o sentido da vida

longas pontes altas como um aqueduto romano
não levam a lugar algum
mas uma locomotiva saltando de dentro
de um relógio
                 ou as franjas cristalinas mar-movendo
                 finalmente entre os dedos dos pés sim
 
não se passa um laço nos dias
florista num buquê de flores
que não pergunta se para um enterro ou uma garota
e aperta o papel colorido e o plástico
como a gravata a garganta
 
                        e quando sentirem nesse momento ideal
angústia a solidão de corpo de barro cozido
prestes a se partir e ir de volta ao molde
segurem os chapéus senhoras e senhores

o dia em que perdi a cabeça

eu estava em casa um dia meio doente, cansado, muito trabalho, aquela correria e tudo mais. e era quase hora do almoço. friozão lá fora, resolvi: era dia de feijão com pimenta.

pus a panela de pressão com agua no fogo, adicionei temperos, sal e os grãos. e voltei pra sala pra continuar respondendo emails.

achei estranho a panela começar a “assobiar” rápido. mas tudo bem, eu estava concentrado. o tempo deve ter dado aqueles saltos de quando a gente se perde em pensamentos.

marquei mais ou menos os 10-15 minutos de assobio e voltei pra cozinha. daí a descorta. o respiro da panela não estava bem encaixado; não tinha mantido bem a pressão.

isso aborrece. e agora? ligo de novo pra cozinhar mais? abro pra ver? tive preguiça. ajeitei o respiro na posição certa e: fogo!

estava ali por uns segundos contemplando o vapor, a panela, a vida, o nada, quando a panela explodiu. BUM! e eu acho, sem certeza, que vi tudo acontecer em camera lenta. por um milésimo de segundo contemplei a beleza plástica daquela erupção de metal e comida.

não por muito tempo. a droga da tampa, uma parte dela, voou em direção a mim e se chocou como um tiro de canhão contra a minha testa. e é claro, foi aquela lambança de massa cinzenta e sangue por todo lado.

fiquei ali parado ainda contemplando a cena, com a mão na cabeça, o tampo aberto, o sangue escorrendo. pensei um instante no aborrecimento. sabe como é na europa. vem aquele monte de bombeiro e polícia, paramédico. ia dar aquela trabalheira.

como estava meio desmiolado, achei sinceramente que deveria pelo menos dar uma leve geral na bagunça, a começar pelo meu cérebro, que estava escorrido pelas paredes e chão junto com a comida.

não queria deixar as células se desoxigenarem. a imagem que me veio foi das células como peixinhos fora da água. eu tinha que juntar o quanto desse e por de volta no lugar.

a cabeça estava doendo pacas. parecia que ia explodir. quer dizer, você entendeu.

peguei uma travessa de porcelana que, olhando rapidamente, pareceu limpa. e foi, com cuidado pra não pisar em nada importante, procurando pelo menos os pedaços maiores.

eu já tinha vivido uma situação parecida na infância quando quebrei o copo favorito do meu pai, um copo do corinthians, da celebração oficial de sei lá o que. (nunca liguei pra futebol.) o copo caíra no chão, quebrou como a minha cabeça, e no chão ficaram pedaços de todos os tamanhos.

lembro como hoje dessa experiência absolutamente fatídica na minha vida.

copo quebrado, a merda estava feita, agora restava ver como resolver aquilo. e por anos volta e meia me pego desejando que a vida tivesse botão de rewind. sei lá, umas quatro chances, pra não complicar muito a vida do sujeito. cagou feito, rewind, e bola pra frente.

mas como no caso do copo do meu pai, a principio eu tive esperança. muita esperança. primeiro porque a maior parte do crânio tinha ficado no lugar e segundo porque encontrei o tampo principal, o pedaço de osso que cobria quase inteirinho o buraco.

mas daí é aquela coisa: fui juntando os pedaços de tripa com feijão, separando o que era meu na tijela, tentando pegar mesmo o menorzinho. e de perto olhando pro chão, ia encontrando fiapos que eu não sabia, pelo tamanho, identificar se era meu ou do feijão.

