evidências

                                                        

uma mulher furta uma lata de ervilhas no mercado. o segurança vê e chama o gerente. a mulher anda pelas bancas das frutas e agora furta um abacate. o gerente e o segurança a seguem. a mulher percebe, eles percebem que a mulher percebe e passam a tentar perceber pelas frestas, entre produtos, sanha e algum tipo de medo. ela simula interesse em furtar uma imensa quantidade de laranjas. aponta uma laranja e segura o seio, como se o plano fosse esse, esconder aquela laranja naquele bojo magro. aponta outra laranja, segura a fruta, cheira e devolve ao bando, aperta a região da vulva. aponta outra laranja. agora é a bunda a medida do plano. outras duas e os joelhos. mais outras duas e os ombros, as ombreiras que sairiam da blusa para viver no curral de laranjas, enquanto laranjas sairiam do mercado aos moldes de ombreiras. o segurança fica aflito pois o gerente não sabe gerenciar o quadro. outra laranja é apanhada e cheirada pela mulher. do cume do pequeno sol, ela encara o gerente que se mija todo, não sabe gerenciar. o segurança fica sozinho na esquina do corredor das cervejas com o corredor das frutas e legumes. um senhorzinho escorrega, cai no mijo do gerente e logo uma porção de funcionários aparece para socorrer a saúde da dignidade do mercado. a emergência chega e o senhor é imobilizado numa maca que rapidamente reaparece na ambulância a caminho do hospital de fraturas. some a mulher da lata de ervilhas e do abacate. igualmente somem a atmosfera de caos, o fascinante jogo jogado por ela, a salivação, a secura nos olhos, a coceira nas partes. o segurança avalia as laranjas. ousa um pouco mais, apanha uma e cheira. o gerente trocou de calças e aparece por trás do segurança, pousa a mão direita sobre o ombro do funcionário, sussurra: “graças a deus, o sistema de monitoramento estava desligado”, “ufa”, “ufa”, “ufa”.

nos autofalantes do mercado uma voz andrógina se sobrepõe à dupla sertaneja e anuncia a promoção relâmpago de uma marca de ração para gatos castrados.

(projeto secreto melão) 


