Como alimentar uma guerra

Victor Gonçalves, traduz um artigo publicado no jornal Le Monde do historiador russo Sergei Chernyshev (cf. pequena nota no final). Interessa-lhe reverberar essa perspectiva porque, à semelhança de Svetlana Aleksievitch no magnífico O Fim do Homem Soviético, Chernyshev mostra uma realidade que escapa à maioria dos analistas: a de como o «verdadeiro povo russo», provinciano e conservador, patriota e pobre, sem mundo e com uma noção arcaica de heroísmo alimenta de bom grado uma guerra meio idiota, assimétrica e injusta (jurídica e moralmente). Alimenta-a nas urnas e com soldados, dos bons: acríticos e capazes de se sacrificarem pela Heimat. Os filhos desses combatentes honram e admiram os pais. Não estamos, pois, próximos do fim da agressão russa à Ucrânia, a ideia de que se combatem nazis e o Ocidente por inteiro permanecerá durante muitos anos nos cérebros confinados a horizontes minúsculos dos camponeses e dos habitantes das pequenas cidades da Rússia provinciana. Um maná para Putin e seus companheiros de fortuna.

«Os meus pais viveram durante vinte anos no “sector privado” de uma grande cidade. É o que os russos chamam a um bairro onde existem casas individuais ou pequenos bairros sociais. É um canto de vida rural integrado no tecido das grandes cidades. Não há estradas alcatroadas nem redes de esgotos (embora todos tenham instalações sanitárias); o telefone e o gás chegaram há cerca de quinze anos.

Ter gás significa que, no inverno, já não é preciso carregar carvão em baldes do barracão para o fogão duas ou mesmo três vezes por dia. O gás continua a ser um luxo, não está disponível em todo o lado. Há cerca de dez anos, começaram a aparecer carros estrangeiros diante das vedações. Nos últimos cinco anos, nada mudou.

Este verão, depois de um fim de semana, fui buscar o meu filho a casa dos meus pais. “Vem antes das 10 horas”, disse-me a minha mãe. Cheguei às 10 em ponto. Às 11, estava a ser organizado um funeral numa rua próxima, no “sector privado”. Às 11 horas, chega o sobrinho do “dirigente” do bairro. Ele é uma pessoa respeitada, uma espécie de chefe. O seu sobrinho, que morreu durante a “operação militar especial”, deve ser tratado com dignidade; as pessoas devem vir honrar a sua memória.

Mobilizado na primavera, combateu durante seis meses, depois voltou de licença e partiu novamente. No próprio dia em que chegou à Ucrânia, esteve debaixo de fogo. Só regressaria a casa num caixão de zinco com uma pequena janela selada. Eis porque tive de ir buscar o meu filho às 10 horas: a minha mãe sabe que não vejo com bons olhos a sua participação nesta comemoração.

Na rua dos meus pais, há outro “herói de guerra”: um ex-soldado Wagner, antes um criminoso empedernido, que vive com os pais. Desde que me lembro, ele esteve sempre na prisão, por pequenos furtos ou atos de vandalismo. Saía e, passados alguns meses, voltava a beber e a roubar e acabava de novo atrás das grades. Se, durante esses meses de liberdade, desaparecesse alguma coisa de um jardim ou de uma casa do bairro, ele era o primeiro a ser suspeito. Hoje, tem uma medalha e um carro novo. Levou os pais a passar férias junto ao mar. Eles ter-se-ão enchido de lágrimas de orgulho.

Do outro lado da rua, há uma mulher que trabalhava como condutora de elétrico — o que talvez explique o facto de ser conhecida pelos seus palavrões. No último ano e meio, diz que o genro tem pensado cada vez mais em alistar-se. Afinal, os empréstimos não se pagam sozinhos. Um outro vizinho morreu por causa dos seus empréstimos. Afundou-se no álcool, o coração falhou e, antes da primavera, toda a rua veio enterrá-lo também.