na verdade, apesar de estar naquele momento claramente vivendo um momento de negação, eu sabia lá dentro que aquilo tudo era uma besteira. - claro, eu pensava, que aquilo já era lixo. não tinha nada a costurar nem a emendar. fora a contaminação. mas você sabe como é a teimosia em situação de desespero. demora pra ficha cair.

nessa altura, eu já ouvia vozes do lado de fora da casa. gente que tinha escutado a explosão e estava querendo saber o que tinha sido. acho que vi alguém de raspão quando olhei de relance pela janelinha basculante na cozinha. mas o sangue nos olhos e a sensação de que era tudo verdade e que rewind não aconteceria só aumentaram o meu pânico.

a minha travessa estava um terço preenchida mas eu também já estava passando do estado de negação pra revolta. a massa cinzenta restante me dizia que aquilo era aquilo, mas ainda assim eu lutei.

os bombeiros tocaram na porta justo na hora que eu estava passando agua pra ver se tirava o resto do feijão pra dar o resultado da coleta pro medico, pra ele ver, ser testemunha de que eu tinha feito merda, mas que tentei me redimir.

o bombeiro já estava olhando pelo basculante quando gesticulei pra ele que estava indo abrir a porta. mas na verdade eu ainda não tinha decidido se seria melhor colocar os restos da cabeça na geladeira ou de volta pelo buraco do crânio.

não ria de mim, seja razoável. além de estar com menos de 100% da capacidade mental - por razões que dispensam explicação - eu estava em choque e com adrenalina correndo nas veias. além do que, mesmo repensando no assunto, vejo que houve uma lucidez ou uma tentativa de, talvez. porque pela minha quase total falta de conhecimento na área médica, achava que a solução obvia, a geladeira, poderia não ser tão bom quanto proteger e transportar as partes no habitat natural delas, digamos assim. compreende?

mas antes de eu me decidir, bombeiros arrombaram a porta, o que, pra ser sincero, quase me fez derrubar a travessa no chao. já pensou? que merda. ter que catar aquilo, pedaços de porcelana cortante, os pés dos bombeiros agitados.

logo que me viram, tive a impressão que eles fizeram um grande esforço pra manter a calma. eu tinha consciência, apesar de ainda não ter me olhado no espelho, que a cena não era pra quem tinha estômago sensível.

as coisas daí correram rápido. (engraçado, isso, a vida não ter rewind mas ter fastforward.) foi isso que eu senti. quando me dei conta, a travessa foi tirada da minha mão e um enfermeiro bem forte me abraçou pelo lado do corpo para eu sair do apartamento.

por um instante quis gritar que eles tomassem cuidado de fechar a porta. é que temos duas gatas. elas são de casa, não podem sair porque se perdem. mas se eu estendi a mão pra falar alguma coisa, acho que logo mudaram de assunto.

aqueles quatro ou mais paramédicos, bombeiros, policiais, vizinhos mais adiante. o mundo estava rodando e em fastforward e as minhas lembranças daquela situação são meio caleidoscópicas, com cores e formas se misturando e se recompondo. bonito até.

a situação do bendito copo do corinthians voltou à minha mente - veja, então, como era funda a memória. naquela situação, sozinho em casa, tentei heroicamente juntar os fragmentos do objeto. havia um maiorzão, vários médios, e um monte de tamanhos variados, entre caquinho de vidro e pó. não haveria como. colar aquilo seria acionar um processo irreversível que se concluiria com uma fantástica surra de cinturão.

a minha “ideia genial”, então, foi usar os poderes da invisibilidade que estavam ao meu alcance e se traduziam em: dar sumiço daquilo e me fazer de desentendido. afinal, um troço que ficava guardado numa mala velha no guarda roupas. era um plano. mas, sabe-se lá como, ele descobriu; deve ter feito engenharia reversa com o meu raciocínio. pensando agora, deve ter sido.