começamos por aqui: (gesto facial de rato) me sinto na obrigação de avisar que isso não será fácil e nem bonito. (abrindo a maleta) peço que notem meus gestos, sempre o extremo dos dedos e não a boca (aponta a boca). agora sim (mão na orelha) (espera o jingle) (e vem o jingle), a exposição do sudário de um tolo, ao contrário do sudário de um mártir, é azucrinante e bastante jocoso. ao final, todos serão convidados a rir. esperem o final. (toma água) o ser humano ainda se mostra incapaz de rir, falar e ouvir ao mesmo tempo, pelo menos de modo a ser compreendido e compreender. aí uma chave (ato de chave) (o gesto de chave é bem diferente do ato de chave): o tolo não quer, não depende de compreensão. seu feitos, seus trejeitos, seus desmazelos, seus dentes nas traves da vida não são para entendedores. podemos repetir para o valor se manter: nem o tolo e nem seu sudário precisam ou desejam compreensão (gesto de chave). como tola, posso confirmar isso e aí temos mais peso no valor. não que minha tolice faça alguma diferença, mas faz, simplesmente faz (ombros) (ombros, ombros). uma maçã mordida junto de outras maçãs mordidas, quero dizer, nós, os tolos, compreendemos e somos contra a validação do dito (caricatura de gente culta) “uma maçã podre em saco de maçãs boas”. não está direito e o julgamento foi feito (ato de martelo). convém lembrar que nenhuma fruta é inteiramente boa, humildemente sacana ou uma vadia sem princípios. dessa forma o correto é que uma maçã podre ou mordida, oxidada, valei-me! (muhammad ali) (?), uma maçã oxidada não oxida frutas frescas, valei-me! (?) (muhammad ali), frescas! (muhammad ali) (!), contudo, vive bem num saco ou cesta com outras maçãs mordidas, oxidadas. o que quero dizer é que não somos contaminantes da tolice. somos a própria tolice (espera pelo jingle) (silêncio) (o tolo no backstage não solta o jingle) (é um tolo), quando em bando ou em solo de saxofone de bambú, que belo exemplo, muito obrigada, mereço reverências (reverências ao lugar vazio) (vai ao lugar vazio receber as reverências), por puro exemplo (ombros, ombros). um experimento recente nos mostra que um bando de tolos, cada tolo num ponto extremo de uma multidão, não que o tolo seja extremista, cada um de seu ponto e com um pouco de força espremendo as próprias mãos e olhos (mímica), é capaz de ficar feliz com qualquer resultado. com a risada de um senhor ou com a empáfia de uma mocinha gótica (mímica), com o apagar das luzes ou com o tilintar e então o craquelar e então e por fim corridão sem a vírgula do fôlego, com o rompimento de um hidrante (mímica). no caso do hidrante é possível que algumas crianças e advogados tenham seus momentos de tolice, coisa de dez ou quinze minutos, não mais. logo, para fins etnográficos, podemos dizer que a tolice não é contagiosa em seu estado crônico, talvez um tostão em seu estado cômico breve, ou seja, ninguém está livre de ter uma porção de seu dia tomada pela tolice. nem o tolo está livre de se tornar ainda mais tolo, como é o caso do engenheiro chefe dos caralhos voadores do senhor sonso ou do último membro de uma fila de operários embaladores de bergamotas descascadas que, aliás, passam todos os meses por testes terríveis, (afina a voz) coisa de luzes e de fumaça almiscarada. (engrossa a voz) e tudo para quê? (afina a voz) para que a tranquilidade dos não tolos esteja cada dia mais firme e radiante. (voz normalizada) (nem fina e nem grossa) em verdade, nós, os tolos, gostaríamos muito de parabenizar os não tolos e desejamos oferecer à categoria (roda o braço onze vezes e meia) esses pequenos elegantes troféus muito aliciantes, talhados em grande fruta suculenta, aí está (muitos tolos no palco) (tolos para todos os lados), ergam as cortinas, aí estão as corujas muito nada tolas de melão! nossas congratulações, lágrimas e moscas (mímica)! fim. (gesto largo e propositalmente bruto, brusco, repentino, entrecortado com os braços) (zas, zas) podem rir. (fechando a maleta) podem também, por favor, não que exista uma dívida de favores entre tolos e não tolos, mas existe, é fato (gesto e ato de imitar dinheiro), podem apanhar seus exemplares e limpar o chão. tolos, sim! não a ponto de passar pano para não tolos (mãos nas orelhas) (os tolos esperam o jingle final) (entre os tolos, o tolo operador da mesa de som). 



