Algumas notas sobre Eurípides, bofetadas, e cultura democrática

Teatro de Dioniso, Acrópole de Atenas, onde Eurípides encenou várias tragédias. 

Teatro de Dioniso, Acrópole de Atenas, onde Eurípides encenou várias tragédias. 

 

Em 416 a.C. em Atenas, durante a guerra do Peloponeso, Tucídides conta, na sua crónica da guerra, que os governantes dos atenienses cometeram um acto que hoje seria descrito como um crime de guerra. Quando a pequena ilha de Melos se recusou a tomar o partido dos atenienses contra os espartanos, Atenas cercou a ilha e quando os habitantes finalmente sucumbiram ao cerco (durante o Inverno), os atenienses chacinaram todos os homens que conseguiram capturar e as mulheres e crianças foram vendidas como escravas. Quinhentos colonos atenienses foram enviados para a ilha. Em 415 a.C. a peça que o dramaturgo ateniense Eurípides levou a cena num dos principais festivais da cidade, as Dionisíacas, com o governo da cidade a assistir lado a lado com o resto dos cidadãos, intitulava-se As Troianas. As Troianas é uma peça sobre o que espera (futuro não é o termo) as mulheres e crianças de Tróia depois do saque da cidade. Estudiosos de drama grego gostam da falar desta peça quando se pensa em tragédia como arte politicamente comprometida. O que esta expressão designa é o jogo entre o contexto da peça e o contexto da cidade (apenas um exemplo sobrevive em que a alusão é directa, Os Persas Ésquilo). A história do cerco de Tróia tem em comum com Melos coisas suficientes para não termos dúvidas acerca do que Eurípides estava a tentar fazer. Ambas as cidades caem depois de um cerco, os homens são chacinados, as mulheres e crianças ficam à mercê do exército agressor.

Quem alguma vez se sentou para assistir a uma peça de Eurípides conhece bem a sensação que Anne Carson descreve nos prólogos de Grief Lessons, um livro que compila quatro traduções de tragédias de Eurípides (Hércules, Hécuba, Fedra, Alceste): há algo de intensamente desagradável acerca de Eurípides. Quem era Eurípides? Anne Carson diz-nos: The best short answer I’ve found to this is an essay by B. M. W. Knox, who says of Euripides what the Corinthians (in Thucydides) say of the Athenians, “that he was born never to live in peace with himself and to prevent the rest of mankind of doing so.”

As tragédias que dele se conservam obrigam as pessoas a caminhar para fora delas mesmas, a reflectirem sobre como as coisas mais banais que as rodeiam, os pensamentos e os sentimentos dos quais não podemos escapar, coisas tão quotidianas como família, amor, paixões, curiosidade, não estão sob o nosso controlo, nunca vão estar sob o nosso controlo, e podem ainda ferir-nos de morte (tratando-se de Eurípides, na maior parte das vezes literalmente). Se temos a ideia de que os dramas da tragédia grega são sobre decisões entre alternativas que na verdade não podem ser escolhidas, porque o resultado em qualquer cenário é a catástrofe, talvez nenhum tragediógrafo tenha sido tão eficaz a dramatizar essas decisões a partir das perspectivas mais íntimas das suas personagens como Eurípides (cada peça como uma observação da força irresistível dos sentimentos humanos).

Os dramas das personagens mais fortes de Eurípides emergem a partir do lado mais obscuro da consciência (talvez na linha que confina com o que em nós existe de, mais do que irracional, inexplicável). O que elas sentem, o que lhes passa pela cabeça, nas mãos de um dramaturgo um pouco mais prudente ou um pouco mais cobarde nunca seria articulado, nunca encontraria uma totalidade de expressão. Em Eurípides é perseguido até às últimas consequências. Nós que sabemos o que estamos a ver, não queremos acreditar. Sentámo-nos aqui apenas como espectadores e entendemos que observação inocente é um conceito alheio a Eurípides. Os espectadores de Eurípides não têm a opção de se manterem como espectadores inocentes. Recorrentemente, talvez na totalidade das peças de Eurípides, estas desenrolam-se em redor de um evento ou de um segredo a que uma personagem ou grupo de personagens e, consequentemente, a audiência, têm acesso, informação vedada a outros participantes do enredo. Jasão suspeita de Medeia mas somos nós que observamos os seus planos e que sabemos o que vai acontecer. Fedra ama Hipólito, mas ninguém pode saber. Hércules julga que teve um regresso tranquilo a casa. Hécuba confia em Polimestor. Agora que fazemos parte do círculo de Eurípides, não o podemos evitar, da próxima vez que, da banalidade das nossas rotinas, um pensamento tornar a ordem impossível ou intolerável, até entendermos como é, passar para o lado de fora de nós mesmos, sabemos que Eurípides nos tocou com o seu insuportável dedo no meio do peito.