o fato é que levei não uma surra, mas duas. pelo menos foi o que ele disse. porque pior do que quebrar era ter escondido. e por isso até mais do que pelo copo, o meu corpo precisava sofrer. (mas, se me permitem a rápida digressão, a dor maior daquela história não foi a surra, mas saber ter decepcionado ele. essa dor-vergonha ainda ronda sempre que alguma coisa a chama de volta ao palco das lembranças.)

e foi assim que o episódio terminou. me puseram sentado na ambulância (porque eu estava consciente e pra eu não perder mais sangue), e fui espetado com uma droga que da sensação física de abrir espaço agressivamente nas minhas veias, se tornou rapidamente uma gostosa paz etérea.

ouvi o barulho da rua e os ruídos do motor da ambulancia se tornarem um burburinho cada vez mais suave e eu me peguei sorrindo para o que pareciam ser fadas quase invisíveis flutuando suavemente ao meu redor.

tudo durou algum tempo impreciso, talvez não mais do que a distancia entre a minha casa e o fim da rua. flutuando como sementinhas voadoras de dente de leão, essas criaturas (?) foram gradualmente caindo como flocos de neve. e ao tocar o meu corpo, elas não rolavam pro chão, mas ficavam ali, presas à minha calça jeans.

adormeci olhando nos olhos do meu pai. não o de hoje, homem velho e amargo, mas aquele da minha infância, meu herói. eu quis pedir desculpas por ter aprontado de novo. mas a minha boca e lábios estavam dormentes. ficamos assim nos olhando e senti ainda mais paz, e que nada ia ficar bem ou mal porque não havia nada para melhorar ou piorar. tudo estava bem, tinha sempre sido bom e isso era tudo.


Não tenho nada pra te enviar

Não tenho nada pra te enviar.

Já é tarde e ainda não preparei
nem a roupa nem o sapato.
Já perdi o prazo de inscrição.
Estava no modo silencioso.
Deixei a planta morrer e fui à praia
pegar areia. Não aguei os pés.
Estava de luto e queria
ir à missa, ouvir a homilia dominical.
Rezar na romaria, sentir o cheiro
das velhas e misturá-los aos das velas.


Agora não dá mais. Sou protestante.
Da vertente neopentecostal brasileira.
Ou quase isso.
Agora não dá mais. Já é tarde e escuto Nina Simone.
Irei a Nairóbi, não serei turista. Serei algo de útil.
Irei até a esquina e direi bom dia ao seu Geraldo.
Darei a ele uma marmita com duas carnes,
arroz, feijão e duas guarnições.
O sorriso do seu Geraldo é mais forte que Xanax.

Não tenho como te responder agora. Desculpa. Não tenho
o dinheiro do estorno. Confesso: gastei comprando quibes
e pretzeis. Mas se quiser te faço um bolo de cenoura.
Enfim.

 

2.

Nesse momento, uso a aliança
na mão esquerda. No dedo anelar.
Gosto da imagem.

Agorinha mesmo, precisei respirar
 e às vezes não sei como isso é feito.
A mão esquerda me ajuda nessas horas.
Ela é mais lírica por observação.
Meu tato, decerto, é uma lixa,
e com o uso se desgasta.

O ar não tem tanto peso,
mas o espaço que ele ocupa
é dolorido de se atravessar.

 

3.

De qualquer forma,
o meu sartório tem apresentado falhas.
Mas a garantia não cobre mal uso.
          - me enfiei numa esfera helicoidal.
          Era de noite e não percebi. O vinho
          tem parte nisso, mas são detalhes. –

Certos aspectos do amor são mais cândidos
quando não são alardeados. Outros são fome.

Rex

I.