mau contato

mas esse homem gostava mesmo era da rinha. chegar no bar, tomar uma com mel, passar pelas mesas, cumprimentar as damas, atravessar a cortina de chita, a outra cortina de plástico, abrir caminho entre os outros alucinados. gostava assim, de chegar beirando o início. era como um ritual que se fosse quebrado, o azar também passaria pelas cortinas e seria instalado na escolha. blackout e os galos são cantados. no começo ele não percebeu, não se deixou perceber, apenas arrumava a franja e cuspia no chão. prezava pelo penteado a gel, pela sua gola levantada, pela sua fama de cão sortudo. lopez não tirava os olhos dele, nem quando disfarçava, olhava fundo o bico da bota ornada com o couro de cascavel, o chaveiro com um abridor de garrafas, uma pequeníssima e sorridente mulher havaiana e o chocalho da cobra que ele mesmo matou, todos sabiam a história, uma noite inteira de peregrinação no escuro, achar a borracharia e ainda voltar ao local com o carro orvalhado e manco, coisa de uma ou duas cobras no caminho, a depender do dia em que a história era repetida por mamú. jamais errou o galo e comemorava com os braços para o alto, sacudindo com o quadril o chocalho da cobra. às vezes gritava coisas como “ou ié” ou “nem deus chega perto” ou “foi assim que minha ex morreu”. lopez reprimia a louca vontade de se sentar ao seu lado na mesa, após as vitórias. o galo morto estará na cozinha, quase no ponto. o cheiro não mente, hoje o cozinheiro usou dendê. lopez ficava no balcão. raramente seus olhares se cruzavam e, quando acontecia, um dos dois ia ao banheiro, o outro ia ao caixa repôr o fumo, a pinga com mel de jataí, verificar se mamú, o dono da bodega, havia separado as balas de menta das balas de canela, os fósforos de cabeça vermelha dos fósforos de cabeça marrom, se certificar de que os corações de doce de abóbora estavam intactos e na validade para a meia dúzia de crianças que passava ali aos domingos. duas únicas vezes e por isso podemos chamar de dois milagres, duas vezes milagrosas em que tremeram os paralelepípedos daquela cidadezinha no velho goiás. o primeiro: ninguém foi ao banheiro e os dois se coincidiram na pinga com mel, nos corações de abóbora. um toque de joelhos e lopez olhava com a boca o chocalho e a havaiana, ele olhava com a pélvis as mãos de lopez. o momento que durou dias tirando a saúde de uma única fração de segundo. brindaram sem se olhar, “foi assim que minha ex morreu”, “saúde! saúde!”, cada um para o seu posto de vigiar o que não pode ser visto em direto, cada um em sua vigilante tensão. o outro milagre: a luta acabou e ele ficou lá atrás, debaixo da luminária com mau contato, olhando o cadáver do galo perdedor, sentindo o cheiro da cebola na panela que espera galo, com as duas mãos na cintura, talvez em lamento, talvez em reza profunda e silenciosa, talvez pensando naquela fresta de tempo no balcão, no voo das jataís, na gentileza de alguns insetos. lopez saiu da penumbra e se posicionou ao lado direito dele. lado a lado, duas golas levantadas, dois homens bonitos e pouco mansos, cada um à sua maneira, moderadamente brutalizados pelas quinas da vida, mas bonitos, destilados pela idade, pelo mel, pelo doce vendido como coração. rústicos por conveniência, por enfeite de alma que pode andar tranquila em terreno de olhos sombreados por chapéus imensos e coldres dos mais diversos couros. dessa vez foram os cotovelos, “o pobre não teve chance, lopez”, lopez apostou no pobre apesar de saber que o galo que ele escolhesse, seria o galo campeão. “nem chance e nem charme, lopez”, eles se olham sob a luminária, lopez fica azul, quase não respira e toma um tapa no peito, “cê é besta, homem? galo de briga precisa de charme? tava brincando contigo”. lopez forja uma risada, engole a risada forjada, passa o antebraço na boca, cospe no chão e entrega, “não gostei da brincadeira”. o clima é tão pesado que as penas do galo morto são tingidas de chumbo. o mau contato faz a luz oscilar cada vez mais e cada vez mais há mais espaço para o breu, cada vez mais. blackout. os homens se olham através do escuro, sempre se olharam. entre uma luta e outra, quando a luminária era apagada e mamú cantava os dotes dos combatentes, adaptados à escuridão, ele e lopez se olhavam, se olham pela escuridão, desde sempre se olham através do breu para que não fique claro que se olham. um brilho de lágrima, depois um anel de caveira, a pequena havaiana dança ao som do chocalho da cascavel. lopez enfia a mão no jeans dele e ele enfia os dentes no ombro de lopez. dois homens, duas jataís, duas bocas e mamú tateando o escuro à espera de alguma luz para apanhar o cadáver que estará depenado, desossado, amaciado por honradas botas de caubói. 