Vivi nesta rua durante dez anos. Os meus pais ainda lá vivem. É aqui que têm a sua banya [“banho de vapor”], a sua garagem, a sua horta — não como “esses apartamentos como os vossos, onde se vive uns em cima dos outros”. Quanto aos veteranos Wagner do bairro... A questão hoje é: onde é que eles não estão? Penso nesta rua sempre que vejo um daqueles debates clássicos do YouTube entre emigrantes “liberais” que explicam que, sob a pressão insuportável das sanções, não vai demorar muito até que a população compreenda que o “regime de Putin” lhes tirou tudo. As pessoas compreenderão e, esperemos, revoltar-se-ão. Talvez não se revoltem, mas pelo menos sabotarão o regime. Ou algo do género.

Álcool e prostitutas sem limites

Ludmila Petranovskaya, uma psicóloga de renome, tentou recentemente fazer uma lista de todas as perdas sofridas pelo povo russo, para mostrar que “nem todos os russos beneficiam com esta guerra”. A sua lista inclui: o colapso da moeda e dos valores mobiliários; o encerramento global das fronteiras aos turistas russos; o fim das oportunidades de estudo no estrangeiro para os jovens; a restrição dos direitos e liberdades civis; a degradação da educação e da cultura; a separação das famílias devido à emigração, etc. Depois de ler esta lista, agradeci mais uma vez ao destino por não ter nascido em Moscovo e por ainda não ter perdido todo o contacto com a realidade.

Porque se considerarmos que dois terços da população russa são “o povo russo”, então “o povo russo” não perdeu nada disso. Pela boa razão de que nunca o teve. A última vez que o cidadão comum teve dólares nas mãos foi em 1997, e não passou de uma curiosidade. Nunca foram ao teatro e nunca se aperceberam de que os maiores realizadores tinham abandonado a Rússia, deixando-os também sem nada.

Os seus filhos frequentam a mesma escola que eles próprios frequentaram. Por vezes, com a mesma professora, que tem agora mais de 70 anos. Nunca lhes ocorreu que a educação pode ser dada sem gritos, ou que não seja proibido andar no relvado. E se as suas famílias foram “separadas”, foi apenas pela prisão, mobilização ou contratos de serviço militar. Nunca partiram para a Geórgia ou o Cazaquistão — porque nenhum dos seus pais foi mais longe do que a sua própria cidade.

Os preços subiram nas lojas. Mas quem é que está a contar com as lojas? As pessoas têm batatas e frascos de pepinos nas suas caves para todo o inverno. De uma maneira ou de outra, havemos de aguentar. Por isso, no final, as pessoas não perderam nada. Porque não têm nada de especial a perder. Mas o que é que ganharam? Bem, ganharam muito. E, antes de mais, muito dinheiro. Na cidade natal da minha mulher (não tão grande como a nossa, mas muito mais industrial), um homem voltou para casa [dos combates] com 3 milhões de rublos [30 595 euros] que ele e os amigos delapidaram em dez dias, 300 000 rublos por dia cada um, em álcool ilimitado e prostitutas: isto é que é boa vida!

Muito dinheiro sem grande esforço

Os que têm família regressam e vão passar férias à beira-mar, compram apartamentos e trocam de carro. Além disso, têm a sensação de fazer parte de algo grande. Tal como os nossos avós lutaram contra o fascismo, nós estamos a lutar contra o nazismo na Ucrânia (e onde quer que ele se encontre). Ao mesmo tempo, estamos a lutar contra os gays, os judeus, todo o Ocidente, os maçons, todo o mundo.

A geração mais velha regozija-se com o regresso dos pioneiros, com o treino militar nas escolas, com os uniformes escolares e, de um modo geral, com tudo o que marcou a sua juventude. Já não era sem tempo. Os jovens de hoje iam dar-se mal! Por isso, há muito a ganhar, e tudo isto é feito com muito pouco esforço, muitas vezes sem sequer ter de sair do sofá.

Então, o que é que podemos oferecer a estas pessoas que, graças à guerra, ficaram ricas, enobrecidas aos seus olhos, como reis? Filmes sobre os palácios de funcionários corruptos? Mas as pessoas já sabem há muito tempo, desde os anos 90, que estão a ser roubadas. Nada de novo. Discussões sobre o facto de os que ficaram serem culpados dos crimes do regime? Debates sobre a democracia e os direitos humanos? Relatos trágicos sobre a prisão de Evguenia Berkovitch [encenadora detida em maio] ou de Grigory Melkonyants [codiretor do grupo independente de observação eleitoral Golos]?

