Livros Porler

Passo por uma estante, depois por outra, à procura de um livro. Talvez esteja na mesa de cabeceira ou nas prateleiras que enquadram a minha querida máquina digital — uma delas, não vá esta emancipar-se. Nada. Sinto, como quem pensa, que é no céu que tocamos quando mexemos num livro (Cesariny dizia «num corpo»). E agora estou privado dele. Não que não tenha muito porler, mas era precisamente esse, que não encontro, que contém a palavra-passe do mundo das ideias. Desisto. Um sábio, não eu, também lê livros, mas pode passar bem sem eles.

Decido, numa espécie de vingança suave, que vou buscar outro, um dos muitos que estou a ler ou tenho para ler. Alguns permanecerão invioláveis (na segunda virgindade que adquirem ao irem parar às mãos do putativo leitor), a escrever para dentro. Outros estão em fila de espera, ainda intocados (salvo para os marcar com uma assinatura afetiva, seguida do ano e mês) ou a meio, um terço, três quartos, poucas ou muitas páginas, romance, poesia, ensaio, filosofia. Outros, ainda, em releitura, como a magnífica República de Platão ou a brilhante e, para os ouvidos actuais, parcialmente incompreensível Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant.

Há quem, dizem-me, sinta a angústia do não-lido. Outros, a do porler. Quando, como no porvir, isso devia ser a porta aberta para a aventura. Devia conjurar em vez de angustiar. Sobretudo agora que o lazer abandonou as ruas para se tornar doméstico. Agora que acumulamos amigos e seguidores sem experimentarmos nunca o encontro com alguém diferente. Na época da autoexploração por excelência (Byung- Chul Han). Na época do aluvião de publicações que não conseguem diminuir a esterilidade.

Eu, meio a fingir, meio a sério, sinto uma bela emoção estética (mais no corpo do que na faculdade do juízo) quando passo pelos livros porler. Como em Kant, mutatis mutandis, não haverá muitos conceitos para descrever esse prazer ou essa alegria. Mas não me enganarei muito se disser que prevejo que serei incendiado, uma e outra vez.

Qual é a lista actual das minhas alegrias porvir?

Nathalie Heinich, Le paradigme de l’art contemporain. Structures d’une révolution artistique. Gallimard, 2022.
Anne Carson, Sobre aquilo em que eu mais penso, trad. Sofia Nestrovski editora 34, 2023 [1950].
Byung-Chul Han, A Crise da Narração, trad. Gilda Lopes Encarnação, Relógio D’Água, 2023 [2022]. Restam umas magníficas 10 pp.
Louis-Ferdinand Céline, Castelos Perigosos, trad. Clara Alvarez, E-Primatur, 2025 [1957].
Arturo Leyte, Heidegger. El fracasso del ser, Shackleton Books, 2024 [2015].
João Barrento, Walter Benjamin. A Sobrevida das Ideias, Saguão, 2022.
Timothy Snyder, On Freedom, Random House, 2024.
Montaigne, Ensaios III, trad. Hugo Barros, E-Primatur, 2024.
Boris Graoys, Staline, Oeuvre d’art totale, Jacquelin Chambon, 1990.
Jenny Erpenbeck, Kairos, trad. António Sousa Ribeiro, Relógio D’Água, 2024 [2021]. A conter-me, para não terminar demasiado depressa.
Silvina Rodrigues Lopes, A Anomalia Poética, Língua Morta, 2023.
Benjamín Labatut, Um Terrível Verdor, trad. Guilherme Pires, Elsinore, 2024.
Daniel Chandler, Liberdade e Igualdade. O que será uma sociedade justa?, trad. Pedro Elói Duarte, Presença, 2024 [2023].
Bernard Edelman, Nietzsche. Un continent perdu, PUF, 1999.
CristopheBouriau, Kant écologiste, PUF, 2024.
Electra 27, inverno 2024.
Tatiana Faia, recurso e pobreza, Tinta da China, 2025. Para decrescer, sabendo que não nos podemos suicidar numa piscina se soubermos nadar bem, e que nem o maior dos sábios, que, acreditando nesta possibilidade, se torna o mais pequeno dos sábios, poderá explicar o que se passa numa rua que expulsou a classe média com os lamentos da pobreza.

