amo este corpo velho e a substância/da sua miséria clínica. /O esquecimento / dissolve a matéria pensante  /diante dos grandes vidros / da mentira. /Já /tudo está dirimido. / Não há causa em mim. Em mim não há /mais que cansaço e /um extravio antigo: /Ir /Da inexistência /à inexistência. /É /um sonho. /um sonho vazio /mas acontece. /Eu amo /Tudo quanto cri /vivente em mim. /Amei as grandes /mãos da minha mãe e /aquele metal antigo /dos seus olhos e aquele /cansaço cheio de luz /e de frio. /Desprezo /a eternidade. /Vivi /e não sei porquê. /Agora hei-de amar a minha própria morte /e não sei morrer. /Que equívoco.

            Poética vital, poesia vital que intensifica a vida. Assunção do mistério, diálogo com o invisível, reconhecimento do rosto na memória, consciência e afirmação da presença na ausência futura, vivência do corpo informe do símbolo, criação da beleza no impossível, são elementos essenciais de uma poética que resulta já imprescindível no nosso confuso tempo de poéticas barrocas, instranscendentes, superficiais e pacatas, cheias de um sentir quotidiano situado fora da imanência do sagrado que a vida impõe. Só na humildade, na aceitação profunda do símbolo poético pode nascer uma poesia autêntica e intemporal, onde nenhuma palavra é decorativa senão essencial, palabra esencial en el tiempo, definição da poesia de Antonio Machado que bem honra a escrita de Antonio Gamoneda. Quem queira penetrar no segredo da poesia que foge do acidental, quem queira fugir da poesia que nasce da experiencia passageira e intrascendente, acidental, deverá ler estes versos.

Read More