Mas quem são exatamente estas pessoas? Ninguém falou delas na televisão ou na Internet. Esta torrente de dinheiro — que, mesmo depois de anos de trabalho, nunca ninguém teria ganho —, associada a um tal sentimento de grandeza, é um cocktail explosivo. É porque as pessoas se recusam a compreender isto que ainda se surpreendem com o facto de, nas últimas eleições, a maioria dos habitantes das zonas rurais (e não das grandes cidades) ter votado em governadores nomeados pelo Kremlin e pelo “partido do poder”, apesar de terem sido eles a suportar o custo da mobilização.

Adesão sincera

Foi este cocktail explosivo que levou as avós às urnas — com vestidos comprados há vinte anos — para votarem no regime. A sua adesão é sincera: o regime, acreditam, está a preparar-se para construir um grande país, livre dos seus inimigos, claro. Nas nossas conversas de intelectuais que esperam que o pesadelo acabe em breve, esquecemo-nos disto: as centenas de milhares de homens e mulheres que já participaram na guerra atual e no processo de “reconstrução dos novos territórios” têm milhões de filhos.

E esses milhões de filhos estão convencidos de que os seus pais e mães estão a fazer um ato heroico. Acreditam sinceramente nisso porque não conseguem conceber que os seus pais sejam monstros. Estes milhões de crianças usam todos gravatas tricolores no dia 1 de setembro, o primeiro dia de escola, veem os mesmos programas na televisão, ouvem as histórias dos seus pais sobre os ukropy (termo pejorativo para designar os ucranianos) e atravessam, com ou sem os seus pais, as ruínas de Marioupol quando vão de férias à Crimeia.

Para que o arrependimento público após a guerra seja possível, teremos de esperar que estas crianças cresçam e tenham os seus próprios filhos, e que lhes seja explicado — a estas crianças que ainda não nasceram — que os seus avós cometeram atos indignos. É mais fácil ouvir falar de avós do que de pais. O arrependimento interno, e não apenas o arrependimento público, começou na Alemanha nos anos 70, precisamente quando os filhos dos filhos dos nazis se tornaram adultos.

Só, pois, no final da década de 2040 é que será possível falar das perdas que a sociedade russa sofreu efetivamente em consequência da guerra em curso. Nessa altura, pelo menos algumas pessoas estarão a ouvir. Nessa altura, aliás, os professores cujas carreiras começaram sob Brejnev terão finalmente deixado de exercer a sua profissão. Entretanto, o povo vive talvez o melhor momento das suas vidas. Claro que alguns deles regressam regularmente da guerra em caixões de zinco. Mas, pelo menos, toda a rua está lá para assistir aos funerais. E é isso que faz renascer os valores tradicionais.

Sergei Chernyshev, historiador, vive em Novosibirsk (Sibéria Ocidental), onde fundou várias instituições de ensino que continua a gerir apesar das pressões das autoridades. Tal como muitos opositores e ONG, é classificado por Moscovo como “agente estrangeiro”. Uma versão longa do seu texto foi publicada pela primeira vez em russo no site Sibir.Realii, a secção da Sibéria da Radio Liberty, um meio de comunicação financiado pelo Congresso dos EUA.»

CARTA ABERTA À EUROPA

Lebre, Fotografia de Jim Higham, the wildlife trusts, Reino Unido

David Harsent
Tradução de Tatiana Faia

Nasci em 1942, o pior ano da guerra. O meu local de nascimento foi uma vila no Devonshire. Contaram-me histórias do bombardeamento dos portos de Devon e de como os aviões de combate que acompanhavam os bombardeiros metralhavam alvos civis aleatoriamente. Um dos alvos foi o hospital numa casa de campo onde eu tinha nascido um dia antes. A minha mãe e as outras mulheres, cada uma com um recém-nascido, abrigaram-se debaixo das camas. 