            Que Eurípides tenha podido levar As Troianas a cena naquele ano, entre aquele grupo particular de atenienses (não é difícil imaginar que muitos deles tenham servido como soldados no cerco de Melos), é uma espécie de epítome, no fim da época de ouro do teatro ateniense (e o teatro é a forma de arte que os atenienses inventaram que se tornou o símbolo da época clássica) do laço inextricável por que, em Atenas durante aquele tempo, arte e democracia (a cultura ateniense talvez não seja mais do que a soma destes dois elementos) se encontravam ligadas. Os atenienses podiam dizer toda a arte é política, no sentido muito particular em que era uma expressão da sua vida cívica. Mas acredito que nenhum dos tragediógrafos que nos chegaram tenha entendido tão bem como Eurípides que sim, toda a arte é e deve ser política, mas com um grão de sal muito particular, toda a arte é e deve ser política mas apenas no sentido singular em que cria para os indivíduos um espaço para se verem sozinhos com a sua própria consciência, e só depois disso consigo próprios enquanto parte de um corpo de cidadãos.

Portugal teve efemeramente, até há uns dias, um ministro da cultura que se ofereceu para distribuir bofetadas por dois cronistas do principal jornal diário do país, ambos responsáveis por artigos de opinião em que criticavam a atuação do dito ministro. Portugal é um país com um vocabulário profundamente rico para designar o acto de esbofetear: lambada, lamparina, bofetada, estalada, estalo, sopapo, tabefe; e as perífrases: ir à cara, apanhar na tromba, etc. Esta riqueza de vocabulário trai talvez o quanto a prática de esbofetear entre nós tradicionalmente se confundiu com didática. O que pode significar que ao ex-ministro pode bem ter sido atribuída a pasta errada, um lamentável erro de casting ao nível da gestão dos recursos humanos, João Soares, o educador, apto a corrigir o erro de dois cronistas com uma candura de autoridade paternal. O que me leva de volta a Eurípides e ao laço que existe, ou deve existir, entre cultura e democracia. No final da guerra do Peloponeso, com o fim da hegemonia ateniense, o teatro como os atenienses da época clássica o tinham pensado sofre alterações temáticas radicais e caminha lentamente, tanto quanto sabemos (porque não muito sobrevive) para algo mais próximo do que hoje coincidiria com os temas que formam os enredos de sitcoms ou telenovelas. Os estudiosos de tragédia grega apontam todos as mesmas características: os sucessores de Ésquilo, Sófocles e Eurípides estão interessados em temas melodramáticos, comédias de enganos, paródias de costumes. Com a dissolução da polis o teatro vira-se para temas íntimos e em alguns casos superficiais, o que de alguma forma antecipa o mundo do teatro romano. Os estudiosos dizem-nos, basta pensar na forma como o espaço do teatro é concebido em Roma: fechado, com os lugares sentados organizados por classes, o género que parece ter sido mais popular é a comédia (tragédias de Séneca à parte, tudo menos teatrais). O teatro romano distanciou-se lentamente das funções cívicas que tinha em Atenas. As suas novas funções são talvez melhor descritas pela expressão “pão e circo.” Não que tudo o que é pão e circo deva ser subestimado (os génios não existem sem obras menores, e apreciaríamos Eurípides e Dostoievsky bastante menos).

 

Num texto recentemente publicado na revista First Things[1], a filósofa americana Zena Hitz argumenta em favor de uma velha questão de um ângulo que me causa uma certa inquietação. Ela argumenta em favor das humanidades como um espaço de reflexão, mas reflexão privada. Quando a cidadania monopoliza o indivíduo, as humanidades deveriam servir o objectivo de criar, mais do que tudo, um espaço de meditação retirado do mundo. Hitz propõe que isto seria uma forma de escapar à presente instrumentalização das humanidades como mera ferramenta da democracia, revertendo-as para espaços de afirmação da nossa individualidade. É difícil não simpatizar com o argumento, sobretudo face à extrema mediatização de tudo, não só da política (afinal um ministro é mais autêntico e está mais próximo das massas se não puder poupar os cidadãos aos seus espectaculares desabafos, sem filtro, nas redes sociais) mas das nossas vidas (nós somos ao mesmo tempo gregos e romanos), mas talvez a melhor forma de exercer a nossa cidadania não ande longe do espírito com que Eurípides levou a cena As Troianas. Cidadania não é cidadania se monopolizar os indivíduos para se afirmar, não anula as suas divergências ou idiossincrasias, é idealmente um outro passo na direcção destas. A visão de Eurípides em As Troianas não se confunde com uma mera condenação dos actos dos seus concidadãos em Melos (não seria muito mais do que circo se fosse apenas isso), é um doloroso exercício de tomada de consciência colectiva, de indivíduos que finda a peça são deixados sozinhos com o peso das suas acções, que caminham do colectivo para um exame da própria consciência. O mundo de Atenas permitiu que homens tão díspares como Platão ou Aristóteles tivessem pensado o que seria a cidade ideal, a forma de governo ideal. Platão chamou à democracia o menor dos males. Contemporâneo de Platão e Aristóteles é o altamente individualista Diógenes, que defendia a autossuficiência dos indivíduos, o seu afastamento da polis em favor de uma vida intensamente privada. Na cidade (e esta não é a cidade ideal) todas estas ideias devem co-existir e competir mutuamente. O pão e circo que nos divertiu durante a semana passada não se confunde com o espírito dos acontecimentos que estão na génese da tragédia de Eurípides. O Ministério da Cultura ideal abster-se-á de oferecer bordoadas a qualquer pessoa ou coisa que desafie a sua circunspecta autoridade de entidade estatal (que não deve ser redonda e/ou patriarcal), sob pena de se converter num aborrecido Ministério da Propaganda. O Ministério da Cultura ideal protegerá não só a cultura da nação, mas incentivará toda e qualquer acção que se apresente no espírito de As Troianas. Subsequentemente, quaisquer tendências de ministros para oferecer lambadas poderá ser substituída por uma reflexão sobre a relação entre cultura e democracia.