ás vezes depois de já estar sentado
na poltrona do ônibus observando a noite
incidir sobre os estacionamentos
de supermercados e cruzamentos
e prédios sem carcaça
penso em como seria se eu fosse
esse tal vigilante noturno
trancado num colégio que ainda se ergue
encravado em um município de olhos de palha.

talvez nada mudasse subitamente.
talvez continuássemos a ir à praia
sendo regados pelo sol nos domingos aquarelados
e depois iriamos de mobilete até um fast food
ainda molhados a toda velocidade
o vento nos beijando loucamente
cabelos salinos ainda grudados em sargaços
e chegando lá comeríamos um sanduiche cada um
com hambúrguer cheddar cebola e bacon
acompanhados de batatas fritas e suco de laranja
talvez depois você passasse mal do estômago
talvez fosse remar contra a cultura e os humores murchos
talvez quisesse conversar sobre o paradeiro de kilgore trout
mas eu já deveria estar longe
navegando contra a correnteza de automóveis
indo vigiar o grilos e morcegos
dentro da embarcação em construção.

II.

eu iria ter um cachorro comigo.
daria o nome para ele de rex:
o mesmo nome do meu primeiro cão
que morreu engasgado com um osso
cujo corpo nunca cheguei a ver inerte numa caixa de sapatos.
ele andaria comigo pelo pátio do colégio fantasma
seria pardo ou talvez negro feita a sombra de uma pedra
eu beberia café sem açúcar e ele água da torneira
afagaria suas orelhas enquanto admirava seu sono dimensional
arremessaria gravetos para ele ir atrás
ele correria com a boca aberta
a língua estirada para fora como um tapete vermelho
e pegaria o graveto
mas não me devolveria
porque nunca fui bom em adestrar coisas que saltam
então ele guardaria o graveto para si
talvez o roesse talvez o mijasse
talvez o enterrasse junto as crisântemos
que ainda não estariam ali
para o entregar a alguém que fosse o amor para ele.

penso isso durante todo o trajeto
desde o teu último abraço
até meu primeiro passo de volta ao meu bairro
eu usaria um uniforme igual ao do meu pai.
você iria as vezes me afagar no portão.
rex seria nosso terceiro filho.
as noites se moveriam comprimidas e sem recuo
talvez eu precisasse tomar remédios
comer feito gado respirar repleto de musgo
ser um poeta morno odiar meus cabelos
respirar repleto feito poeta odiar meu gado
comer meus cabelos ser um musgo morno
odiar meu poeta ser gado respirar
meus cabelos mornos comer repleto de musgo
ser meus cabelos comer feito poeta
odiar repleto de musgo respirar meu gado morno
talvez eu não precisasse tomar remédios
e quando o colégio estivesse de pé
funcionando sem a ajuda de aparelhos
as crianças estudando de branco e azul marinho
professores fumando cigarros amargos nos intervalos
zeladores merendeiras e baratas como glóbulos brancos
adolescentes fumando cigarros salgados nos intervalos
as luzes acesas os olhos em stand by
e eu finalmente carregando mais tempo livre
pra você
pro rex
pros poemas pros desenhos
e pra admirar minhas calças
desbotando gradualmente
junto a ferrugem da praia.

 

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Srinivāsa Aiyangār Rāmānujan

Srinivāsa Aiyangār Rāmānujan
         que significa
Temos O Osso de Ishango Dentro dos Segredos das Visitas  

 

temos visitas
sobreviventes da exaltação do evento visita
confesso um vulcão para cada passo na direção de uma nova linguagem
vitrola panela colher folha de bananeira nome de gente  
meia furada
ande com a água nessas canecas com brasas nessas brasas com chá 
          a secret was the only horse on the carpet  
          que significa
          em cada brasa uma permissão secreta
  crochê manchado de toalha livro numa página sorteio
  matemática numa escrita quero o verbo 322  
  temos visitas
  sobreviventes da exaltação do evento visita agora
manchada do verbo no espirro gerador para a sequela fibonacci da visita
    a secret was the only fire on the carpet
plimpton plimpton  
    santinho deus te crie  
    temos o osso de ishango dentro dos segredos
    não temos vergonha temos visitas gripadas temos a sopa da galinha mais exata