A Montanha Mágica e o Escândalo da Distância

A Montanha Mágica e o Escândalo da Distância

No seguimento do último café filosófico dedicado à Montanha Mágica de Thomas Man, teremos, desta vez, na livraria Snob, em Lisboa, o prazer, cognitivo e estético, de contar com a presença do autor de O Escândalo da Distância. Uma Leitura D’A Montanha Mágica Para o Século XXI, João Pedro Cachopo.

Regressamos, sem qualquer retromania, a uma das obras mais importantes da cultura alemã, a qual, contudo, é capaz de se elevar muito para lá das fronteiras dessa mesma cultura. É por isso que continua a dar a pensar a leitores de muitas regiões da Terra, continua e continuará, com o seu fulgor quase suspeito. É difícil imaginar, apesar do embrutecimento que nos assola, o desvanecimento D’A Montanha Mágica, pois trata-se de uma portentosa arte do romance: narrativa repleta de apontamentos filosóficos; um fresco acerca do retorno cíclico do dionisíaco bárbaro; um ensaio sobre o tempo e o ente, sobre a morte e o morrer, sobre a paixão («um amor que vive na dúvida»), sobre a admiração, sobre a técnica; um exercício de esclarecimento, quase militante, acerca de forças políticas progressistas e reacionárias, ambas revolucionárias, ambas com vocações obscuras; um arquivo do ridículo; uma força de emancipação; um neopaganismo incapaz de apaziguar «a grande exasperação»; tudo isso entre um tédio que eleva e outro que rebaixa.

Em O Escândalo da Distância, João Pedro Cachopo interpreta a obra de Mann a partir da tese de que se trata de um «romance filosoficamente pertinente», pois questiona a condição de possibilidade da própria filosofia — que, para o nosso ensaísta, reside na boa distância, a qual só pode ser encontrada na planície, e não na montanha. Após abordar os grandes temas do romance, Cachopo reflete sobre A Montanha Mágica como um romance sobre o tempo, sobre o seu tempo (Zeitroman) e sobre o nosso tempo. Conclui o ensaio com uma hermenêutica assumidamente pessoal, que questiona a atualidade, as forças da graça e da desgraça que a atravessam, os compromissos éticos e políticos que se impõem e a busca da boa distância, tanto epistemológica como empática. Trata-se, além disso, de um ensaio que quis afastar duas personagens conceptuais: o militante («que sempre já sabe de que lado está») e o esteta («para quem nunca há motivo para se comprometer com um mundo cruel e vulgar.»).

A Montanha Mágica e os signos

A Montanha Mágica (título original em alemão: Der Zauberberg) é um romance publicado em 1924 por Thomas Mann, escrito entre 1912 e 1923, após a estadia da sua mulher, Katia, em 1911, no sanatório de Davos, na Suíça. É considerada uma das obras mais importantes e influentes da literatura alemã.

Situado no início do século XX, o livro relata a experiência singular de Hans Castorp, um jovem engenheiro oriundo de uma família de comerciantes de Hamburgo, que, em 1907, visita o seu primo Joachim Ziemssen, militar com «olhos meigos», em tratamento no sanatório Berghof, na estância alpina de Davos. O jovem hamburguês, após lhe ser diagnosticada uma pequena infeção tuberculosa, é aconselhado a prolongar a sua estadia para além das sete semanas inicialmente previstas, que se transformam, afinal, em sete anos. Durante esse período, Hans imerge e adequa-se ao microcosmos das «pessoas lá de cima». Um fresco meio heteropático do mundo cosmopolita da época.

A sua permanência no sanatório, sob a direção do consultor Dr. Behrens, leva-o a conhecer uma galeria de personagens que, no seu conjunto, parecem compor o Zeitgeist da época: Lodovico Settembrini, um italiano maçon e defensor da Razão e do Progresso; Léon Naphta, um místico noviço jesuíta e implacável crítico da sociedade burguesa capitalista e do princípio aristotélico da bondade racional; Mynheer Peeperkorn, um hedonista carismático, e a sua companheira Clawdia Chauchat, uma figura livre das convenções, descrita como uma possível femme fatale, por quem Hans Castorp se apaixona, evocando a memória erótica de um amigo de escola de Lübeck, Pribislav Hippe. Entre outras figuras marcantes, destaca-se também o Dr. Krokovski, assistente de Behrens, inclinado para a psicanálise e prolífico conferencista sobre temas como a relação entre o amor e a morte.