[1] http://www.firstthings.com/web-exclusives/2016/04/freedom-and-intellectual-life

*Na Enfermaria 6 dedicámos outro texto a este assunto. Pode ser lido aqui. Sobre o mundo do teatro grego e romano:

 Ancient Greece: The Greatest Show on Earth de Michael Scott.

BBC In our Time: Cultural Imperialism de Melvyn Bragg com Linda Colley, Phillip Dodd e Mary Beard.

BBC In our Time: Tragedy de Melvyn Bragg com George Steiner e Catherine Belsey.

BBC In our Time: Comedy in Ancient Greek Theatre, Melvyn Bragg com Paul Cartledge, Edith Hall e Nick Lowe.

Romanos e Americanos. A walk in Rome in the Days of Trump de Adam Gopnik.

Alguns livros:

The History of the Peloponnesian War de Tucídides.

The Ancient Greeks: Ten Ways They Shaped the Modern World de Edith Hall

The Birth of Politics: Eight Greek and Roman Political Ideas and Why They Matter de Melissa Lane

Shame and Necessity de Bernard Williams

Roma, coliseu. Pão e circo (o que envolveu, não só mas também, cristãos dados aos leões como petisco). 

Roma, coliseu. Pão e circo (o que envolveu, não só mas também, cristãos dados aos leões como petisco). 

Ao céu não chega quem quer

A comida não é poesia.

A guerra não é um vulcão.

Saturno, o gigante que comeu o filho, continua vivo. É um príncipe ditador, a viver num palácio de ouro construído sobre um lençol de petróleo. É um burocrata, eleito pela mão invisível dos sistemas, o financeiro e o da passividade. Também pode ser um homem do futebol, comprador de carne que a repetição diária transformará em jogadas dentro da área, bem ou mal finalizadas.

O planeta é um esqueleto. Culpa de Saturno, que se esconde em qualquer lado.

O homem é uma vaca. Por vezes, um cão. Mas a fingir, claro. Porque a lealdade é burocrática. E a burocracia é melancólica. Os animais, ao contrário do que ensinam os manuais que ensinam a viver, não se domesticam. Os animais só desejam fugir, comer, fugir, comer outra vez. Os animais unem-se, formam um grupo, isso é um comportamento social, dizem os livros. E correm todos na mesma direção. Panças, olhos, baba, cabelos, pele encardida de pó e de medo. Não é lava, mas queima, aquilo que sai dos olhos das espingardas dos que correm atrás deles.

Esses animais são as pessoas que fogem na televisão. Ser refugiado é o estado permanente de cada um dentro de si próprio. Os que a televisão mostra à hora do almoço, são apenas imitadores, como explicam os livros. Quando todos se movem na mesma direção, isso é imitação. Homens e vacas.

As ordens dos polícias, atiradas pelos megafones, caem como pedregulhos nas suas cabeças, ou como foices a rasgar os lenços e a pasta de cabelo. Palavras que põem sal no cérebro. Língua estrangeira contra línguas gretadas. A guerra é o medo, dos que morrem e dos matam com medo de morrer.

Cronos, o soberano implacável, está sentado a olhar para isto, à espera que o tempo não passe.

A comida não é como a erva. Esta cresce na terra, sobe mas não chega ao céu. No sentido inverso, a comida cai do céu. Para estas pessoas, ela cai sempre do céu. Os aviões, que bem poderiam ser amigos ou primos afastados, acenam no céu de Damasco, para as pessoas sentadas à mesa da esplanada do café no bairro, a fumar o cachimbo de água. Ou alguém dirá que foi assim que as coisas se passaram. Na verdade, os aviões passaram em rotas oblíquas, largaram os fardos e fugiram. Fardos geométricos, bem atados com fitas de nylon. O nylon demora 650 anos a degradar-se na terra. Cada fardo pesa entre 550 e 850 quilos. Dois fardos caíram em cima de uma casa. Morreu uma mulher e a sua filha pequena. Juntas, somavam 48 anos de vida. Morreram esmagadas  debaixo de cobertores, trigo e equipamentos para as pessoas se protegerem do frio. Os jornais reproduziam esses números rigorosos, citando o comunicado dos donos dos aviões.

Os aviões compreendem as regras, mas por vezes o vento não obedece.

