Nota de leitura (7)

Retratos de Família

 

3.

 Às vezes, eu ia recolher com a boca
as gotas de chuva do beiral
e nelas sentia o gosto do mundo.
Nuvens, vento, céu pardo.
Eu chorava essas horas de prisioneiro na sala da varanda
entre flores que minha mãe adorava
e a miragem de um dia de sol, lá fora,
com a bola de futebol no largo da escola.

Fernando Namora

As Frias Madrugadas

Publicações Europa-América, 1971, p. 114.

 

Novamente, o poeta encontra no quotidiano motivos poéticos suficientes para dizer aquilo que muitas vezes fica por dizer. Fernando Namora (que foi mais romancista do que poeta) consegue, em poucos versos, recriar todo um imaginário: que poderia ser o de qualquer um. Quem é que nunca recolheu gotas de chuva? Só os pobres de espírito, de certeza.

Penso que este poema cumpre a questão da universalidade que já aqui mencionei. É tudo menos umbiguista. Não existe nele qualquer tipo de palavreado oco. É honesto e não procura, quanto a mim, fazer bonito. Não recorre à intertextualidade ou à sabedoria académica bacoca. Nele não é necessário citar Deleuze para dizer o que tem de ser dito. Tudo está. Nada falta.

Sete poemas

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO

 

“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo”

Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007.

a)

os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.

 

b)

a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer

pois

a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras

fechadas de pôr do sol
 

c)

e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr

flor
que anoitece

– e o eclipse do corpo meu
é violento


CANTO DE DISSOLUÇÃO

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.


SE QUESTO È UN UOMO

 

Como é possível
um homem?
Pra quê? Pra que
lhe deram nome?
Que faz o homem?
Se, mal existe,
já some?

Como é possível
haver um homem?
Melhor seria
tivessem gasto
a Criação
em rios, em pedra,
em bicho, em prado,

em homem não.

O homem nasce,
vê, come e morre
já sem perdão.


O ÚLTIMO POEMA OU RIO LETE

A cabeça no limbo do tempo.
Descansar já sem rosto e sem nome
e, deitado no córrego insone,
esquecer-se do bicho, do homem
e, com o tempo, esquecer-se do tempo.


é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
é que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?

é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe, de um pai, de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer desse país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?


as partículas todas
agrupadas ou prestes a
na dança comum do ir sendo
e a
multiplicação
pródiga de tudo o que foi,
é, será ou pode vir a ser
e o cair de tudo isso do colo abarrotado do tempo

fulminam alguém num apartamento de classe média alta no dividido Brasil de PECs 55


INÚTIL

 

Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
                    [igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
                            [e próprio
 

Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.


O Minotauro arranja um emprego

Léo Caillard (Hipsters in Stone, 2012-2016)

Léo Caillard (Hipsters in Stone, 2012-2016)

...and as he sank below the crust of the visible world, into his dazzling kingdom, he understood that he had travelled a long way from the early days, that he still had far to go, and that, from now on, his life would be difficult and without forgiveness. 

Steven Millhauser, “In the Kingdom of Harad IV”

 

O cerne da questão é que odeio estes homens, que se têm servido do meu tempo como se fosse deles, com as suas perguntas inúteis e impiedosas, que no fim servem apenas para que o seu poder sobre mim seja afirmado, e que me obrigam a dar ordens inúteis e impiedosas a outros, para que o nosso tempo seja controlado, a nossa energia destruída, a nossa criatividade drenada. E eu que até tinha conseguido escapar a isto, a esta vergonha, a esta miséria humana, sou eu também agora um instrumento disto. O tempo que de outro modo eu estaria a empregar em manter-me impecavelmente humano é de outro modo desperdiçado em tarefas que a cada dia me desumanizam e por isso me degradam.

            Nos primeiros dias ainda conseguia parar e chegar-me à janela, agora não consigo suportar o mundo lá fora, tenho inveja da liberdade daqueles que enchem as ruas, daqueles que podem escapar por um minuto. Vivo ultimamente para esse grande dever: escapar por um minuto, porque é só nas poucas horas do dia em que estas funções que me foram conferidas param de me oprimir que estou vivo. Tudo o resto são horas mortas. Nem sequer inveja posso ter do meu chefe, muito menos aspirar a ser como ele, que nas reuniões com clientes e outros chefes tem o hábito de cobrir os genitais, o que, porque ele é alto, o força a curvar os ombros e levantar demasiado os joelhos, como os defesas nos jogos de futebol quando a equipa adversária pode reclamar uma falta ou como um flamingo.

