Fernando Pessoa no Rainha Sofia

Exposição de Pessoa no Rainha Sofia

Exposição de Pessoa no Rainha Sofia

Dois dos maiores agrimensores dos limites do humano. Limites que se encontram no centro e nas margens, os limites não são o excepcional, são o curto-circuito do banal. E foi isso que eles fizeram (um ainda faz), coleccionaram os gestos do quotidiano e enxertaram-nos com um pouco de metafísica e de utopia para os sacudir. Questão de verem cair na lama o pechisbeque que há séculos enfeita a ortodoxia. 

NAS MENTES DOS CAVALOS  ONDE É SEMPRE ÁSIA (Poema inédito)

Olho no rosto de meu pai
um rosto de pai chegado não faz  
mais de três, quatro
minutos ou horas ou tempo necessário  
que essa pista de pouso ataca e defende-se de forças. Das flechadas 

dessas forças em desvarios pelos ares, nos quartos, na passagem de uma  

rua à outra. 

Apresento-me àquela novidade
que perambula, responde aos chamados
vem na frente de um homem que traz no bolso  
uma carteira de couro velha e rasgada. Ali em 3x4 rostos que de tanto  

variarem, perderam o ponto de partida, seus nomes, estão todos roxeados. 

Fica um rosto de filho
vidrado num rosto inédito
e ao mesmo tempo já desaparecido. É ele eu sei que é, reconheço. Sou eu  

ainda
aquilo que a vida leva e traz. 

Este rosto ali costurando-se  
é o rosto do meu velho. 

Não nos conhecemos aquele rosto recém ancorado e o espanto que lhes  

apresento. Ficamos parados  
dois rostos sem cumprimento e órfãos de alguma  
matéria leve, quase gasosa  
mas com existência. 

Meu pai está órfão de pai  
antes de seu nascimento, desde antes de tornar-se fértil
o ventre que o acolheu
para germinar seus dois olhos, pelos, pernas, um fígado, essas coisas que  

um corpo costuma ter. Esse desespero. Agora
é a vez do filho
dele. Um 

diante do outro pergunta onde em você estoura em pânico um pai que vai e  

vem. 

Aviso àquele rosto que tenho pressa
se pode apresentar-se de vez,  
após um pedido de licença que desenho no ar com a mão direita,  
enquanto a que resta disca  
para um homem bem diferente dele, 
ligo e digo quero transar. Das quatro às seis. No seu endereço.  
No seu campo de batalha. 
Após sua ida à praia. 
Antes que você fique mais perto. 

Entre aquelas teias de aranha  
que você protege acima do chão antes do teto. Não diga nada quando eu chegar. 

3 poemas de Pedro Valera

(untitled)

beijo-lhe a face
suave frio pálida
cotão de flor de algodão
e escorrego a mão sob o vestido
o seu seio de fora
a descansar na minha palma
“estou feia...” diz,
e num tremer retrai-se
“estou feia” sugere
“ninguém nos vê” esqueço a face e
beijo-lhe os lábios
“estou mesmo mesmo feia...” e vira a cara
a sorrir, tapa o seio já sujo de areia
o seu cabelo curto chicoteia suavemente o meu olho
“certo” deixo a mão sobre a sua perna,
afago o veludo natural da
sua pele enquanto solto o outro seio
paira no ar o ronquejar insone da
prenuncia da aurora
as esplanadas estão perto de abrir
ao longe um camião de esteira varre e
alisa a areia.
“porquê aqui?” mas ela não responde,
sorri apenas e esconde a face...
parece tão nova... as suas pernas e
corpo escanzelado... e então,
subo-lhe o vestido e começo –
e eventualmente
acabamos.
senti-me vaidoso mas culpado
como se tivesse partido o brinquedo duma criança
assim muito discretamente e sem contexto.
mas ela sorri,
“tenho de me limpar” diz
e num arranque rápido, aperalta-se,
desce a tropeçar até à margem “não desapareças com
a minha mala!” onde se debruça ligeiramente
e à distância vejo
a salpicar a água do mar manso
com a palma da sua mão. está vermelha e
labuta na sua limpeza. subitamente
rompe-se uma pequena ondulação,
ela derrapa
desequilibra-se e cai de costas,
as suas pernas erguem-se, intocáveis
e ela começa a sacudi-las
no ar delicadamente a brincar
como uma modelo na
sua photoshoot
uma ligeira brisa
o sal e sangue marinado a escorrer das
suas ancas
e ambos nos rimos.
ela
ao longe
e eu
ao longe.
um pouco em contraluz,
ela levanta-se num
segundo
regressa a cambalear e
a sorrir
com a graciosidade pouco subtil
de um cisne perdido no
deserto.

 

a despesa do poeta

ia sendo descoberto
no outro dia.

escritos uns poemas
entremeei-os com documentos jurídicos
e uns textos da wikipédia
e levei-os à papelaria da esquina
para imprimir.

era a melhor forma de imprimir
e evitar ser apanhado.

mas quando cheguei
ele inseriu aquilo no seu pc
fez scroll, parou um segundo e
olhou-me

“imprime poemas com a sua
declaração de rendimentos?”

ele deveria ter uns 30 e poucos anos.