Onze horas da manhã, na estação. Os polícias húngaros imitam os aviões. Um deles lança a comida em arco, por cima das cabeças dos bichos, que se empurram, escorreg resfolgam. Saquinhos de plástico, fechados com um nó simples, atirados em arco, com um movimento suave. Os bichos, que antes se explicavam aos jornalistas, deixaram de repente de querer saber do inglês e empurram-se na língua própria. Os braços são rápidos, o saco escorrega das mãos de um, cai nas patas de outro, um puxão e rasga-se. Qualquer coisa se espalha e desaparece no chão pisado pela manada. Vem outro logo a seguir, lançado no mesmo arco elegante. O dedo abre-se no momento certo e liberta o saco com qualquer coisa lá dentro. Inicia uma ascensão curta e rápida que o faz descer na linha decidida pela gravidade.

Um dos bichos avança na direção de outro saco, ainda por lançar, pendurado na mão de um polícia, como se fosse um coelho morto pendurado pelas patas traseiras, como o corpo esticado na vertical. Sangue a pingar nas botas do caçador. Com a mão livre, o polícia aponta aos olhos desse animal afoito. Este recua e aproxima-se do centro da manada, com alguns passos calculados para trás, sem desviar os olhos da mão enluvada do polícia, de onde sairá o saco, depois de um movimento pendular, perfeito. O homem calcula o sítio exato onde irá cair o saco, há um computador em cada cérebro que serve para isso mesmo. Quando o plástico inicia a descida, o corpo está esticado para trás, os braços levantados, as mãos abertas com todos os dedos. Há corpos a mais, todos esticados. Imitação, portanto. Comportamento social desencadeado por um estímulo externo à manada – poderia ser dito nos livros. Os olhos dos polícias seguem as mãos esticadas. Dura um segundo, mas é uma imagem inesquecível. As televisões vão mostrar aquilo ao mundo.

Nessa noite, ou melhor, quando for noite no outro lado do mundo, num apartamento em Yorkville, o bairro do Upper East Side, em Manathan, uma mulher alta e magra, com feições ibéricas, estará a ver as imagens sem som, deitada no sofá, depois de ter mandado embora o rapaz com quem acabou de fazer sexo. Terapêutico, dirá depois às amigas. Para uma cura de alma. Refugiado é um estado de cada um dentro de si.

Ao céu não chega quem quer. O saco está a descer. Ali, naquela estação, com os comboios parados, há homens a querer levar a comida que conseguir agarrar para as suas mulheres. Há mulheres com a certeza de a conseguirem alcançar para os seus filhos. E há filhos de pais afogados na travessia do dia anterior que a querem só para si.

Quero outra vez um dia de Verão

Quero outra vez um dia de Verão. Entenda-se que não peço um dia de sol, mas sim que quero um dia de Verão.

Nos dias de Verão é mais fácil escrever: tudo é mais luminoso e tem mais vida. Podemos falar de uma cadeira de vime no alpendre e de uma almofada fofa no assento. Verde com riscas laranjas e contornos azuis. Assim, exagerada de cor. São três da tarde e o sol bate levemente por sobre o caramanchão que me dá sombra. Uma estrutura simples coberta pelo maracujaleiro em flor. Cheira! E como cheira. Três da tarde é a hora dos gatos e dos segredos. Já é insuportavelmente tarde para o almoço dum dia comum e infinitamente longe de uma hora boa para o chá. É uma hora que não existe. Na casa alguém dorme a sesta num dos quartos com as quatro paredes altas. Os tectos finamente decorados a estuque são como antigos mobiles ou clepsidras que nos fazem adormecer. Contando que nos viremos algumas vezes na cama. Podia estar a escrever, agora que estou no jardim, sentado numa cadeira de vime com uma almofada colorida por assento. Enquanto, prefiro pensar numa sesta não demasiado tranquila no quarto do fundo. O quarto do fundo é grande e branco e tem um tecto como um clepsidra como os outros quartos da casa. Mas não é isso que me atrai. Numa proporção certa a cama enfrenta a janela cuja vista se joga sobre a cidade. Continua depois no mar. Bastaria agora que me levantasse, que pisasse com os pés nús o chão morno de cantaria. Em jeito manso subiria as escadas para encontrar num instante a porta envidraçada da biblioteca. Agora caminhar no longo corredor dum silêncio impossível, feito de velha madeira rangente. A mão poisada sobre a maçaneta, rodando-a num gesto de pulso. De seguida fecho a porta e corro também as cortinas. Às três da tarde todas as luzes devem ser a meia luz. O corpo descansado sobre a cama. O tecto em clepsidra e as paredes altas e brancas e o sol por entre as cortinas leves. Meia-luz com a alma a meio-gás como se meio adormecida. E agora estou sentado na cadeira do jardim a pensar que poderia estar deitado na cama do quarto do fundo. Aí imaginaria o turpor das quatro da tarde, quando nem por um instante houvesse silêncios. As crianças a descer velozmente as escadas, aos tropeções ligeiros; o jardim muito cheio; alguém a por a mesa do lanche. E tudo isto como um preparar lento do funeral duma tarde de verão que se fecha com o ritual do chá servido quente pelas cinco.