Tudo nestes trabalho é uma arte de cobrança, a cobrança que é necessário exercer a cada erro ou mediocridade que é cometida. Este é um emprego que existe porque as pessoas cometem erros ou fazem algo medíocre e o meu trabalho é vigiar isso, corrigir os erros dos outros, dependendo de quem comete o erro, apontando a sua estupidez com um paternalismo de pendor neocolonialista ou, se o erro é cometido do outro lado da linha de produção, corrigindo o erro sem o fazer notar, o que inevitavelmente gera mais erros. Na verdade, e em última análise, tudo isto é um gigantesco erro, que vem do nosso gosto de mentirmos a nós próprios, enterrados como toupeiras numa rotina que nos anestesia na ilusão de que a vida dura tanto que pode ser completamente desperdiçada em tarefas estúpidas, na completa falta de uma causa que pudesse ser digna do nosso amor. Há dias em que tenho vontade de me trancar na casa de banho e vomitar. Há dias em que tenho vontade de me trancar na casa de banho e embalar-me com choro até ao juízo final. O que é que pode ser a minha felicidade a partir daqui? Não sentir tanta tristeza, aprender na minha vida de indivíduo, na minha vida de alguém que não é um agente ao serviço desta máquina suja, a não oprimir os outros, a deixá-los em paz para que eles me deixem em paz. A ternura a que aspiro agora é essa: deixar os outros em paz para que eles me deixem em paz. É difícil combater a monstruosidade das horas, não morrer de tédio. Reparei há alguns dias que se me posicionar num certo ângulo consigo sentir o coração a bater-me no ouvido, o que me torna num grande tambor vivo, uma máquina só feita de ritmo, mas o ritmo do meu corpo é tempo e é as exigências de merda destes homens brancos, vestidos de fato e gravata, sem sonhos, sem paixão, sem amor por nada que não seja o seu lucro, que, conjugado com a nossa pobreza, lhes permite consumir todo o calor do nosso corpo, até que, pela nossa vez, nós nos tornemos cada vez mais preparados para ser extintos.

Quando atravessei as portas deste gigantesco edifício cinzento pela primeira vez (na verdade é azul, mas só o consigo entender como cinzento), a primeira coisa que eles fizeram foi dar-me um cartão que lhes permite controlar a que horas entro e a que horas abandono o edifício. E foi aí que eu entendi: deixou de ser possível eu desaparecer para qualquer parte a qualquer hora do dia, e deixou de ser possível certas horas da minha vida serem só minhas, numa perspectiva utilitária: usadas por mim no ofício de estar vivo. E este contexto, não haja dúvidas sobre isso, é pensado para uma coisa, e para uma coisa apenas, para nos tornar todos iguais, para nos fazer a todos reagir de certa maneira. Normas e códigos são-nos repetidos diariamente, e protocolos de resposta devem ser decorados para cada situação. Existem guiões, formulários, processos, requerimentos que desencadeiam reacções que devem ser seguidas sempre de acordo com o mesmo padrão. Para que nada atrapalhe o ofício sagrado da grande máquina, ao qual é nosso dever sacrificarmo-nos.

A incapacidade de um asmático de respirar parece-se com as minhas horas de trabalho. A pouca humanidade de que disponho é uma coisa que demora uma incrível quantidade de horas a ser reunida e que se conserva com a precariedade de dentes-de-leão num dia muito vento. Ao fim do dia saio do comboio e corro para a livraria mais próxima e enrosco-me num dos bancos do primeiro andar com este caderno e esta caneta na mão porque preciso de sentir que algo da minha vida, da história do que em mim tem estado vivo, é resgatado por este gesto. Porque é muito pesado o extremo da necessidade que carrego e o meu trabalho é escrever isto, tentar conservar as breves iluminações de humanidade (no caminho para aqui, o rapaz na tasca de burritos, sentado ao balcão num banco alto, com os headphones azuis na cabeça como uma fita, a comer com fome o seu jantar que hoje acontece mais cedo, para onde irá ele a seguir? porquê tão cedo ou tão tarde?, ou os dois velhos bêbados à porta do bar, um deles a segurar o outro enquanto ele chorava) que fugazmente se acendem mesmo diante dos meus olhos. E eu devo dizer que agora preciso, mais do que nunca, que elas se acendam completamente diante dos meus olhos como as imagens no ecrã de cinema para o espectador que se senta na última fila, mesmo em frente ao ecrã. E não, nada disto é sobre luto, é antes sobre preservar quem sou, para que a estupidez em que diariamente tenho desperdiçado a minha vida não me destrua completamente, para que alguma das coisas que têm sido para mim sagradas não apodreçam completamente, não me tornem podre com o seu apodrecimento.