“a minha namorada estuda literatura
pós-modernista, pós-guerra e queria
imprimir, percebe?”

escusado será dizer
que era mentira:
não tenho namorada.

carregou num botão e esperou.
“escreves poesia, não escreves”

“não, não mesmo” paguei o
que devia e deu-me as páginas.
“eu escrevo.” e assim do nada
escapuliu-se para
as traseiras
como uma criança incontinente.

quando saí
guardei os meus poemas e
deitei o resto fora,
todas a páginas que arranjara como
desculpa.

reli-os a voltar para
casa; pareciam-me dedos amputados
dum coração inválido
a alcançar o nada.

acontece muita vez.
seja qual vagabundo vasculhar aquele
lixo,
sabe mais da minha vida que
vocês com estes
poemas.

talvez deva investir
nessa vertente: edição de autor,
capa dura
as Declarações dum Poeta e
seus rendimentos,
mais impostos, contratos, recibos verdes
e comprovativos assinados de um
belo e recomendado trabalho comunitário
imposto a prazo pelo tribunal e instância
de pequena criminalidade…

“ei!”
ouvi um grito atrás de
mim “ei, ei!”
e um homem corria na minha
direcção ao longo da rua
com um conjunto de folhas na mão.

“alguns poemas meus”
eram umas 5 ou 6 páginas
“depois diga o que achou
ou fale até com a sua namorada!”

fiquei com as folhas, parado
a vê-lo ir.

isso mesmo:
as Declarações dum Poeta e
seus rendimentos etc…

pelo menos, vinha
com um carimbo oficial do estado:
as pessoas costumam dar valor
a esse tipo de coisas.

e era de maneira
que deixava de pagar 2€
pela impressão de 4 folhas e
trabalho de 20 cêntimos

como este
que ele me deixou nas
mãos.

 

O que diria Freud?

que muito se fala de
DEUS
quando pouco se fode

e muito menos de
amor
quando muito se reza.

jesus
maomé,
estas caras jovens e
morenas
na televisão,

a protestar
a falar de DEUS
do PROFETA;

BAN CHARLIE HEBDO
dizem os cartazes.

(até eu,
que escrevi um conto sobre
DEUS,
ainda virgem)

WE CURSE THE PROHET
CARTOON MAKERS

DOWN WITH THE FRENCH
GOVERNAMENT

talvez seja razoável.

talvez o divino seja a moralidade dos
fracos
num mundo onde estes se
vêm incapazes
de fazer frente à competição.

ou talvez estejam só picados
com o roubo do obelisco

pouco me interessa,
nunca ouvi falar duma
religião fundada
por uma mulher

elas escondem-No
por entre as virilhas

agora mesmo

entre as suas ancas
cobertas
por um lençol fino,

um éden
ciano turquesa
quase infantil,

a dormir placidamente

no meio desta
escuridão.

o seu cabelo
cor de lenha

desfeito
por uma pequena almofada
e refeito num reflexo do
ecrã ligado;

beijei DEUS nos lábios
esta noite

e foi mais radiante que
todos os
jihads
e
cruzadas
deste
mundo.

Charles Bukowski, "o atacador"

Tradução de João Coles

 

o atacador

uma mulher, um
pneu que se esvazia, uma
doença, um
desejo; medos defronte de ti,
medos tão quietos
que os podes estudar
como peças de xadrez
sobre o tabuleiro...
não são as grandes coisas que
mandam um homem para o
manicómio. para a morte já está preparado, ou para
o assassínio, o incesto, o furto, o incêndio, a inundação...
não, é a série ininterrupta de pequenas tragédias
que mandam um homem para o
manicómio...
não é a morte do seu amor
mas um atacador que rebenta
já sem tempo de sobra...
o pavor da vida
é aquele enxame de trivialidades
que pode matar mais depressa que o cancro
e que está sempre à espreita –
matrículas ou impostos
ou a carta de condução caducada,
ou contratações ou despedimentos,
fazê-lo a alguém ou ser vítima disso, ou
prisão de ventre
multas por excesso de velocidade
raquitismo ou grilos ou ratos ou térmitas ou
baratas ou moscas ou um
gancho partido de uma porta de rede
mosquiteira, ou ter o depósito seco
ou a extravasar,
o lavatório está entupido, o senhorio está bêbedo,
o presidente pouco se marimbando e o governador
enlouqueceu.
um interruptor avariado, um colchão que nem um
porco-espinho;
$105 por uma afinação, um carburador e uma bomba de alimentação na
Sears Roebuck;
e a conta do telefone em alta e o mercado
em baixo
e o autoclismo
avariou,
e as luzes queimaram –
a luz da entrada, a luz da frente, a luz das traseiras
a luz interior; está
mais escuro que no inferno
e ao dobro
do preço.
depois há o chatos e unhas encravadas
e pessoas que insistem ser
tuas amigas;
há sempre isso e pior;
uma torneira a gotejar, Cristo e o Natal;
salame azul, 9 dias de chuva,
abacates a 50 cêntimos
e salsicha de fígado
roxa.

