Café Filosófico: Para lá do bem e do mal, o prazer

Texto de apresentação do Café Filosófico, na livraria Snob, em Lisboa, sobre o prazer na moral: «Podemos observar o mundo para conhecermos as coisas, ou podemos olhá-lo para compreendermos o valor das coisas. À primeira vista, parece ser mais uma escolha entre tantas, cujo resultado acabará por ser subsumido, talvez diluído, nos grandes eixos da vida. No entanto, avaliar define, em grande medida, a nossa maneira de viver e a forma como nos confrontamos com a realidade, que é, desde sempre, polimórfica. Por isso, a filosofia deve questionar radicalmente a moral, muito mais do que a verdade (que, aliás, também faz parte da moral, visto que a valorizamos mais do que a mentira).
Os textos mais importantes de Nietzsche sobre a moral encontram-se em Aurora (1881), Para Lá Bem e Mal (1886) e Para a Genealogia da Moral (1887). Neste Café Filosófico, abordaremos algumas das principais teses que esses textos contêm. Contudo, pretendemos sobretudo discutir o que Nietzsche escreve em Humano, Demasiado Humano I (1878) sobre a relação íntima entre moral e prazer, declarando, no fundo, que o bem é aquilo que traz prazer.
«O prazer a moral. — Um tipo importante de prazer [Lust] e, por conseguinte, fonte da moralidade, provém do hábito. Faz-se mais facilmente e com melhor perfeição aquilo a que se está habituado, portanto com mais vontade, sente-se prazer em fazê-lo e sabe-se, pela experiência, que o habitual provou o seu valor e, por isso, é útil; um costume que permite uma vida bem-sucedida provou ser salutar e benéfico, em contraste com todas as novas tentativas ainda não testadas. O costume, portanto, une o agradável ao útil; além de dispensar reflexão. Assim que o homem adquire poder para exercer a coação, fá-lo para impor e disseminar os seus costumes, pois para ele são uma sabedoria de vida já testada e comprovada.» (§ 97 de Humano, Demasiado Humano I).
A partir deste excerto podemos vislumbrar o conteúdo e a tonalidade do próximo Café Filosófico.»

um, dois

IMG_20160722_181234.jpg

andávamos camuflados     usavam-se uns grandes fatos de neve que nos tapavam as feições, as pernas e os pés tortos e identificáveis         andávamos camuflados    lembro-me,     sobretudo,             era Verão e suávamos debaixo dos fatos              sentíamos o calor na pele e o frio na pele              o suor a secar    

e

era sempre em transmissão  de um para o outro  que nos encontrávamos        achei sempre que        existíamos em intermitência ou estática   como a televisão

não cumpríamos planos, éramos            sobretudo os outros      gosto sobretudo da palavra sobretudo porque também éramos outras coisas   mas éramos mais as que vestíamos             : os outros :

 os do inverno acérrimo  no verão contundente                       éramos esses

   do surro a escorrer pelas ruas     como uma lesma     mas não era baba   era menos espessa   e não       deixávamos um rasto intenso       o odor marcava nos        mas não sobretudo

 

                        Sobretudo                   

      os fatos das neves  com padrão militar de ensaio                              nunca passámos despercebidos   aprendi a língua do avesso  porque andávamos    sobretudo camuflados   nunca nos desencontravam

IMG_20160722_180638-cópia.jpg

A C O R D A R A  N O V A M E N T E  C O M  V O N T A D E  D E  F A Z E R  D O  M U N D O  M A T É R I A


[Perfil de Catarina Real na Enfermaria 6]

a cidade foi cercada

a cidade foi cercada
e vem a noite
e de milhares de leões
um
a cidade foi devastada
e de milhares de barrigas
uma
e vem a manhã 
o mar arredou
há uma concha trincada
debaixo de tão pequeno pé 
há séculos a cidade sangra pelos teu canais
porque a poeira
que sempre vaza os lençóis
assim desejou
a cidade foi inundada
também
pelos teus canais  
agora a noite precisa ser mentida   

tão pequenos os pés os ovos tão moles
tão perfeitos os talos
desfigurado o ombro
tão limpinhas as cuias a cidade o leão e o peixe  

A persistência das Imagens

A persistência das Imagens

 1. Talvez haja um momento, não necessariamente pensado pelos futuristas com a sua utopia de uma mecanização do “humano” como uma ainda sua possível extensão (“declaramos sem sorrir que na carne do homem dormem asas” e que ele “será dotado de órgãos inesperados, órgãos adaptados às exigências de um ambiente feito de choques contínuos”, proclama Marinetti no manifesto O Homem-Multiplicado e o Reino da Máquina)[1], um momento, afinal, em que as máquinas, os espelhos, os diferentes dispo-sitivos, de tanto se reflectirem – de tanto pensar ou ser obrigados a trabalhar as proprie-dades da sua matéria e processos -, se tornam autosuficientes e acabam por produzir, a partir de si mesmos, as suas ideias, emoções e imagens.

    Nos anos 20 do século parece que passado – quando o mundo, dizia-se, era “moderno” -, num contexto em que se vivia uma relação extrema com o poder de abertura e de revelação do sujeito e do “humano” pelo real, os objectos e a máquina (o pintor, “mura-lista” e ocasionalmente cineasta, Fernand Léger, anunciava em 1924 “ a vinda [l’avène-ment] do objecto” que constituía, para ele, “o problema plástico da actualidade”)[2], essa possibilidade (oportunidade?) era pensada (vivida) como o devir-outro, in(h)umano, do sujeito enquanto parte (engrenagem) da instalação material das coisas (real) – do seu Dasein não só físico (“natural”) mas também tecnológico, traduzisse-se isso num devir-cosmos ou máquina (o que, muitas vezes, era o mesmo).

Read More