E houve mesmo uma altura em que acreditei que nada podia destruir o meu amor. Percebo agora que me deixei levar. Que o meu amor é constantemente ameaçado e que aquilo que o pode matar não é um golpe subitamente mas a banalidade de cada dia. Os dias despidos de qualquer possibilidade de beleza, conhecimento, encontro, ou descoberta. (Não encontro ninguém há meses, continuo a procurar e não há ninguém.) O frio e o medo são estas coisas e o trabalho da minha morte é o ofício porque eles vieram. Estes dias todos iguais que geram noites iguais umas às outras, que me fitam com as suas caras sem olhos através destas longas filas de secretárias e computadores que mesmo no verão só existem e só prosperam na escuridão de todos os invernos, de toda a falta de ternura, liberdade, ou calor. E podia ser que eu aceitasse que alguém me viesse dizer que nada disto é assim, que isto é apenas uma situação. Mas é isto ser apenas uma situação que permite que esta frase seja aceite, que esta maneira de viver sem sangue, sem amor, sem desejo, nesta perseguição tonta e vazia dos deuses do lucro e da velocidade (o mais importante de tudo é ser muito rápido, para produzir cada vez mais para gerar cada vez mais lucro, do qual, nós que o geramos, beneficiamos numa percentagem ao nível da esmola), seja confundida com a normalidade, com o que uma vida humana deve ser. Não há consolo nenhum para isto e não há nenhum outro perdão que não deixar esta guerra e este ódio crescer dentro de mim, até se tornar no meu jardim, alimentar-me deste total desprezo pela maneira como estou vivo aqui e agora, um desprezo que me inclui, uma vez que eu não tive outra escolha que não aceitar isto, trazer este contexto para cada dia da minha vida, que a partir daqui será cada vez mais difícil e cada vez mais imperdoável.

Oxford, 7 de Novembro de 2015

Escalas de protagonismo no ronche fort

I

 da última vez, todos nós nos excluímos.  
tudo  
o que poderíamos ter sido é:  
uma onda  
como a água te divide em dois
e as luminâncias
(no meio de uma tempestade) 
e conseguem dizer mas não se sustentam:  
arrastam com sonhos palavras de ordem  
(marcação que eu possa já ter cruzado): 
vocês tentarão descrever sem êxito à que me pareço antes de dizer as cidades com melhor custo benefício de perder os declames
- os oh’s e ah’s os cliques e flashes –  
ficcionalizamos os públicos passando em paredes de aço e em esferas
mas mesmo assim não foram dessa vez alegando perda de algo a falar em genéricos antes da viagem  

II

não volto lá sozinho
não vejo como escovar os dentes todos os dias em outro continente na mesma proporção que se frequenta a bebida local
talvez muitos lugares não me lembre   

III

reclames a formar bolas e esferas com a língua.  
uma praia emporcalhada de turistas - 
à disfarce nativo e belo.  
os dentes  
essa barreira à brecar tudo  
trouxas dedos a física da língua
este braço fazendo movimento de cisne a toda uma unidade de extensão dos pés direitos das calhas*:  
o que seríamos sem o estorvo? 
(quando coloca as palavras em seleção
prefere um desenho de indicadores
acham que tem uma distinção  
um fungo na “rivera” 
constante deslocamento que não deixa prestar atenção no que não seja enquadramentos)  

IV

ela  
já esteve procurando também um apartamento  
um emprego  
uma tautologia
(mais guinada à quiromancia
a descobrir as linhas das digitais no registro geral  
-também é ele
uma quiromancia impondo coisas) 
o beco não é essa coisa que se mira e se chega com as mãos  
algumas ferramentas de luz não encarnamos.  

-  

*as senhoras podem ver de engate à emplastro
sondas marinhas juntando grama
noturno chã ou furão de ferro
ceifas britadeiras quedas de temperatura
tudo da mesma maneira untando as mãos  
nós íamos  
e agora não vamos mais  
levando em consideração os joelhos e as colunas fechando círculos
bolsões de sonos  
a corda que fica suspensa partindo uma série de considerações sempre aos despejos:  
chuvas fazendo anatomia de mapas
quedas no armazém retendo
algumas formas de vida
algumas formas de empacotamento
mãos cerrando calhas  
mãos fazendo teto
mãos à procura das luzes em busca do contentamento
as senhoras poderão se alojar no lugar menos possível
algumas ferramentas de luz não encarnamos

Manchester

Edvard Munch

Edvard Munch

Subitamente irrompeu uma brecha na luz de Manchester, de onde irradiaram as trevas, aquelas que conhecemos e desconhecemos (pensar o abominável é já, diz-se, desculpá-lo um pouco) e às quais dedicamos cada vez menos caracteres indignados. Se nos habituarmos, vencem-nos. E nós habituamo-nos. A odiosa revelação de um niilismo, preenchido por círculos de escorpiões, que sente comprazimento na razia de vidas quase ainda por viver, vidas de futuro, cheias de entusiasmo e esperança, vem agora ter connosco como um mal esperado. Estamos no limiar de um abanão profundo, convocaremos, porém, ainda velhos rituais de compensação (homenagens, textos fúnebres, vagas policiais, vinganças jurídicas). Mas fazemo-lo sabendo que em breve algo virá novamente comer vidas e alegria, o terrorismo desbragado (acredito num terror que se quer conjurar a si mesmo) é um glutão insaciável, e nós, que vemos Manchester nos mass media, espectadores panópticos, aguardamos tristes pela próxima garfada. As vítimas de sangue (ainda tão juvenil, raios!) deixaram-nos e afogaram de dor quem as amava, como sabemos há muito mais do que 22 cadáveres. Queira alguma coisa bondosa que o magnífico enxame de estrelas, que nos visita tanto melhor quanto a noite for escura, reponha uma certa justiça.