As minhas primeiras memórias foram, em parte, da guerra, relatos de guerra e testemunho de guerra. Falaram-me do pai da minha mãe, atacado com gás na Grande Guerra; sobreviveu mas morreu jovem por causa disso. O meu pai foi gravemente ferido na Segunda Guerra Mundial e nunca recuperou totalmente das lesões. Levou-me algum tempo até eu entender que o seu trabalho do dia a dia, durante a guerra, era matar e correr o risco de ser morto; que a emoção mais prevalente nele seria o medo. Cada dia durante a guerra dele: medo. Cada dia, o girar de alguma espécie de moeda celestial. À medida que eu crescia, estava mais ou menos consciente da longa lista de guerra que mais ou menos continuamente se sucederam à Segunda Guerra. Como muitos da minha geração, saí para a rua para protestar contra a guerra no Vietname. Agora, como então, tenho em mente versos do poema de Robert Lowell “Acordar cedo a um domingo de manhã:” “... paz às nossas crianças quando caem/ na pequena guerra aos calcanhares da pequena/ guerra...”

O meu trabalho, não tendo por assunto principal a guerra, muitas vezes contém a sua sombra. Em 2005, publiquei Legião. A sequência que dá título ao livro compõe-se de vozes de várias zonas de guerra. A sequência cresceu e desenvolveu-se, creio, a partir de ritmos e imagens das versões inglesas que eu fiz dos poemas escritos por Goran Simic quando ele e a sua família estavam debaixo do cerco em Sarajevo. Depois de ler Legião Seamus Heaney perguntou-me, “Onde encontraste todas estas vozes?” Ele referia-se à variedade dos poemas: alguns tiravam as suas narrativas e imagens da Grande Guerra, alguns da Segunda Guerra Mundial, alguns, certamente, da Guerra dos Balcãs, enquanto outros eram relatos en passant da brutalidade da guerra: histórias específicas contadas por vozes específicas. Recentemente publiquei as minhas versões inglesas de poemas escritos por Yiannis Ritsos quando ele estava em campos de prisioneiros e em prisão domiciliária durante a época da junta militar na Grécia na década de 60 e no início da década de 70. Ocorre-me que, em todas as coisas, é difícil evitar a noção de conflicto; ocorre-me que sentir isso pode ser uma tendência humana inescapável.

Que guerra, e a sombra da guerra, pareça cruzar o meu trabalho não me surpreende; a poesia é o meu modo de interpretar o mundo. Contudo, os quatro longos poemas que formam, por assim dizer, a espinha da minha colecção Canções do Fogo, dão relatos diferentes mas relacionados de uma guerra mais aterrorizadora e destrutiva do que conflictos armados. A primeira Canção do Fogo refere-se a Anne Askew, uma mártir protestante que foi queimada numa fogueira por heresia. A voz de Anne, na minha versão do seu martírio, é profética. Num encontro num sonho com Anne, o narrador do poema está perto das chamas que a envolvem, e diz:

... a única coisa que me consegue dizer através da fornalha, enquanto
me inclino para ela, é
sim, será fogo, será fogo, será fogo...   

A profecia de Anne Askew fala de uma guerra em que somos todos combatentes, onde não há linha da frente, e de onde não parece haver retirada. É a guerra à natureza.

***

Essa guerra está em curso há muito tempo. A 14 de Agosto de 1912 um jornal na Nova Zelândia imprimiu um artigo em que avisava sobre o efeito de queimar carvão no clima da Terra. Isto foi ignorado. O livro de Rachel Carson Primavera Silenciosa foi publicado cinquenta anos mais tarde. Referia-se ao uso irresponsável de pesticidas e ao efeito sobre a vida das aves: o título fala por si. De novo, ignorado. Vinte anos ou assim depois disso, eu assisti a uma série de conferências que se concentravam em momentos de viragem que nos trariam a uma circunstância quando o aquecimento global se tornaria crítico. Ignoradas, elas também. E agora esse momento chegou. O mundo natural, a vida no planeta terra, ainda sob ataque, está perigosamente perto de se tornar insustentável. Não poderíamos ter chegado a esta crise na natureza, e continuarmos a ignorá-la, se não tivéssemos perdido noção da natureza, com as criaturas da terra, com a própria terra.