Talvez um Bildungsroman, A Montanha Mágica narra os sete anos que moldam Hans Castorp, ao longo dos quais ele reflete e aprende sobre o amor, a morte, o tempo, a amizade, a doença, o tédio, o ódio... Aprende também que a morte não deve vencer a vida, talvez uma aprendizagem frustrada, sistematicamente frustrada.

Neste café filosófico, propomos pensar, inspirados pela abordagem de Gilles Deleuze em Proust et les signes, quais os signos principais que estruturam esta obra de Thomas Mann e de que forma contribuem, interna e externamente, para a constituição de aprendizagens. O que aprende Hans Castorp? E o que aprendemos nós, leitores, ao acompanhar a sua trajetória?

Esta reflexão também nos permitirá preparar o café filosófico de fevereiro, no qual teremos a honra e o prazer de acolher o autor do ensaio O Escândalo da Distância. Uma Leitura d’A Montanha Mágica para o Século XXI, João Pedro Cachopo.

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Dar a Pensar

«O que força a pensar são os signos», afirma o filósofo francês Gilles Deleuze em 1964 no livro Proust et les signes. Prossegue com «Aquele que busca a verdade é uma pessoa ciumenta que deteta um sinal enganador no rosto da pessoa amada. É o homem sensível que se depara com a violência de uma impressão. É o leitor, o ouvinte, na medida em que a obra de arte emite sinais que talvez o obriguem a criar, como o apelo do génio a outros génios. As comunicações de uma amizade tagarela não são nada comparadas com as interpretações silenciosas de um amante. A filosofia, com todo o seu método e boa vontade, não é nada comparada com as pressões secretas da obra de arte. A criação, tal como a génese do ato de pensar, parte sempre de signos. A obra de arte nasce dos signos tanto quanto os faz nascer; o criador é como o intérprete ciumento e divino que vela pelos signos nos quais a verdade se revela.»

Deleuze foi o primeiro a abordar filosoficamente a obra de Proust, fascinando-se e interessando-se pelos signos que revelam o que é o tempo, o abandono, a vaidade, a frivolidade, o egoísmo, o amor… À la recherche du temps perdu dedica-se mais, segundo ele, à inteligência do que à memória, trata-se de uma espécie de Bildungsroman, uma longa viagem de aprendizagem autorreferente, na qual, a par das descobertas do narrador sobre o sentido da vida na arte e na literatura, o próprio romance aprende a ser romance — algo a que não é alheio o exercício obsessivo de revisão. Por isso, la recherche deve ser lido como um jogo de signos que contém, quase secretamente, uma lógica dos signos, ou seja, uma lógica do sentido (Deleuze publicará Logique du sens em 1969). Não se trata de todo o sentido, bem entendido, mas de uma vasta parcela dos sentidos possíveis, compostos pela multitude quase pletórica de signos emitidos pelo romance. Aprender — que Deleuze gostava de descrever como uma tarefa de egiptólogo antes da descoberta de Champollion — consiste, então, em decifrar e interpretar signos, mesmo aqueles emitidos pelo não-dito.

Com esta perspetiva, Deleuze, o filósofo Deleuze, deixa bem claro que não há qualquer privilégio epistemológico inerente à filosofia. Tudo emite signos: as conversas banais do dia a dia, os filmes, as pinturas, os romances, a poesia, os animais, a natureza… E todos esses signos «dão a pensar» (expressão que Deleuze recupera em la recherche), pois são forças que investem o pensamento, nele penetram e produzem fulgurações luminosas. Luzes que aquecem, luzes que queimam, luzes que esclarecem, luzes que cegam.

Esta teoria dos signos desvaloriza a tradição filosófica do fundamento e do método, as linhas alemã e francesa, respetivamente. Os signos são instáveis e raramente funcionam isoladamente. Talvez por isso Deleuze tenha afirmado, numa entrevista a Claire Parnet, que «O interessante é o meio, não o início ou o fim». Ou, nas palavras de Jean-Luc Godard, «Pas d’image juste, juste des images» (traduzido, o meio desaparesseria). Assim, perde importância, mas não a beleza, o verso de Les fleurs du mal: «No fundo do Desconhecido para encontrar o novo!». Seja esse fundo «Inferno ou Céu».

