Podcast Café Filosófico sobre a pós-verdade

Texto de divulgação: «No próximo café filosófico, discutiremos o problema da verdade. É um problema porque não é evidente que a verdade exista, o seu valor não é unívoco e, entre outras coisas, parece ter perdido o poder de cativar.

Recordaremos as críticas de Platão aos sofistas: um idealismo fundamentado na ideia de verdade — ainda que apenas acessível para alguns — contra o relativismo e a eloquência de um pragmatismo sofístico avant la lettre. Passaremos por Nietzsche e o seu perspetivismo, orientado por um desejo de veracidade que relativiza a verdade universal, incluindo a verdade científica. Continuaremos com os jogos de verdade e a parrésia — retomada dos cínicos gregos e de Sócrates — de Michel Foucault. Terminaremos com Claudine Tiercelin, uma filósofa francesa a meio caminho entre a filosofia continente e a filosofia analítica, e o seu último livro La Post-vérité, ou le dégoût du vrai (A Pós-verdade, ou o nojo do verdadeiro).
Nesse trabalho, Tiercelin apresenta algumas razões pelas quais muitos, atualmente, sentam repulsa pelo verdadeiro e indiferença pela verdade. Preferimos, diz a autora, acomodar a realidade (que é mais do que um conjunto de factos objetivos acessíveis individualmente) às nossas crenças, em vez do contrário. Por isso, negamos ou desvalorizamos a ciência, preferimos factos alternativos, consumimos fake news, tememos o que é sério, tornamo-nos impostores ou vítimas de imposturas. Em muitos aspetos, o mundo da pós-verdade difere do mundo orwelliano, mas, em ambos, rompe-se com as relações entre linguagem e realidade.
Para regressarmos ao reino da verdade, devemos, então, aceitar que há valores éticos nos valores epistémicos. Devemos reconhecer a importância de cultivarmos as virtudes epistémicas e, com Bertrand Russell, a necessidade de basear a política na verdade. Reanimar uma vontade de metafísica para esclarecer o sentido de realidade e enfraquecer o poder dos factos alternativos.»

Caminhar na floresta

Pombares, trás-os-montes, 2 de novembro de 2024

Caminhar. Imaginar uma República dos Viventes. Ter a noção e a coragem de nos sacrificarmos para nos igualarmos a um carvalho. Não basta abraça-lo. Muito menos cortá-lo e, depois, elogiar as brasas portentosas da lareira. É preciso respeitá-lo, como se respeita o vizinho da frente de quem gostamos. Ser um transfuga de espécie. Superar o humanismo, um dos poucos «ismos» imune à razão crítica, kantiana e pós-kantiana. Ninguém se preocupa com o seu grau de impostura.
«Obedece aos sentidos», dizia Feuerbach. Mais atual do que a atualidade, após um século e meio a venderem-nos a ideia de um progresso imparável. Há até quem se diga, sem qualquer sombra de dúvida, «progressista». Mais atual, dizia, do que a «exaltação do banal». Democratizar por baixo.
Numa floresta, depois da adaptação à potência da vida, experimenta-se uma vertigem horizontal. Sem esperança, sem receio. Um instante prolífico, mais vibrante do que perfurante. Um clarão, sim, mas um clarão lento.
A biodiversidade é quase só um conceito. «Meninos, vamos falar de biodiversidade». Como se fala da descoberta do fogo. Sabemos, desde sempre, que «Não é meia noite quem quer», mas por que razão amar os outros seres vivos como nos amamos ao espelho, aos espelhos, deve ser algo demasiado grande para nós?
Estamos obcecados pela economia da atenção: business, com certeza. Mas também uma forma de escapar ao apocalipse do vazio (À Espera de Godot). Em ambos os casos: «preparar-se para futuro nenhum».
Caminhar numa floresta, sem esperar alcançar uma clareira, ter a certeza de que o finito contém o infinito. Os anjos não descem do céu, emergem da Terra.
Esqueçamos a ode ao homem de Sófocles. Levemos às últimas consequências o evangelho negativo de Bartleby («I would prefer not to»). Como uma folha no outono, que, após o esplendor cromático, se transforma em estrume que fecunda a Terra.
E nós, dia após dia, a boxear no vazio. Como o guarda noturno do museu que desconhece o valor da coleção que vigia.
Os adolescentes, preocupados com o power dressing. Os adultos, viciados na economia do lamento. Pedro Mexia, interessado «pelo mergulho em si mesmo». Eu, a querer apagar o «mesmo». Polícia de pleonasmos.
Fernando Pessoa, a indisciplinar as almas. Marc Augé, a mapear «não-lugares». Derrida, que jogava ténis para se equilibrar no patamar social ao qual a sua filosofia poética o catapultou, definindo, com milhares de palavras, a sua «mythologie blanche». Eu, a admirar os franceses por resistiram à a(c)tualização da escrita. A imaginar, com Derrida a espreitar com cima do meu ombro, uma forma de escrever que não se relacionasse com a oralidade. Uma escrita que fosse o que era, e não o que significasse.
Eu a caminhar na floresta, cada vez mais fundo, cada vez mais pleno, cada vez menos eu. Como o mundo de um homem feliz é diferente do de um infeliz, escreveu o infeliz Wittgenstein.

Ponto de partida

Ludwig wittgenstein

Com um ponto de partida podemos conquistar o mundo, levantando-o, talvez. Arquimedes, Montaigne, Descartes, Nietzsche e Wittgenstein, entre muitos outros, procuraram essa mola que nos pode catapultar até ao céu, azul ou negro, tanto faz. É isto que esboço em menos de três minutos no podcast que se segue.

Um mapa da cidade

 Thom Gunn

Tradução de Tatiana Faia

 

Estou no cimo de uma colina e vejo
abaixo de mim um luminoso país onde revejo
que nele pelas duas tem o marinheiro ébrio de tecer;
a pausa transiente, o seu marinheiro desaparecer.  

Reparo, ao descer o olhar pela colina
em braços pousados numa janela de esquina;
E na teia de escadas de incêndio segundo as normas;
Move-se o possível, as cinzentas formas. 

Aí agarro a cidade, completa;
E cada forma de luz repleta
É minha, ou corresponde a minha,
Aquela intermitente aquela outra firme brilha. 

Este mapa é território do meu deleite.
Entre os limites, noite após noite,
Observo o avanço da doença que traz a morte,
Reconheço o meu amor da sorte. 

Vejo nas luzes recorrentes
Possibilidade sem limites,
O apinhado, estropiado e inacabado!
Por nada quereria esse risco mitigado.   


A MAP OF THE CITY

I stand upon a hill and see
A luminous country under me,
Through which at two the drunk sailor must weave;
The transient's pause, the sailor's leave.

I notice, looking down the hill,
Arms braced upon a window sill;
And on the web of fire escapes
Move the potential, the grey shapes.

I hold the city here, complete;
And every shape defined by light
Is mine, or corresponds to mine,
Some flickering or some steady shine.

This map is ground of my delight.
Between the limits, night by night,
I watch a malady's advance,
I recognize my love of chance.

By the recurrent lights I see
Endless potentiality,
The crowded, broken, and unfinished!
I would not have the risk diminished.