Hoje Outubro quase vira Outono. Há ainda resistências do sol e sobretudo da luz. Agora na janela frente à estação de comboios felizes e também velozes penso- no corpo sentado na cadeira no jardim, pensando no corpo deitado na cama do quarto, imaginando a agitação que virá para preparar o final de mais uma coisa que começa. Onde estarei eu pelo mês de Agosto?

 

A ÚLTIMA FRÁGIL PÁTINA DE REBELIÃO CAIU!

Numa carta escrita a Jonathan Franzen David Foster Wallace escreve: “The last thin patina of rebelliousness has fallen off. I am frightfully and thoroughly conventional.” Esta frase veio-me à memória numa altura em que me ocorreu a possibilidade de que nunca mais voltaria a entreter quaisquer pensamentos que envolvessem apartamentos sobre cafés em Casablanca, com ligações obscuras a Paris, a gabardine e o cigarro de Rick Blaine e as instruções de Ilsa Lund para Sam: tocar a mesma música outra vez. Isto serve para dizer, que, ainda que nestas circunstâncias não me seja possível proferir um here’s looking at you, kid no tom certo, com um sentido de estilo que Humphrey Bogart aprovaria, o que eu reconheço no momento em que as engrenagens das minhas circunstâncias em particular, este fim de tarde, neste ponto em que quatro ruas se encontram, em que as engrenagens complicadas do dia desaceleram e são forçadas a parar, gente que abandona escritórios, bibliotecas oficinas, o estrondo da porta do café nas minhas costas, o ar incomodado do barista, que eu tenha pretensões a ocupar este café depois das 19:00, hora a que ele tão respeitavelmente, tão familiarmente, fecha, tudo isto é uma outra versão ainda de the same old story, para o que aqui serve o meu argumento em particular, o facto de que reconheço agora, consigo ver mais nitidamente, aquele fio de lã que não é frágil e que liga o sentido de quem sou a um sentimento de revolta. A minha revolta é vital. Por exemplo, quando eu descer a rua, e parar para olhar na montra da OxFam onde vai estar uma cópia em segunda mão do primeiro volume do Quarteto de Alexandria, revolta, uma medida de raiva triste menos o ressabiar-me, é o que me há-de ocorrer quando me confrontar com o pensamento de que não tornarei a ler Justine pela primeira vez, e que, quando eu ler Justine pela segunda vez, eu serei diferente, a cidade que me rodeia será diferente, a maneira como se faz tarde, as circunstâncias.

Lugar onde quatro ruas se encontram.

Lugar onde quatro ruas se encontram.

    Quanto mais tempo passamos vivos, mais revolta é preciso sentir. A sua função é preserva-nos. E aqui podíamos, claro, juntar o caveat de Montaigne sobre a cólera, a irmã da revolta. Ao recordar o que Aristoteles diz sobre o assunto (que a cólera serve a virtude e a coragem como uma arma), Montaigne diz-nos que os que discordam disto tendem a afirmar que a cólera é todo outro género de arma: enquanto normalmente somos nós a manipulá-las, a cólera manobra-nos a nós. Montaigne é ágil, como um gato. Um sentimento de revolta é preciso, actua sobre o luto, a tristeza, a ansiedade, a angústia, a depressão, como uma fina película de ironia com força suficiente para nos separar de nós mesmos na porção necessária, isto é, quando te perguntares o que existe entre ti e a aniquilação pode bem ser o sentimento de revolta que sentes ao reconheceres a inadequação entre estas circunstâncias em particular e, por exemplo, o mundo de Casablanca. O mundo de Casablanca não existe aqui, o tempo e o espaço mental da minha liberdade para revisitar mentalmente duas ou três falas que sei de cor, e no entanto, posso apreciar a ironia de pensar em Casablanca aqui e agora. Isto é revolta. E com isso vem a resistência, apenas a quantidade necessária de resistência para que estar vivo possa seguir o seu curso. E agora que o teu pulso acelerou, e que sei que é inconveniente mostrar fraqueza (tudo isto repousa à superfície), sabes para que serve sentir revolta e é melhor do que Montaigne, manipulador e manipulado. 

    O mundo ainda não deu a volta para fazer tanto sentido quanto em Casablanca, podemos levar vários anos até percorrer toda a distância necessária entre o ponto A e o ponto B, isto é, o tempo e o espaço e tudo o que ainda tens para viver entre ti e a aniquilação, aquilo que estás a ver agora e que golpeia a tua atenção não da maneira como o pequeno esteta de trazer por casa que há em ti tinha antecipado (com a suavidade da descrição de Vergílio ao aportar em Brindisi no princípio de A Morte de Vergílio), mas em sucessivas ondas de dor que fazem um trabalho de machado a partir de dentro, volteando no interior do esterno, no interior do crânio. Agora que reduziste tudo ao essencial tens de reconhecer que o essencial é ainda demasiado: uma questão de coração e cabeça.

Justine na montra.

Justine na montra.