No próximo ano, dediquemo-nos à potência do meio, deixando de lado os abismos do começo e do fim, tal como faz, de forma admirável, um órfão voluntário — que vive como um deus imperfeito entre os homens. Levemos a sério a máxima nietzschiana de sermos sempre outrosdu bist immer ein Anderer»). Para isso, basta cultivarmos uma arte da inservidão voluntária.

Revista Fluir 14, Aventura

Acabou de nascer mais um número da importante e belíssima Fluir, uma forma de percorrer o mundo sem erodir as alteridades nem inundar os territórios dos pirilampos. Fluir é estar com, numa época em que parece que tudo está contra.
Um dos textos é o meu ensaio (continuo a inspirar-me no estilo de Montaigne) sobre a aventura do pensamento vivo, que talvez valha, sobretudo, pela magnífica epígrafe de Ruy Belo.

A aventura do pensamento vivo

«É triste ir pela vida como quem

regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro.»

Ruy Belo, verso do poema «A Mão no Arado», in Todos os poemas

 

Sempre que alguém me diz que «falta rigor» ou «é preciso rigor», respondo, com uma piada que contém uma teoria: «certamente, mas evitando o rigor mortis». Este último tipo de rigor não se afasta um milímetro do já conhecido, testado, consolidado, esgotado. É exercido com a rigidez intransigente de uma verdade que olha apenas para o passado, não para renová-lo, mas para venerá-lo. Venerar o que foi, como foi e porque foi. Contudo, o passado vivo não se deixa aprisionar tão facilmente, embora o clube dos rigorosos acredita que sim.
Se julgam que estamos a jogar o jogo das dicotomias fáceis — de um lado os hermeneutas maus (veneram um passado simplificado), do outro os hermeneutas bons (revolvem o passado e  projetam-se no futuro) —, desenganem-se. Aliás, talvez devêssemos viver assim: desenganando-nos, enganando-nos e desenganando-nos de novo. O incandescente George Steiner (iluminou tantos dos meus pensamentos com a sua benigna erudição rebelde!) guia-nos no In Bluebeard’s Castle (No Castelo do Barba Azul, Relógio D’Água) para algumas interpretações claramente conservadoras — ele que se assumia, à semelhança de Peter Sloterdijk, como um «conservador vanguardista». Para Steiner, trata-se de conservar o mistério do humano, de manter fechada a última porta do castelo. Não porque dê acesso às anteriores esposas sequestradas do Barba Azul (na interpretação de Béla Bartók), fruto de uma libido insaciável que desbarata e consome sistematicamente os compromissos nupciais, mas porque, neste caso, essa porta pode abrir para o quarto onde o genoma humano se mantém conservado e irreconhecível (o livro é de 1971). Contudo, será apenas uma questão de tempo. A nossa «obsessão heurística», como lhe chama Steiner, acabará por escancarar tudo. Abriremos essas portas «porque é o mérito trágico da nossa condição abrir portas.» Mesmo vivendo, ainda segundo este autor, numa «pós-cultura», em que não se lê, ou se lê mal, em que a música erudita deixou de ser ouvida ou em que o pathos matemático se reduziu ao mínimo. Bem sei que o conservadorismo de Steiner é composto de forças inovadoras, mas isso não o impede de criticar a curiosidade invasiva, talvez a mesma que constituiu a húbris de Édipo, e certamente a que hoje elevou a transparência a valor de referência (e que Byung-Chul Han tão bem critica n’A Sociedade da Transparência). Transformamo-nos, lenta mas inexoravelmente, em seres sem mistério.
Na primavera de 2021, a revista Electra dedicou o seu dossier à curiosidade. São páginas instrutivas e fulgurantes. Primeiro, o clássico: a filosofia, momento originário do livre pensamento — quase ainda sem espíritos livres —, para Platão e Aristóteles, nasceu do espanto, do assombro. É essa a lição que nos trazem o Teeteto e a Metafísica. Mas há também um clássico oposto: «Por causa desta doença da curiosidade, exibem-se nos espetáculos as coisas mais prodigiosas. Daqui passa-se à indagação dos segredos da natureza, que estão fora do nosso alcance e que não há nenhum proveito em conhecer.» (Santo Agostinho, Confissões) Nada de novo em Santo Agostinho: do final do Império Romano até ao Renascimento, a curiosidade foi invariavelmente malvista. E mesmo em pleno Iluminismo, a entrada da Encyclopédie considera a curiosidade como louvável ou condenável, dependendo dos objetos e das finalidades a que se dirige. Ainda hoje, aliás, the curiosity killed the cat.
