um, dois

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andávamos camuflados     usavam-se uns grandes fatos de neve que nos tapavam as feições, as pernas e os pés tortos e identificáveis         andávamos camuflados    lembro-me,     sobretudo,             era Verão e suávamos debaixo dos fatos              sentíamos o calor na pele e o frio na pele              o suor a secar    

e

era sempre em transmissão  de um para o outro  que nos encontrávamos        achei sempre que        existíamos em intermitência ou estática   como a televisão

não cumpríamos planos, éramos            sobretudo os outros      gosto sobretudo da palavra sobretudo porque também éramos outras coisas   mas éramos mais as que vestíamos             : os outros :

 os do inverno acérrimo  no verão contundente                       éramos esses

   do surro a escorrer pelas ruas     como uma lesma     mas não era baba   era menos espessa   e não       deixávamos um rasto intenso       o odor marcava nos        mas não sobretudo

 

                        Sobretudo                   

      os fatos das neves  com padrão militar de ensaio                              nunca passámos despercebidos   aprendi a língua do avesso  porque andávamos    sobretudo camuflados   nunca nos desencontravam

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A C O R D A R A  N O V A M E N T E  C O M  V O N T A D E  D E  F A Z E R  D O  M U N D O  M A T É R I A


[Perfil de Catarina Real na Enfermaria 6]

a cidade foi cercada

a cidade foi cercada
e vem a noite
e de milhares de leões
um
a cidade foi devastada
e de milhares de barrigas
uma
e vem a manhã 
o mar arredou
há uma concha trincada
debaixo de tão pequeno pé 
há séculos a cidade sangra pelos teu canais
porque a poeira
que sempre vaza os lençóis
assim desejou
a cidade foi inundada
também
pelos teus canais  
agora a noite precisa ser mentida   

tão pequenos os pés os ovos tão moles
tão perfeitos os talos
desfigurado o ombro
tão limpinhas as cuias a cidade o leão e o peixe  

A persistência das Imagens

A persistência das Imagens

 1. Talvez haja um momento, não necessariamente pensado pelos futuristas com a sua utopia de uma mecanização do “humano” como uma ainda sua possível extensão (“declaramos sem sorrir que na carne do homem dormem asas” e que ele “será dotado de órgãos inesperados, órgãos adaptados às exigências de um ambiente feito de choques contínuos”, proclama Marinetti no manifesto O Homem-Multiplicado e o Reino da Máquina)[1], um momento, afinal, em que as máquinas, os espelhos, os diferentes dispo-sitivos, de tanto se reflectirem – de tanto pensar ou ser obrigados a trabalhar as proprie-dades da sua matéria e processos -, se tornam autosuficientes e acabam por produzir, a partir de si mesmos, as suas ideias, emoções e imagens.

    Nos anos 20 do século parece que passado – quando o mundo, dizia-se, era “moderno” -, num contexto em que se vivia uma relação extrema com o poder de abertura e de revelação do sujeito e do “humano” pelo real, os objectos e a máquina (o pintor, “mura-lista” e ocasionalmente cineasta, Fernand Léger, anunciava em 1924 “ a vinda [l’avène-ment] do objecto” que constituía, para ele, “o problema plástico da actualidade”)[2], essa possibilidade (oportunidade?) era pensada (vivida) como o devir-outro, in(h)umano, do sujeito enquanto parte (engrenagem) da instalação material das coisas (real) – do seu Dasein não só físico (“natural”) mas também tecnológico, traduzisse-se isso num devir-cosmos ou máquina (o que, muitas vezes, era o mesmo).

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