ou ganhar a vida
como empregada de mesa na Norm em turnos rotativos,
ou a despejar
arrastadeiras,
ou a lavar automóveis ou a lavar pratos
ou a roubar as malas das velhotas
e deixá-las aos berros nos passeios
com os braços partidos aos seus 80
anos.

de repente
2 luzes vermelhas no retrovisor
e sangue nas
cuecas;
dor de dentes, e $979 por uma prótese
$300 por um dente
de ouro,
e a China e a Rússia e a América, e
cabelos compridos e cabelos curtos e cabelo
nenhum, e barbas e caras
nenhumas, e muito ziguezague, mas nenhum
penico, salvo talvez um para onde mijar e
outro à volta do
ventre.
em cada atacador rebentado
entre cem atacadores rebentados,
um homem, uma mulher, uma
coisa entra num
manicómio.

portanto cautela
quando se
agacharem. 

In Mockingbird Wish Me Luck


the shoelace

a woman, a
tire that’s flat, a
disease, a
desire; fears in front of you,
fears that hold so still
you can study them
like pieces on a
chessboard . . .
it’s not the large things that
send a man to the
madhouse. death he’s ready for, or
murder, incest, robbery, fire, flood . . .
no, it’s the continuing series of small tragedies
that send a man to the
madhouse . . .
not the death of his love
but a shoelace that snaps
with no time left . . .
the dread of life
is that swarm of trivialities
that can kill quicker than cancer
and which are always there –
license plates or taxes
or expired driver’s license,
or hiring or firing,
doing it or having it done to you, or
constipation
speeding tickets
rickets or crickets or mice or termites or
roaches or flies or a
broken hook on a
screen, or out of gas
or too much gas,
the sink’s stopped-up, the landlord’s drunk,
the president doesn’t care and the governor’s
crazy.
light switch broken, mattress like a
porcupine;
$105 for a tune-up, carburetor and fuel pump at
Sears Roebuck;
and the phone bill’s up and the market’s
down
and the toilet chain is
broken,
and the light has burned out –
the hall light, the front light, the back light
the inner light; it’s
darker than hell
and twice as
expensive.
then there’s always crabs and ingrown toenails
and people who insist they’re
your friends;
there’s always that and worse;
leaky faucet, Christ and Christmas;
blue salami, 9 day rains,
50 cent avocados
and purple
liverwurst.

or making it
as a waitress at Norm’s on the split shift,
or as an emptier of
bedpans,
or as a carwash or a busboy
or a stealer of old lady’s purses
leaving them screaming on the sidewalks
with broken arms at the age of
80.

suddenly
2 red lights in your rear view mirror
and blood in your
underwear;
toothache, and $979 for a bridge
$300 for a gold
tooth,
and China and Russia and America, and
long hair and short hair and no
hair, and beards and no
faces, and plenty of zigzag, but no
pot, except maybe one to piss in and
the other one around your
gut.
with each broken shoelace
out of one hundred broken shoelaces,
one man, one woman, one
thing enters a
madhouse.

so be careful
when you
bend over.


In Mockingbird Wish Me Luck

"Afinal"

1.

AFINAL
Quando o amante cai do pedestal,
surpreendemo-nos
Afinal, não era de loiça
a refinada arte sacra
Afinal, não quebra nem há-de partir
e só ameaça derreter exposta às altas temperaturas
do Hades, ou coisa semelhante que nos valha
Na melhor das hipóteses,
levará anos a decompor-se

Caído o fundamento ao amante,
descobre-se o santuário vívido
Afinal,
não passou de um pseudomilagre

Venderam-nos como viagem
a experiência histérica, inautêntica
Duas voltas de grotesco turismo
E nem por isso deixaremos de colocar nova estátua, novo santo,
na coluna que sustenta, afinal,
o nosso relicário.

 

2.

Façamos a sinopse
Conheces alguém, permites que se aproxime,
deixa-lo chegar mesmo, mesmo perto,
até te alimentar com palavras e gestos mansos
e ficares novamente uma criança, inocente e atenta,
ávida de doces, com o coração muito tenro; um vitelo, é isso,
transformas-te em gado novo
Só então verás o carrasco que te alimentou
Levar-te-á pelo cachaço ao matadouro

Isto acontece várias vezes na imaginação de um animal
Estudos atestam que a criatividade não é exclusivamente humana
Os estudos são, nas sociedades,
uma balança; certificam peso e veracidade aos factos.

 

3.

Por isso, e com vigor,
esfregou-lhe as gengivas e os dentes,
usando o indicador direito untado com pasta dentífrica
Numa prática contrária à das refeições,
explicou-lhe: um coração deve comer-se de boca limpa.