James Lovelock propôs a hipótese de Gaia: que o planeta que habitamos, e as criaturas com que o partilhamos, formam um sistema interdependente, harmonioso e benigno. A aparente recusa da humanidade de permitir a sua harmonia, de ser parte dela, parece advir da noção de que ela deve servir as nossas necessidades, de que pode ser explorada como e quando escolhemos. Não permanecemos, como deveríamos, espantados diante dos mistérios subtis do mundo natural.

Atraem-me as imagens de pássaros em pleno voo. Atraem-me particularmente aves de rapina. Escrevi um poema – Beth de Bowland – sobre um tartaranhão-azulado (uma espécie protegida) ilegalmente abatido numa charneca de perdizes. O negócio de luxo de matar perdizes em série, forçando-as a levantar voo, não tolera predadores naturais: mais provas de dano na nossa relação com a natureza. Atrai-me a lebre, o mito e a lenda da lebre como metamorfa, familiar da bruxa, a sua história cultural, a criatura viva como encarnação desses mistérios. Escrevi uma sequência de poemas – “Lepus” – que identificava a lebre como uma figura ardilosa que, num poema intitulado “Lebre como mau presságio,” prevê um futuro sombrio se as provas da destruição do ambiente continuarem a ser ignoradas. A lebre fala:

... estas coisas que, não importam
os vossos sinos e velas, não importam as vossas meias-
medidas, os vossos passos atrás, hão-de vir, hão-de vir,
hão-de vir. 

Só agora reparo que o último verso, escrito doze anos antes, tem o mesmo padrão rítmico da profecia de Anne Askew.

A perseguição de tartaranhões-azulados colocou essa ave entre as nossas espécies mais ameaçadas. A destruição de habitats é a causa da severa diminuição da população das lebres do campo; e a caça ilegal de lebres com cães continua ainda. A ameaça a estes animais em particular é, para mim, particularmente emblemática; mas a lista de animais quase extintos é longa. O declínio dessas espécies danifica o ecossistema irrevogavelmente. Isto inclui os insectos. Se os polinizadores morrerem, morreremos nós. Estas ameaçadas são criadas pelo homem. Colocámo-nos, a nós, entre as espécies em risco. O nosso ataque à natureza parece por vezes análogo a um desejo de morrer.

Há várias décadas, as companhias de combustíveis fósseis fizeram as suas próprias avaliações do efeito ambiental do dióxido de carbono na atmosfera. Os seus cientistas concluíram que queimar combustíveis fósseis “causará efeitos ambientais dramáticos,” e acrescentaram que o problema potencial é “grande e urgente.” As suas opiniões foram suprimidas pelas companhias que eles representavam. Cientistas que estudam o planeta têm sido, desde há anos, claros acerca do que aconteceria se a guerra ao planeta continuasse. Diz-se que estamos a meio da Sexta Grande Extinção; é inegável que isto é completamente causado por actividade humana; pouco ou nada tem sido feito para abrandar ou prevenir o seu avanço. Porquê?

É aparente indiferença à extinção no Holoceno a humanidade a aceitar, de facto, que é demasiado tarde? Que o modo como o mundo funciona não pode ser modificado, embora saibamos como isso pode ser feito ou, pelo menos, começar a ser feito? Que à medida que os últimos animais, peixes, insectos, desaparecem da terra, continuaremos a assistir à televisão, torcer pelas nossas equipas de futebol, entrar em aviões, ouvir, fazer compras, celebrar o nascimento dos nossos filhos... Linhas de produção irão continuar – até à última centelha de energia – a fazer carros, frigoríficos, ares-condicionado? Madeireiros hão-de chegar ao último grupo de árvores na floresta tropical? Quintas de produção intensiva hão-de continuar a engordar o seu gado, e os matadouros a matar? 

