A vez que você sonhou com W. W. 

é engraçado que as coisas resultem nisso:  
linha do Nilo como se fosse primeira vez
       mas na verdade
cidade imaginada à dois:  
      mão sobre mão
   eu mostro o que te digo
olha como tossem e como resfriam
os donos da quinta chamada das luzes fazem as coisas
      como a terceira penetração pergunto: travessia permanente
olho: como eles colocam força nisso das imagens como se protuberam
e se esforçam dos buracos
até chegarem no primo que lê amostras
      que ninguém lê: até que ponto se firmam nas luzes
leem entre os olhos  
não um lócus    
o terreno baldio
cercado de mar em que você fica perdida  
no meio dos costumes
     deitada  
pedindo um campo árido cheio de flores
ficando viva (não como todos à sua volta) 
descalça  
     arrastando pedras
(fez um sol maior: um terço de ano
que não te vejo): 
aos domingos vou às encruzilhadas
escrevo vendetas: xisto: 
vou à encruzilhadas procurando meu nome
acho são longuinho fumando pedra todas as terças
       “vim te buscar  
mas não sei se te levo” 
os seus desejos  
   matando o tempo enquanto você não sabe de nada  
 faz nada aguardando
 a forma ilusória de vida  
        que assumem as meninas aos 30 anos
os movimentos que alguns fazem aos ônibus
    que chegam e partem a forma ilusória de vida  
que assumem os meninos aos 30 anos
aquilo nas filas
  as manias vindas a cada vestígio – e no que  
isso resulta? – 
os cercos  
em que é preciso avisar
        do vestígio tocar as coisas com o pulso  
os sustos
sempre a acontecer   
a ideia volúvel de imaginar os rostos que lerão
  no futuro ao momento que se escreve
(as imagens matando o tempo) 
o bafo quente como os que riem e não olham  
pra trás absurdamente como suas falas se limitam no espaço
       nos lugares mal sinalizados
– os lugares sem vestígios –  
os nomes que quase chegam ao país vizinho
sem um apelido
podem te procurar pra sempre que te acharão  
             todas as vezes

porem neste filme são todos loucos  
      cozendo as mãos em almíscar: 

         defensores do estado jogando badminton com a tua presença
oráculos do jogo do bicho
enxergando todas as coisas onde não estão
o lirismo: o bem último da paranoia

e por exemplo: como te dizem o nome? Por onde
   chegam quando te dizem
o nome como se te contassem pela primeira
                                             vez teu nome
e o assoprassem no ar depois de anos  
    se desfizesse aos poucos  
em farelos nos queridos
deixando aquilo como que alguns no museu
          se afastam mais dos pedestais
e dizem tem algo faltando ali tem
                       uma mancha. 

Cinco poemas de Leila Andrade

A sombra de uma sombra

E veio alguém que apenas sabia serpentear  
Era tudo  
Algo das intimidades ignoradas pelo velho mundo
Escondido no deus único que era o seu
Inflexível coração
E seus verbos de agora beiravam ao desentendimento. 

***

Areia 

Ter de volta mísera confusão de medos:   
através desta casa, do que ainda antigo e
pendente.  Mãos vazias
de mapas, de acertos, de doses. 
Escandalosa marca  
não sei como cheguei  
nesse ponto movediço.  

Do que é novo
mas de voz tardia. 

*** 

Plano b

Tarde longa
de horas mansas  
lá fora algumas sombras esquecidas  
da manhã, 
do peso do teu corpo. 

Respiro-te como reprise  
e isso ainda não me deixa morrer  
todo dia
os meus pedaços
espalham-se pela sala. 

*** 

Reprise 

Não tenho explicações
sei dizer o óbvio
das coisas que vão passando  
nem sempre lentas
ruins, boas. Circulares.  
Daquele tipo de dor esquisita  
você não saberá precisar o local nas entranhas. 

***

Avenidas 

Todos os dias espantar os mosquitos
escondidos em avenidas da casa
prestar atenção no tempo
mais uma vez. 

Dobrar asas devagar
sem escolhas
escoltas
e atravessar o dia
como se fosse normal.