Interessou-nos trazer aqui duas notas sobre a curiosidade, pois ela é o ponto de partida para a aventura, um começo que nos permite saltar para as margens da normalidade e, no fundo, goste-se ou não da palavra, para a marginalidade. A aventura que daí pode (realço o condicional) advir, usando o impulso inicial da curiosidade, consegue, depois, sobreviver sozinha, percorrendo caminhos de descoberta de si, de outrem e do mundo.  A partir de agora, quando falarmos de aventura, saberão que é ontologicamente composta por uma parcela de curiosidade, condição necessária, mas não suficiente da aventura. Saberão também que temos em mente aquilo que Gilles Deleuze disse a Claire Parnet nos Dialogues: «o interessente é o meio, não o início ou o fim». E aquilo que Marcos Foz declara, prolongando a ontologia aberta de Deleuze, ao discorrer sobre os limites de um diário: «e sim, cartografar o futuro, mas entra-se sempre a meio de um caminho.» (Enublado Dizes, p. 44). E, para finalizar com uma inquietação pessoal: a devoção que prestamos à vertigem horizontal.
Mas, no meio das tendências, observadas e catalogadas — seja pela história, sociologia ou psicologia —, há os eletrões livres, os cometas, os foras-da-lei. Recordemo-los para os homenagear, pois foram eles, aventureiros do pensamento vivo, que evitaram a petrificação do mundo. Para René Descartes (injustamente e redutoramente preso na cartilha do racionalismo), como ele próprio declara logo no início do magnífico Discurso do Método: havia chegado a hora de ler «no grande livro do mundo», tornando-se um viajante prolífico. Encontrar exércitos, frequentar homens de diferentes humores e condições, recolher as experiências que pudesse. Descartes aventurou-se no desconhecido porque não lhe bastava o que conhecia, nem o modo como conhecia. É verdade que as viagens não lhe trouxeram nenhuma ideia clara e distinta, mas foi essa aventura intelectual que lhe permitiu, mais tarde, focar-se no conhecimento das capacidades da razão; uma outra forma de aventura.
Para Blaise Pascal, «Nada é tão insuportável para o homem como estar em pleno repouso, sem paixões, sem ocupações, sem divertimentos, sem incumbências.» (Pensées) Mais próximo de nós, Vladimir Jankélévitch em L’Aventure, L’Ennui, le Sérieux, explica bem o que nos impele, o que o levou à aventura: «Por um lado, o terror do risco desconfortável ameaça a economia das nossas rotinas diárias; por outro, há um desejo louco de profanar um segredo, decifrar o mistério do futuro.» Esta ambivalência inebria. A liberdade vence a determinação, o novo vence o velho, a desconstrução vence a repetição. A conclusão a que podemos chegar é que devemos viver de forma a que haja sempre um pouco de vertigem, de aventura na nossa vida. E também aqui, em primeiro lugar, uma aventura do pensamento, mas um pensamento cheio de mundo. Cheio de caminhos sem Ítacas.
Tudo isto para chegarmos a Friedrich Nietzsche, que só pode ser considerado um ponto de partida. Chegarmos como se chega a um começo. Nietzsche não fechou nada, não fez mais do que distribuir verdades-relâmpago, por isso continua vivo, ao nosso lado, para nos ajudar a interpretar o humano, mas também a experimentar formas de sobre-humano.