Ao escrever uma carta à Europa – e eu considero-me europeu, apesar do desonesto interesse próprio que encontrou eco nas tendências xenófobas e racistas no meu país e causou o Brexit – penso particularmente nos sistemas de governança europeus. Pode ser, como por vezes é dito convincentemente, que o mundo seja governado por homens malevolentes; que a ganância e o poder andam de mãos dadas; que a história humana mostra indícios de ciência irresponsável rapidamente seguida de tecnologia irresponsável. Mas tal como a ciência, a tecnologia e – crucialmente- o dinheiro para abrandar e parar o que só pode ser descrito como a morte térmica do planeta, tem de haver, entre essas pessoas que têm poder e influência governativas, umas quantas que consigam ver a beira do precipício em que estamos. O meu apelo ou, melhor, o dos que estão por nascer, é para o mundo. Mas esta carta é para a Europa.

A profecia de Anne Aske era, como todas as profecias, uma visão: uma visão negra, como são as minhas quando considero os relatórios da frente ambiental. Uma visão que, a cada dia, tento deixar de ver é a de um planeta esvaziado de toda a vida, onde um ecrã alimentado a nada exceptuando um vasto resíduo de ganância continua a registar o aumento sem limites na riqueza colectiva das elites passadas de um mundo desaparecido, o nosso único legado, enquanto o dinheiro gera dinheiro gera dinheiro.

Apenas quem governa pode fazer com que estas visões se esbatam. Esta é uma carta à Europa mas, em particular, àqueles que governam a Europa. Tem de haver uma mudança significativa e muito em breve. Alguém tem de assumir a responsabilidade – alguém que tenho o como e a vontade. Não tenho conselhos, nada a acrescentar ao que aqui escrevi. Exceptuando, talvez: observem os vossos filhos a dormir, observem os vossos netos enquanto eles dormem.

Declínio do possível, café filosófico

Gilles Deleuze, antes de 1956, por michel tournier

No dia 18 de novembro houve mais um café filosófico na livraria Snob, em Lisboa. Deixo aqui o texto de apresentação e o áudio.

«No próximo Café Filosófico, mistura sustentável de conceitos e de postulados do quotidiano, falaremos sobre o possível, ou melhor, as categorias, filosóficas e não filosóficas, do possível. Se quisermos traduzir este último sintagma numa linguagem mais militante, talvez possamos escrever a seguinte pergunta: terá o mundo, agora totalmente fabricado por nós (Antropoceno), esgotado os possíveis, como quem esgota um qualquer recurso natural?

Evocaremos, e invocaremos, Gilles Deleuze, um filósofo do possível, porque trabalhou este conceito perspetivicamente, analisando-o, e usando-o, a partir de vários ângulos, acompanhado por Kierkegaard, Bergson, Nietzsche e, entre outros, Tournier. Inscrevendo-o na arte e na filosofia, mas também, sem gritar, na política. Daremos conta do filósofo do futuro nietzschiano, cuja obrigação é construir possíveis que intensifiquem a vida, o viver; bem como da intuição do autor, originada em parte na filologia, sobre como a vingança anula os possíveis que propõem um futuro sem ressentimento. Michel Foucault, num livro editado há pouco tempo em França, Le discours philosphique, também defende, ele que se interessou mais pelos sistemas das ideias e dos pensamentos, que a filosofia serve essencialmente para inaugurar o futuro.

Discutiremos igualmente as modalidades éticas que exigem uma responsabilidade pelo futuro, e com isso uma prudência na inauguração de possibilidades que, como na hybris grega (essa embriaguez desmedida, que autoriza, ou força, as maiores transgressões, como a de Édipo), seriam desafios demasiado pesados, ou simplesmente sopros estéreis, para as futuras gerações. Tanto mais difícil quanto a inflação narcísica atual (vivemos também no egoceno) forjou o quase conceito de síndroma de hybris, uma patologia que infeta cada vez mais pessoas, com muito ou pouco poder, bastando-lhes acreditar que, num determinado momento, são todo-poderosos.

Terminaremos com o estado da arte da utopia, desses não lugares onde cabem todos os possíveis.»

O mundo dentro

Ilustração de Yiannis Kotinopoulos

Tradução de Tatiana Faia

Ontem foi o dia
Em que me esqueci de regar as flores e deixei
Que a roupa suja imaginasse
Uma nova cor na minha fonte. 