cidade

uma história que começasse por encher o coração, como a limonada que faço e que enche o seu copo. uma história ácida, açucarada, de um perdido turvo de leve alaranjado, uma história que deixa sementes na peneira dos sentidos. mas é que não sei ser assim, ser a que conta ou inventa histórias prazerosas, povoa o clima, os cômodos de uma vida pretendida. sei suas mãos, seus dedos sobre a mesa e isso bastaria a uma boa contadora de histórias. disso tira-se toda a sorte de belezas e ternuras. não comigo. sou faminta e tiro dali apenas as mensagens que me falam, que a mim comunicam. suas mãos sobre uma mesa comum. penso nos seus pés, invento a diversão debaixo do tampo. olho seus dedos, porque não consigo ver sua boca, seu rosto, suas gordas sobrancelhas. o copo dentro duma mão, a outra que espanta uma mosca da nuca. você está aqui, como os limões que uso, está. espremido, tencionado, suando, suas ideias na pia, suas cascas no lixo, suas raízes longe de mim. por tanto tempo espremi limões para o seu refresco de fim de dia. por tantas horas você segurou o copo, bebeu a coisa, mastigou o gelo, cuspiu uma ou outra semente que escapou à rede de segurança. tantas décadas e meu ponto de observação marcado na geladeira, como se minha sombra ficasse ali, guardando o meu lugar de te ver. de onde toda essa tristeza, todo esse mal estar que foi derrubando seu rosto e, com ele, minha visão, meus olhos, minha argúcia? a cozinha que já foi lugar de festa, de abraços repentinos, de guerras com panos de prato e bagas de uva, de gatos e cachorros no assalto às migalhas. a vizinhança que se foi, a que chegou e não demonstra vida, a não ser numa palmada e no choro da criança arteira, na retirada do lixo, nas brigas mornas e quase inaudíveis. a cidade mudou, nosso bairro se foi, os animais morreram. sobramos nós e alguma moldura de família, de casa, de plano e de plano de felicidade. nossos filhos estão por aí, em alguma estação de trem entre o que deixamos de ser e o que seríamos. nos mecanismos do cotidiano, continuamos caminhantes. uns deselegantes vestidos de seda que ainda me seguram em pé, vestidos engomados na mesma substância misteriosa que mantém seu corpo indo e vindo do trabalho na prefeitura da cidade que um dia foi nossa iluminada esperança. não há mais tempo para as luzes, para os cafezinhos com conhaque nas lanchonetes, para a pipoca gordurosa da única sala de cinema. o quartzo acabou. a cidade dos cristais místicos acabou. foi tirada da terra a eternidade substancial da região. no entanto, ficamos. talvez seja mesmo isso e essa é a contenção de higiene abrindo e cicatrizando uma vala enorme bem no meio dos nossos rostos. de tanto ficar, de tanto ver partir, estamos presos numa rede feita dos fios da descrença, esse inseto sorrateiro que se alimenta da proteína de tudo o que desiste das nossas chances, o miolo do pão, o queijo na ratoeira que nunca, uns fios de cabelo na escova, um pensamento sujo, um gesto de carinho que se desmonta antes de ser. as noites chegam e só nos damos conta em razão da música das últimas cigarras. sem a certeza absoluta de estar à cama, fechamos os olhos, cada um por si, perdidos, distanciados, separados do sumo, como as sementes na peneira, como numa história violenta, tumultuada e, por tumulto, esperançosa.

diná



conheço diná de uma fotografia. diná está de costas, metida num maiô vermelho, sozinha, com as mãos na cintura, como quem planeja uma viagem ou o suicídio, diná olha o horizonte para além do atlântico. o ocre predomina a imagem e, não fosse o maiô, diná seria camuflada na paisagem de areia e rochas. essa foto está num álbum da minha família e ninguém sabe dizer quem é a mulher. a chamo de diná, porque outro nome não cabe. uma mulher de maiô vermelho em mil novecentos e setenta e quatro, um ano antes do meu nascimento, a mulher que veste minha cor favorita. diná entre fotos da barriga da minha mãe, minha infância, festas de família, granulada diná entre crianças choronas, adultos bêbados e muitos cachorros. de todas as fotos, diná. que faz diná debaixo do plástico de uma das páginas de um álbum mais velho que eu? minha mãe diz que a leva foi tirada no litoral norte de são paulo. alguma praia quebrada, caída, com muitas rochas no entorno. a praia de diná. perdeu a carona numa lancha ou perdeu seu filhinho de vista ou, depois de uns mergulhos, diná desorientada, submergiu no local de areia errado e não onde estavam seus amigos, sua família, sua bolsa. todavia ela olha o mar. diná escolhe a linha que segura a água contra o céu. põe as mãos na cintura e aperta os olhos castanhos, prende os pés na areia, como se fosse possível, como se a areia fosse um poleiro e diná uma arara, como se a atmosfera quisesse arrancar diná de ser diná na fotografia do nosso álbum. agora um náufrago prende a atenção de diná que não se desespera, mede as braçadas necessárias até a areia, pensa no caminho que faria, mas não é ela o náufrago e daquele ponto, o pobre nem a vê. volta a roçar a linha fatal, o cálculo impossível, construir barcos fora dos preceitos náuticos. nada a flutuar, a não ser a hipótese de um voo raso em grandessíssima velocidade, irritar terríveis ondas, afastar o náufrago da costa, impossibilitar seu sofrimento de retorno, afogar o homem na intranquilidade azul, chegar até o limite, até o horizonte que, a essa velocidade, jamais se afastaria de uma mulher de maiô vermelho e com as mãos na cintura. um dia diná escapa da foto e aí quero ver. vou estar de olho em quem da família, além de mim, sente a falta de diná.