[Perfil de Leila Andrade aqui]

fleumático 

e quando o amargo desce e não resta nada além da náusea? 
é a solidão que come as entranhas e dá enjoo. 
toda noite de terça tem esse sabor cáustico de furo
"você é muito pessimista", eles dizem
"você já leu Augusto Cury?", eles perguntam. 
"você precisa escrever coisas bonitas, dar conselhos, 
falar dos astros", eles dizem
ninguém precisa de um homem triste, sei disso, 
mas não consigo deixar a dor de lado
e caminhar com um sorriso idiota
como quem compra uma televisão a prazo  
nas Casas Bahia. 
pago o preço por existir na tangente
por lamber o submundo & a sujeira
como quem lambe um bife cru antes de fritar. 
o descaso, o esquecimento, o fracasso, 
as doenças, os excessos, as dívidas, 
sei disso, ninguém precisa de um homem triste, 
não sou funcional na sociedade do sucesso, 
não sou sequer prestativo, 
não sou absolutamente nada, 
escrevo poemas e aceito a tragédia dos nossos dias. 
ninguém precisa de um homem triste, 
eu preciso da minha tristeza, 
é com a minha miséria que faço esse verso.   


O poema "Fleumático" está incluído no livro "O Abismo é um Instante" (Editora Penalux), que será lançado no próximo sábado, dia 22 em São Paulo.
Mais informações na página do evento no facebook: https://www.facebook.com/events/721438141364470/


Dois poemas de Anderson Estevan

Em fome pela Recoleta

 

À meia noite, Buenos Aires é um delírio
De pólvora e concreto esfarelado
Quando a fome entra ligeira, garganta a dentro, 
E cada metro percorrido
faz da calle Corrientes, um pedaço esquecido do mundo

Na próxima esquina, a do esquecimento inóspito, 
dos chicas se devoram em meio às sombras da madrugada
Juntas, pulsam ao ritmo elétrico da boate fluorescente

             Hay vivir solo, cabron
             ?Si, pero ya lo soy, che? 

Pigarreio as horas
             ?Lo que puedo hacer, sonreir?  

Dois meninos cambaleiam até um velho automóvel
El chico uno lleva gafas
O outro, um cacho de bananas nanicas
Que me doem de desejo  
Me acosté con hambre los últimos tres días
E os faróis e estações caminham pela calle Santa Fe
Tudo converge para o vendaval que preenche  
as cadeiras vazias do Rincon Norteño
Me gustaria una hamburguesa completa
Mi humanidad pide que mi hambre se va
 
A fome é o desejo de esfarelar o cotovelo gasto, 
o arranhar da barba pela vitrine fedorenta na dispersão da noite, 
o rasgo no saco de lixo tóxico na esquina com a calle Riobamba

Como son felices, no? Padre, Madre y chicos
Assim como o meu salto desgraçado pelo sistema métrico  
que cruza o Oceano Índico
e termina a dois passos do Sul
em meio a transa dos trópicos

No puedo ayudarte, joven
Todos sabem que é impossível medir o desejo
Ou os passos entre a lua  
e o pé do estômago

Un viejo me llama y lo escucho

?Usted sabe que es posible predecir el futuro cuando los zapatos inundan la Recoleta? 
          ?En serio? Si, compañero, 

Mesmo quando o passo recuerda la lluvia y saudade,  
indivisíveis e crônicas

Por cima do seu ombro,  
pois já não há mais ombros lúcidos em Buenos Aires,  
encaro, atônito, o breu que colore  
o melancólico dezembro

? Qué pasa, che boludo? 
Não há luzes de natal,  
     ? Se volvió loco, hombre? 
Como pode haver natal sem luzes coloridas? 

Una chica sorri e sussurra entre dentes
Como se llama, brasileño?  

Pero, não la escucho
Mis pensamientos são de las luces parpadeantes

Mis ojos ahora piscam sem cessar

Pues não adianta
nada mais adiantará  
Ya que no hay hambre no porão
E Buenos Aires pode tentar
Mas jamais será o trópico leste do mundo

 

Para que você não se esqueça

 

Eu preciso lhe dizer
É importante que você não se esqueça
que tudo o que há lá fora
se dissolve com a velocidade  
de uma trovoada em alto mar

Chove lá fora
E eu sou a trovoada que corrói
O vapor que escorre pelas janelas
do seu ônibus em plena segunda-feira
Eu sou a segunda-feira
e também o agente que desconstrói  
o ozônio por cima de sua cabeça