Nietzsche viajou sempre pelo corredor central da Europa que liga o Norte (Alemanha) ao Sul (Itália). Naumburg, Bona, Leipzig, Bayreuth (circuito da sua proveniência cultural); Basileia, Lucerna (Tribschen) e a Alta Engadina alpina (sobretudo a adorada Sils‑Maria, no Cantão de Graubünden) na Suíça; Nápoles / Sorrento, Roma, Génova, Veneza, Turim, a Sicília (apenas uma vez), em Itália; Nice em França. No entanto, fez projetos bem mais aventureiros que nunca foram realizados: Paris, Córsega, México, Espanha, Polónia... Por curiosidade e necessidade, viveu uma parcela importante da sua existência imerso em paisagens naturais, percorreu-as e mergulhou o seu corpo, uma «grande razão», no seio desses corpos paisageiros. Caminhante compulsivo, deambulava várias horas por dia nas montanhas da Alta Engadina, ou nas cidades do sul da Europa. Essa disposição refletia também o desejo de romper com o velho estilo lógico-racional da filosofia, inventando uma nova escola peripatética, na qual o pensar seguisse ritmos e tópicos mais próximos de fluxos vitais originários. Durante as suas caminhadas, parava bruscamente, e com o joelho no chão grafitava um ou outro enunciado no caderno de notas.
Nietzsche contribuiu para a reabilitação filosófica do corpo, opondo-se ao «corpo-alienação» de Platão, «corpo-erro» de Descartes e Pascal ou ao «corpo-pecado» do Cristianismo. Com o auxílio de alguns lampejos de outros pensadores (Espinosa, com certeza, talvez um pouco de Rousseau), iniciou a aventura de abandonar o cogito, o solipsismo megalómano da razão, e regressar à Terra, pensando com ela, sobre ela e por ela. Um regresso que, verdade seja dita, ainda não foi totalmente consumado. Encontramos, criamos outras alienações, amamos outras intangibilidades. Vivemos agora mais para produzir e consumir, do que para pensar, sentir e passear. Contemplamos mais facilmente a nossa conta bancária do que uma paisagem. Frequentamos os gabinetes dos psicólogos como antes frequentávamos os confessionários. E quando viajamos vamos ver postais.
É por isso que o ouvimos dizer no «Prefácio» de Humano, Demasiado Humano I, § 4, enquanto discute a doutrina da grande saúde: «é precisamente o sinal de uma grande saúde [grossen Gesundheit], aquele excedente que dá ao espírito livre [freien Geist] o perigoso privilégio de poder viver por tentativas [Versuch] e de se entregar à aventura [Abenteuer]: a prerrogativa da mestria do espírito livre!» (a tradução é nossa, disponível nas Edições 70 no verão de 2025). Este «Prefácio» foi escrito em 1886 e integra a reedição do livro de 1878, início da sua segunda grande linha de aventura, depois dos anos d’O Nascimento da Tragédia (1872), da docência na Universidade de Basileia, da amizade com Richard Wagner e do patrocínio intelectual de Schopenhauer. Virão outras: as de Assim Falou Zaratustra, da Genealogia da Moral, de Ecce Homo. Mas não foi uma aventura de aperfeiçoamento (como queriam Kant ou Montaigne), antes uma traição. Trair-se para experimentar, tentar outra coisa, sem vislumbrar uma meta. Haverá maior princípio de aventura do que este? Uma traição que deve continuar, não faz sentido colocarmos Nietzsche no congelador académico. Cada leitor do filósofo errante deve traí-lo, experimentar plantá-lo, de estaca, noutros solos. A sua obra é um começo, ainda que não se descortinem os alicerces, um impulso, um trampolim, não um fecho ou um fim. Porque, como declara nesse mesmo «Prefácio»: «é o futuro que dá as regras ao nosso presente.» (§ 7)
E se a aventura se medir, como acreditamos, por essa abertura ao que está por vir, incógnita perfeita e poderosa, tomemos novamente as palavras do nosso autor e façamos delas, com o peso de um determinismo que, ainda assim, exige escolha, o nosso lema de vida: «Quem alcançou, mesmo que só num certo grau, a liberdade da razão não pode sentir-se senão um viajante na Terra — uma viagem, contudo, que não tende para uma meta: porque não as há.» (Humano, Demasiado Humano I, § 638).
Aconselhamos apenas, indo de Wilhelm von Humbolt a Robert Musil, passando, naturalmente, por Nietzsche, que assumam «a grande individualidade como força espiritual». Que saibam, assim, manter viva uma relação produtiva com o caos, conjurando-o e aproveitando-o. Vivendo, talvez, como sugerem bons leitores nietzschianos (Joyce, Deleuze e Guattari) num caosmos. Ou, para dar um toque contemporâneo à nossa análise, no work in progress de que fala James Joyce em Finnegans Wake.  

Victor Gonçalves

19/10/2024