    Tony Morrison diz, numa entrevista dada à BBC World Service Book Club, acerca do processo de escrever Beloved, que quando se está a escrever you don’t go over your emotions, you go through them. Nos seus ensaios, Montaigne volta ao tema da cólera, que nem sempre está ligada a um sentido de revolta, e contradiz-se. É preciso conter a nossa revolta, diz o filósofo algures. E de novo, algumas páginas mais tarde, às vezes o melhor é dar espaço às nossas emoções, deixá-las seguir o seu curso. Mas não é disto que eu estou a falar aqui. Eu estou a falar da necessidade de um sentimento íntimo, privado, de revolta, que é preciso cultivar instintivamente, para aprender a resistir à erosão dos dias. Neste sentido, a revolta de que estou a falar nada tem que ver com a incapacidade sofrida pelo respeitável Monsieur de Montaigne de se conter e não castigar fisicamente os criados quando estes falhavam em algum aspecto do seu trabalho. Eu estou falar dessa espécie de revolta que pode ou não ter um pé na cólera, e que serve para preservar as coisas que realmente me importam, o meu amor, a minha criatividade, a habilidade de sentir alguma ternura pelo mundo, sem a qual não é possível experimentar uma certa forma de felicidade. Going through them.

PRIMO LEVI EM TEMPOS DE CÓLERA

    Ler Platão é uma actividade que se persegue com tempo entre mãos. Um amigo meu, um académico dinamarquês que está a escrever uma tese sobre Platão, tende a racionalizar qualquer problema pensando em Platão. Durante uma longa parte do tempo em que ambos estávamos a escrever as nossas teses no mesmo país, adquirimos o costume de nos encontrarmos todas as manhãs. Ele, assumia o papel de Sócrates, falava-me em Platão e eu respondia-lhe em Homero. Platão tinha questões com poetas, como reagiria ele à capa de hoje do inenarrável Daily Mirror (talvez em modo Bukowski: I see where I have made plenty of poets/ but not so very much/ poetry)? O sistema político em que vivemos hoje é uma democracia? Não, Platão descreveria isto como uma oligarquia. Mas concordarias que um poeta pode descrever uma mesa ou uma cadeira mas não construí-la? 

    Perguntas deste tipo povoavam as nossas sessões e estas sessões às vezes levavam a becos sem saída, quando tínhamos sorte, a discussões sobre os problemas mais concretos, sobre coisas que mais nos interessavam, ou que na altura nos preocupavam profundamente. Porquê ler Platão? Platão é um autor que nos obriga a perguntarmo-nos todas as perguntas que importam: o que é justo?, qual a melhor maneira de viver na cidade?, qual a melhor maneira de governar a cidade?, como podemos viver bem a nossa vida?, como devemos vivê-la?, qual o papel do amor nas nossas vidas?, na nossa moral? Se suspeitarmos de Platão nas doses certas, nas quantidades certas, vamos amá-lo para o resto da vida. Quando somos ainda muito jovens e lemos o Fédon não temos como não acreditar que Sócrates inventou o espírito humano. Não importa tudo o que vamos aprender a seguir, não importa se depois disso não temos como não amar a chateza sóbria, pragmática e honesta de Aristóteles, que ao contrário de Platão tinha uma fé inabalável na habilidade dos humanos para aprender a bondade, o que às vezes penso é o único grande ponto de ruptura entre Aristóteles e Platão, o motivo pelo qual o discípulo se afasta do mestre.  

    Ler Platão é uma actividade que devemos perseguir sobretudo no que um amigo meu costuma definir com recurso a Ruy Belo, em tempo detergente. Uma porção considerável das nossas vidas decorre em tempo detergente. Devemos ler Platão em qualquer altura, mas sobretudo em tempo detergente. Quando estamos deprimidos, quando carregamos connosco a humilhação de uma dor cinzenta, os nossos sonhos quando morrem, a esperança de um tempo inteiramente de portas fechadas, um amor que reconhecemos ao olhar para a sua cara doente que ele vai apodrecer até se tornar na nossa maldade, quando nos sentimos rodeados de mediocridade e a única resposta ao nosso alcance é a da reciprocidade básica de todos os nossos instintos banais, esta desarrumação em que temos dissipado os dias, é aí que mais precisamos de Platão. Devemos ler Platão quando reconhecemos o pior de nós ao virar de cada esquina, Platão pode ajudar-nos a combater o pior da nossa personalidade, conceder-nos, se mais nada, a distância vital da ironia. 

    Enquanto a lenta abolição de uma educação em artes liberais não for inteiramente substituída pelo cenário catastrófico de um treino escolar que sirva simplesmente as necessidades de um mercado de trabalho, uma educação que não permita a um indivíduo inventar-se a ele próprio, que incentive apenas a demagogia triste de estudos que inspirem uma mentalidade meramente utilitária, o Banquete continuará a povoar a imaginação de adolescentes pelo mundo fora, com respeitáveis figuras públicas da Atenas do século V em versão drunk & horny men invent love, e o inegável sex appeal de Sócrates, definido por Alcibíades como inversamente proporcional à sua aparência física, continuará a inspirar esperanças talvez pouco razoáveis em todos os adolescentes que não lograram ficar bem em nenhuma fotografia. 