Não posso dizer ao certo se foi
No princípio ou no fim da semana
Embora me tenham ensinado a diferença
Entre os dias e a importância
De te ligares cuidadosamente ao presente
Com fios impalpáveis. Mas deixei
O pão no forno e ainda não havia
Ninguém que eu conhecesse nas urgências
Não me bateram de súbito à porta, só ramos
Da árvore no quintal intrometendo-se pela janela
E um cheiro a queimado comestível para ninguém. 

Havia um mundo dentro da minha casa como um espinho
Cravado na pata da raposa
Ganindo, coçando-se, chorando, arranhando, e por
Causa do mundo esqueci-me de mim
E lambi o mundo na minha carne
Duramente com uma língua dura tentando
Não deixar o seu fluxo de xarope exalar-se.


The world within

Yesterday was the day
I forgot to water the pots and I let
The laundry clothes imagine
A new color in my fountain.

I can’t say for sure if it was
The beginning or the ending of the week
Though I have been taught the difference
Between days and how important it is
To attach yourself carefully to the present
With impalpable threads. But I left
The bread in the oven and still there was
No one I knew in the emergency room
No sudden knocks on my door, only branches
From the backyard tree intruding through the window
And a burnt smell nobody could eat.

There was a world inside my house like a thorn
That is stuck in the paw of the fox
Whining, itching, crying, scratching, and for
The world’s sake I forgot myself
And I licked the world in my flesh
Hard with a hard tongue trying
Never to let its syrupy flow exude.

Amar os intelectuais

Jürgen Habermas, 2002

Cruzamos várias ideias ao longo do dia, por vezes numa tensão agónica, outras com um grande potencial de fusão, a fusão amorosa dos conceitos.

A meio da semana, li no último livro de João Barrento, Aparas dos Dias. A escrita na ponta do lápis (espero fazer uma recensão em breve), um texto de 2007 sobre «As Palavras Aladas». Duas ideias: nunca tivemos, nem teremos, um Robert Musil, nem «uma sociedade moribunda, estagnada e viciada, com um fabuloso potencial de criação cultural, não radical, mas capaz de assimilar tradições e com elas dar grandes saltos em frente.» Como era o caso de Viena e dos seus judeus assimilados. Em Portugal, a cultura («todo o universo do simbólico e dos modos de “produzir sentido”») trivializou-se, «assiste-se a uma hostilização generalizada do pensar, a arte é vista como puro negócio, pelo menos para aqueles que a compram sem saber bem porquê». (Este «sem saber bem porquê» é delicioso). A segunda ideia, causa e consequência da primeira: estamos a perder a capacidade de escrita, e com isso esvai-se a «possibilidade de estruturar o pensamento e dar forma à imaginação.»

Entretanto, o El País traz hoje um artigo sobre Jürgen Habermas («Jürgen Habermas: el gran pensador y su assalto a la cumbre de la filosofia». É laudatório (como escrever de outra forma sobre Habermas? Creio que nem Sloterdijk consegue, agora, fazê-lo, quando se é demasiado grande as críticas só surgem post-mortem) e informativo (Habermas está a escrever Auch eine Geschichte der Philosophie, Também uma História da Filosofia, e sai agora o primeiro tomo em tradução castelhana)[1]. Para o articulista, Habermas é um filósofo alimentado pelo intelectual, pela sua veia polemista e por estar pronto a debater qualquer assunto. Como Michel Foucault, é um pensador do «agora», capaz não apenas de discutir o que é visível (a guerra na Ucrânia, por exemplo) como o que abana o mundo mas é relativamente invisível, o passado nazi da Alemanha, o seu próprio inclusive. Tudo saído da crença de que uma boa ética do discurso (da discussão, que almeje uma intersubjetividade assente na procura da verdade) permite um entendimento mútuo. Crença entretanto dinamitada pela proliferação de fake news e a reativação, nostálgica e utópica, dos regimes políticos autoritários.