Eu sou a molécula da nuvem que te persegue a caminho do trabalho

Derramando água e gelo para que você se lembre
que nada lhe faça esquecer  
E também para que você se dê conta
do que está em vias de se acabar

Há um temporal  

E pode ter certeza, que esse temporal sou eu
que arrasto os carros em direção aos córregos
e que levo ratazanas ao seu banheiro
porque eu sou as ratazanas

Não se esqueça
da minha voz ecoando pelos confins da noite
e da minha mente confusa
Dos meus dedos pálidos tocando sua pele macia
Porque eu também sou o arrepio
e a relva que acolhe os seus pés
enquanto todas as superfícies estão úmidas

Me esvaio na enxurrada que acompanha os passeios
para que possa ser a poça que molha o seu vestido
Eu sou cada uma das fibras de algodão que o compõe
Carregadas por meninos chineses em pleno natal
Talvez você não se surpreenda, mas eu também sou o natal
e o tédio que abraça enquanto o papai Noel não chega
Enquanto eu não chego
para que tudo se acabe num festim de carnaval
Como um conceito absoluto
uma regra imposta pelo espaço
Como o retinir da garoa enquanto a noite se expande e você repousa
e eu, imerso em brumas de sono
Sinto e sei,  
eu sou o teu pesadelo perfeito


Os males e o sangue

José Cardoso, o migrante
interno de Salinas, Minas
Gerais que reza a lenda
de família, veio foi a pé
para as terras paulistas,
onde quebrou suas costas
a vida afora na Companhia
Paulista de Estradas de Ferro.
José Cardoso, vô materno,
dizem os mais velhos todos
(e baixam até hoje a voz
ao falar o nome do senhor)
que não dizia “A”, só olhava
e já sabiam na casa todos
que se disse um desgosto,
que história tristíssima essa
qu'inda hoje me atormenta,
José, seu pai e meu bisavô
indo campear de tristeza
o sítio a cavalo pra não ver
a partida do filho mais velho
e dando ordem à mulher,
sua mãe e bisavó minha: "não
deix'ele levar o mais novo".
José Cardoso de Salinas,
era o senhor o mais novo
e só Deus sabe que sonhos
ou ilusões fizeram o senhor
aceitar da mãe pão e doce
e seguir o irmão mais velho
para migrar só, entre onças.
José Cardoso, valeu a pena,
eu pergunto, tal desgosto
pros pais nunca mais vistos,
vir a pé de Salinas, fronteira
da Bahia com Minas Gerais,
ao município de Bebedouro,
onde viu Rosária, a cabocla,
a de cintura boa de dar filho,
gerada na violência antiga
das bandeiras dos paulistas
que o senhor por um sonho
invejava, sonho bobo e tolo
de melhora, José Cardoso,
com quem juntou os trapos,
moça paupérrima tal rosário
de contas de coco, vó e vô
analfabetos, iletrados, povo
que não tem onde cair morto,
criados por caiporas, botos
e lobisomens. Esses Cardoso
tidos por pobretões vaidosos
pelos vizinhos de Bebedouro,
analfabetos metidos a besta
porque mandavam pra escola
as filhas e filhos todos, quiçá
pra não quebrarem as costas
estes e os filhos vindouros
em estrada de ferro paulista.
E de geração a geração, olha:
já dominamos o abecedário todo,
vô, e até a filha alfabetizada
deu ao senhor este neto
metido a mula-doutor, poeta
que sequer assina seu nome,
José Cardoso, prefere o outro,
o da parte imigrante europeia.
E por seu próprio sonho bobo
não partiu ele por si à Europa
donde veio por sonho louco
a outra metade de seu corpo,
para fazer por lá o que o outro
vô morto fez por terras paulistas?
E logo adubaremos as terras
donde vieram uns, foram outros,
e aí, na terra de Bebedouro
que agora o senhor aduba
no jazigo abarrotado da família,
onde a CPEF foi à bancarrota
e os trilhos dessas ferrovias,
(como relatou Claude Lévi-Strauss
em seu triste Tristes Trópicos)
nunca haviam de ir pra frente
e muito menos repartir o ouro
entre os caipiras e caboclos,
eu pergunto, valeram a pena,
meu finado Seu Zé Cardoso,
aqueles passos de Salinas todos,
e servirá agora de calêndula
em suas costas algum poema?