Capa do Better Book Titles para o Symposium. 

Capa do Better Book Titles para o Symposium. 

    Ler o Banquete é como adoecer. Não é uma descrição apelativa, esta, mas é o que é. Outras coisas nos serão dadas enquanto a maleita faz o seu trabalho. A mais importante delas relaciona-se com a descrição que se pode ler na capa da edição deste discurso para a série Penguin Books Great Ideas: “our human race can only achieve happiness if love reaches its conclusion.” Esta edição contém uma das traduções mais agradáveis e mais bem conseguidas do texto platónico, a de Christopher Gill. É possível adquiri-la por cinquenta cêntimos de libra, um preço que, já agora, nos lembra o quão saudável é desprezar livros.

    O que é que se discute neste diálogo? O papel do amor na formação moral do indivíduo (qualquer introdução à obra dirá que, mais do que prescrições pronunciadas a partir de uma posição de autoridade moral, o que preocupa Platão é o processo, como é que o amor faz parte desse processo), o seu papel na felicidade, na criatividade, no (re)conhecimento da nossa natureza e no (re)conhecimento da dos outros. O papel do amor na vida da mente, na vida social e política. Quando chegarmos ao fim do diálogo, e estivermos mesmo nas últimas páginas, outro pensamento terá ganhado raiz. Enquanto Sócrates se diverte a desfazer a ingenuidade de Ágaton (o amor é um deus belo), com a perícia do professor que será sempre percebido pelos seus alunos como o super-herói, a ideia básica na sequência lógica de todas as que a precederam ganha forma. O amor é uma forma de desejo, a necessidade de alguma coisa. Uma das personagens, o tragediógrafo Aristófanes, já tinha aludido a isto ao narrar o mito das almas gémeas: os humanos são apenas metade dos humanos originais (um crítico da BBC em tempos imaginou estes humanos como sendo um pouco como o homem de Leonardo Da Vinci e esta ideia agrada-me), e foram separados ao meio pelos deuses, porque estes temem a arrogância da criatura. Assim, os humanos não se podem reunir como dantes, e morrem com a ausência do outro. Os deuses resolvem isto com uma modificação nos orgãos genitais, permitindo a cada alma gémea que esta se reúna à sua, uma vez encontrada. Esta abstracção tão literal encerra outra, mais vaga. O desejo é uma coisa que move a nossa perseguição de cada descoberta, os caminhos que escolhemos. 

Platão, Banquete, Penguin Books Great Ideas, Christopher Gill (trad.)

Platão, Banquete, Penguin Books Great Ideas, Christopher Gill (trad.)

    Há lugares a que vamos chegar sem escolha. Num dos poemas mais belos do século passado, “I dream I am the death of Orpheus”, a poeta americana Adrienne Rich explica a sensação que isto causa:

I am a woman in the prime of life, with certain powers
and those powers severely limited
by authorities whose faces I rarely see. 
I am a woman in the prime of life
driving her dead poet in a black Rolls-Royce
through a landscape of twilight and thorns.

Adrienne Rich em The Will to Change, Norton, 1971.

    Aos lugares a que vamos chegar sem escolha, importa o nosso percurso, para nos lembrarmos bem de quem julgamos que somos, para sermos capazes de sobreviver à imposição dos factos da vida sobre a nossa personalidade. Não o que é esperado de nós, não as expectativas das “authorities whose faces I rarely see”, mas o que carregamos connosco. No alongado olhar que Platão demora sobre o espírito humano no Banquete pode ler-se que o amor (Eros) nasceu de um encontro fortuito entre a Pobreza e o Recurso (sendo que o Recurso etava embriagado e a Pobreza tira vantagem). Segundo Sócrates, é por isso que o amor é sempre pobre, não é nem sensível nem belo, como a ingenuidade de Ágaton sugere, mas seco, com a pele endurecida, sem sapatos nem casa. E Sócrates diz-nos que o amor dorme no chão, sem cama, nos limiares das portas ou pelos caminhos. E porque ele partilha da natureza da mãe, ele tem sempre necessidade de alguma coisa. No que se parece com o pai, ele anseia por apoderar-se do que é bom e belo. Sócrates diz: o amor é corajoso, impetuoso e intenso, um caçador formidável, sempre a preparar o próximo truque. E conclui: um amante da sabedoria para sempre, esperto a manipular magia, drogas e sofismas. O amor, segundo Platão/ Sócrates, é a nossa mente colorida no grau mais interessante. O amor é o desejo, constantemente. E há nele algo de intrinsecamente divertido, vindo do lado do riso (a embriaguez do recurso, essa metáfora que explica o lado hermético do amor), um pendor do estado de ser livre quando este se parece com a descoberta da alegria, com as fontes da felicidade.  

