Quero outra vez um dia de Verão

Quero outra vez um dia de Verão. Entenda-se que não peço um dia de sol, mas sim que quero um dia de Verão.

Nos dias de Verão é mais fácil escrever: tudo é mais luminoso e tem mais vida. Podemos falar de uma cadeira de vime no alpendre e de uma almofada fofa no assento. Verde com riscas laranjas e contornos azuis. Assim, exagerada de cor. São três da tarde e o sol bate levemente por sobre o caramanchão que me dá sombra. Uma estrutura simples coberta pelo maracujaleiro em flor. Cheira! E como cheira. Três da tarde é a hora dos gatos e dos segredos. Já é insuportavelmente tarde para o almoço dum dia comum e infinitamente longe de uma hora boa para o chá. É uma hora que não existe. Na casa alguém dorme a sesta num dos quartos com as quatro paredes altas. Os tectos finamente decorados a estuque são como antigos mobiles ou clepsidras que nos fazem adormecer. Contando que nos viremos algumas vezes na cama. Podia estar a escrever, agora que estou no jardim, sentado numa cadeira de vime com uma almofada colorida por assento. Enquanto, prefiro pensar numa sesta não demasiado tranquila no quarto do fundo. O quarto do fundo é grande e branco e tem um tecto como um clepsidra como os outros quartos da casa. Mas não é isso que me atrai. Numa proporção certa a cama enfrenta a janela cuja vista se joga sobre a cidade. Continua depois no mar. Bastaria agora que me levantasse, que pisasse com os pés nús o chão morno de cantaria. Em jeito manso subiria as escadas para encontrar num instante a porta envidraçada da biblioteca. Agora caminhar no longo corredor dum silêncio impossível, feito de velha madeira rangente. A mão poisada sobre a maçaneta, rodando-a num gesto de pulso. De seguida fecho a porta e corro também as cortinas. Às três da tarde todas as luzes devem ser a meia luz. O corpo descansado sobre a cama. O tecto em clepsidra e as paredes altas e brancas e o sol por entre as cortinas leves. Meia-luz com a alma a meio-gás como se meio adormecida. E agora estou sentado na cadeira do jardim a pensar que poderia estar deitado na cama do quarto do fundo. Aí imaginaria o turpor das quatro da tarde, quando nem por um instante houvesse silêncios. As crianças a descer velozmente as escadas, aos tropeções ligeiros; o jardim muito cheio; alguém a por a mesa do lanche. E tudo isto como um preparar lento do funeral duma tarde de verão que se fecha com o ritual do chá servido quente pelas cinco.

Hoje Outubro quase vira Outono. Há ainda resistências do sol e sobretudo da luz. Agora na janela frente à estação de comboios felizes e também velozes penso- no corpo sentado na cadeira no jardim, pensando no corpo deitado na cama do quarto, imaginando a agitação que virá para preparar o final de mais uma coisa que começa. Onde estarei eu pelo mês de Agosto?

 

Ana

para Ana Garcia 

 
Como podendo estar parados num teatro dirias 
uma coisa, depois outra. 
 
Uma manhã em Lisboa em que Ana 
Tivesse camélias na janela, como antes o fizera Dumas, 
enquanto admitia um choro ou uma hipótese de ser 
Mais do que uma personagem dizendo uma coisa, 
depois outra coisa. 
 
Pequeno-almoço na Confeitaria Nacional, pequena degustação dos jesuítas. 
Abordas uma nota do trágico. Expulsões. 
Lisboa interdita para sempre, isso sim era dramático. 
 
Escondes-te por esta rua donde se 
não veem camélias à janela. Um livro que diga a 
cidade, que a explique como um pai explicando a um filho, que 
não pudera ver, mas sente 
no chão o tremor quando eles passam. 
 
Chegas agora ao Tejo, paras como num teatro. 
o palácio do rei de Portugal cheira a cravinho 
E canela. Mas aqui 
Nada cheira assim, foi acolá que mataram el-rey. 
 
Deixei que crescessem camélias à minha 
Janela não porque lesse um livro, mas porque era 
Um tempo em que Ana amava um 
Homem chamado Lisboa.