Mas o que mais me interessa, é a ideia de que a Alemanha ama os seus intelectuais (percebo o risco e a inexatidão de dizer que um país, ou melhor, uma cultura ama os seus filhos), Habermas talvez em primeiro lugar, mas também Peter Sloterdijk, Rüdiger Safranski, Wolfram Eilemberger ou Byung-Chul Han. Como os franceses amaram Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Michel Foucault ou Albert Camus. E este amor, forma extrema de emulação, estrutura pensamentos e dá forma à iamginação. Não vejo, aliás, outra maneira de educar um povo, educá-lo para o profundo e para o subtil, sem ser através das ideias produzidas nas alturas onde vivem os maiores (bem sei que reverbero o pensamento da genialidade de Friedrich Nietzsche e de algum Romantismo, mas ou é isso ou é uma educação de massas assente nas pequenas narrativas, repetitivas e imprecisas, muito mais preocupadas em manipular do que em informar, que os meios de comunicação dominantes atiram para cima de todos quantos se baixam, ou, a terceira via que mais me entristece, uma escola que simplificou tanto os conteúdos, que se viciou tanto no banal, que se tornou intelectualmente tão pobre que ninguém que tenha lido um livro quer ser professor, votada ao imperativo acrítico de certificar em massa, usando todos os truques possíveis para alcançar o «sucesso educativo»).

A Alemanha ama os intelectuais e nós não amamos. Temos, aliás, logo à partida, preconceitos bem afiados contra eles. O pior de todos, porque é injusto e entrava tudo, é julgar que não conhecerem a realidade. São seres da metafísica, são seres na metafísica, são seres pela metafísica, diz-se à boca cheia. É verdade que o seu discurso difere do do quotidiano, assim deve ser. Mas eles pensam e falam, escrevem, sobre a realidade, ou melhor, as realidades. Usando mais recursos linguísticos do que é habitual, um encadeamento contínuo de proposições (contra a fragmentação vigente), por vezes socorrendo-se de criações conceptuais, citando muitos dos que antes deles pensaram da mesma forma, usando mais adversativas do que a moda do «discurso assertivo» recomenda… Mas eles pensam as realidades, o agora, multiforme, que resulta e condiciona as nossas ações, o agora que conduz grande parte do que pensamos e da forma como pensamos. Eles são, em boa verdade, muito mais realistas do que os não intelectuais.

Amemo-los, pois, por eles e por nós. Por um país e uma cultura que quer retomar um processo de emancipação individual sem cair no individualismo. Pela alegria insubstituível de descobrirmos um conceito que irá esclarecer uma parcela do quarto escuro que nos impede de dizer, «caramba, isto é mesmo belo!». Amemos João Barrento, José Gil, Maria Filomena Molder, Eduardo Lourenço (que continua vivo), Eduardo Prado Coelho (idem), amemos António Guerreiro (eu, com reservas), Viriato Soromenho Marques, Gonçalo M. Tavares, Pedro Mexia… Amemos todos aqueles que ensaiam pensar e lançam faíscas que iluminam o mundo. Aqueles que sabem sair de órbita sem se perderem e trazem as revoluções (no duplo sentido, cosmológico e político) que permitem «dar saltos em frente».

 

[1] Deixo-vos a nota de Nicolas Weill para o Le Monde, aquando da saída do segundo tomo em tradução francesa: «Nos últimos vinte anos, Jürgen Habermas tem dedicado os seus escritos a explorar os “conteúdos de verdade” que, na sua opinião, são veiculados pelas relações de fusão ou tensão entre fé e razão. Daí a exploração empreendida em Uma História da Filosofia, cujo primeiro tomo foi publicado em 2021, e eis agora o segundo. Depois de ter centrado o seu estudo na Idade Axial (cerca de 800-200 a. C.) — período em que o sagrado confluiu simultaneamente com a moral em várias partes do mundo (de que os Dez Mandamentos são a ilustração mais marcante) — e de se ter interessado pelo pensamento medieval, o filósofo analisa, neste novo volume, a rutura que, de Martin Luther aos “jovens hegelianos”, Ludwig Feuerbach, Karl Marx e o dinamarquês Soren Kierkegaard, levou à constituição de um “direito da razão” moderna.»