    Sobre Sócrates circulam anedotas acerca de quando ele cumpriu o serviço militar, de como ele era capaz de passar um dia e uma noite parado no mesmo sítio, a meditar sobre um assunto em pleno tempo de batalha. A vida moral de um indivíduo exige uma imensa quantidade de tempo para se desenvolver, uma imensa quantidade de solidão para que se chegue a distinguir com nitidez os contornos do vasto continente da nossa imaginação que pode ser iluminado pelo nosso amor. O discurso de Platão é um tributo a isso. Sócrates, se acreditarmos no relato em terceira pessoa de Platão, vislumbrou-o numa noite de vinho e insónia em Atenas, na casa de Ágaton, talvez sobretudo na antecipação da humilhação despeitada e desajeitada de um amante que não consegue instilar nele a quantidade necessária de igualdade para que o amor funcione. Sócrates não ama Alcibíades, e enche a noite com um discurso assente sobre a sabedoria de uma amante anterior, Diotima, com a memória de uma longa conversa, que abunda na lógica da dialéctica, pela qual é hábito examinar-se alguém a uma certa distância. Há que amar o bom senso de Platão, que na presença e no discurso de Alcibíades desautoriza Sócrates apenas o suficiente para que nos lembremos o que é um amante, e que também o super-herói vive à escala humana. 

Orfeu e Eurídice, Rodin, 1893. Orfeu é descartado por Platão como exemplo negativo de amante. Os deuses pensavam que ele era soft: tratava-se apenas de um músico, que não teve a coragem de morrer de verdade por Eurídice, recorrendo a um su…

Orfeu e Eurídice, Rodin, 1893. Orfeu é descartado por Platão como exemplo negativo de amante. Os deuses pensavam que ele era soft: tratava-se apenas de um músico, que não teve a coragem de morrer de verdade por Eurídice, recorrendo a um subterfúgio para descer ao Hades que lhe permitiu entrar no submundo sem estar de facto morto (cf. a este respeito o conto de M. Kundera, "Symposium": "No fim do verdadeiro amor está a morte, e só o amor que termina na morte é amor."). Segundo Platão, o castigo que os deuses reservam a Orfeu pela transgressão é a morte às mãos de mulheres. 

    Em A Tabela Periódica, Primo Levi no capítulo dedicado ao elemento do fósforo, recorda um amor de juventude. Sobre o momento da separação definitiva, quando o que não pôde ser evitado, regressa, à distância de anos, no trabalho da examinação tardia, como uma revelação, Levi escreve:

I felt growing within me, perhaps for the first time, a nauseating sensation of emptiness: so this is what it meant to be different: this was the price for being the salt of the earth. To carry on your cross bar a girl you desire and be so far from her as not to be able even to fall in love with her: carry her on your crossbar along Viale Gorizia to help her belong to someone else, and vanish from my life. 

Primo Levi, The Periodic Table, Raymond Rosenthal (trad.), Penguin Books,  2000.

    Platão é o autor a quem se atribui aquela máxima sobre a vida que não é examinada não valer a pena ser vivida (o contrário é ainda verdade, uma vida insuportavelmente examinada também não pode ser vivida). Primo Levi é outro autor que merece ser lido em tempo de crise. A única coisa para que o exame das perguntas de Sócrates, as suas soluções, não nos preparam, podemos encontrá-la extremely loud & incredibly close na autobiografia de Primo Levi, que o carácter moral de um homem pode estar certo, ser certo (a escrita de Primo Levi obedece ao critério da tríade platónica: bom, belo (mais do que tudo talvez na ideia da redenção do horror pela intuição de que tudo o que é humano não nos é alheio e o que é digno de condenação precisa de ser olhado de frente, de olhos bem abertos) e justo), ser de uma qualidade na ordem do que o discurso de Platão pretende inspirar, e ainda assim o resultado continuar a ser a dor inesgotável cuja única condição para ser experimentada é estar vivo. Mas, é também neste aspecto que a nemesis de Platão pode ser encontrada. Ao ler Primo Levi em tempos de cólera, lembramo-nos à distância do eco de outro escritor judeu, Saul Bellow em As Aventuras de Augie March, naquela cena em que uma das personagens diz a Augie que, no fim das contas, não é possível salvar a vida ou o espírito por pensar, mas, se pensarmos, o mínimo dos prémios de consolação é o mundo. 

    Não existe absolutamente nada de frívolo ou de acessório no Banquete de Platão. Continuará a ser, antes e depois da tonalidade de qualquer tempo, uma dessas ferramentas preciosas para a perseguição do lento e difícil trabalho de nos mantermos humanos. E se vocês se estão a perguntar porquê, aqui podíamos acabar com o Banquete de Kundera:

Just because it is groundless. If there had been a reason, it would have been possible to find it in advance, and it would have been possible to determine my action in advance. It’s just because of this groundlessness that a tiny scrap of freedom is granted us, for which we must untiringly reach out, so that in this world of iron laws there should remain a little human disorder. 

Milan Kundera, “Symposium”, Laughable Loves, Suzanne Rappaport (trad.), Faber & Faber,  1999. 

 Oxford, 6 de Agosto de 2015 & 17 de Agosto de 2015