ὁ μῦθος δελοῖ ὄτι

1

os factos são empilhados
diante de nós
não sejamos púdicos
os factos são cadáveres
o do rapaz das asas
os dos infantes
trespassados
pelas baionetas
o do padre nu
decapitado
diante da congregação
do seu pescoço
não cresceram lírios
o da sua filha
usada pelos soldados
antes de abatida
os de todos
os que celebravam
o casamento
e assistiram à noiva
a ser violada
pelo regimento
em formação cerrada

o folheto assegura-nos
de que acção
reproduz o mais fielmente possível
eventos reais
que tiveram lugar
na vila de Distomo
junto a Delfos
a 10 de Junho de 1944

 

 2

no final
o dramaturgo
sobe ao palco
por entre aplausos
fala
do dever do artista
para os salvar do esquecimento
para que não seja em vão
para que haja um sentido
para o seu sofrimento
e alguém lhe traz
um ramo de rosas

 

3

já não me recordo dos seus nomes
pergunto aos cadáveres
os cadáveres
não falam comigo
os cadáveres
não falam com ninguém
recusam
qualquer explicação

mas à maneira de Esopo
temos este mórbido vício
de espremer de cada dor
uma moralzinha maneirinha
de fácil arrumação
como bíblias
nas mesinhas-de-cabeceira
de um motel de má-fama
e instintivamente dizemos
a história mostra que
porque não queremos
vir dali de mãos a abanar
não
isso não pode ser
no acumular está o ganho
e quase sempre acrescentamos
algo de estúpido e obsceno
como
para que não volte a acontecer

 

 4

na sessão com o autor
alguém falou
do processo pendente
de assunção de dívidas
convertendo crimes passados
em moeda corrente
foi então que a Marialena
sentada atrás de mim
escondeu a cara entre as mãos

qual o preço de uma vida humana?

quando vence uma dívida?

qual a taxa dos juros de mora?

tudo questões
com que os mortos
não têm de se preocupar

Tadao Andõ, habitar no desconforto

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Numa entrevista à revista Philosophie Magazine em Novembro de 2017, o arquitecto Tadao Andõ revela que nunca estudou arquitectura e que não a compreende. Apesar disto, recebeu o prémio Pritzker em 1995 e é, sem qualquer dúvida, uma estrela da arquitectura mundial, considerado, é assim que o vê esta revista de filosofia, como o Corbusier feliz. Pode dizer-se que Andõ procurou, vá lá saber-se a partir de que convicções, construir edifícios não em função de uma linha, ou de linhas, estética, não preocupado com a utilidade, mas impondo uma relação horizontal entre eles e os seus habitantes. Habitar uma casa de Andõ obriga a sujeitar-se claramente às suas formas e dinâmicas.

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A entrevista à revista francesa teve como mote principal a casa Azuma. À pergunta sobre por que razão o acusam de construir edifícios onde é difícil viver, Andõ diz saber que não tem uma boa reputação e que o conforto não é importante. É preciso, acrescenta, que o habitante se pergunte a si próprio como viver nela com o mínimo de conforto. O que ele deseja é construir “espaços propícios a inspirar perspectivas ou paisagens interiores”. Daí a importância dos interstícios que relacionam as partes funcionais dos edifícios, a que chamou “espaços fundamentais das emoções”. Desta forma, assegura que “separa a arquitectura da sua função”.

E dá o exemplo da casa Azuma, entalada entre duas habitações antigas de madeira, que podia ter destruído no processo de construção.  Na abertura que conseguiu fazer, “criou uma caixa de betão”, com um pátio interior que no rés-do-chão separa a cozinha e a sala, e no primeiro andar os quartos. Para se passar de um espaço a outro é preciso atravessar o pátio e abrir o guarda-chuva se estiver a chover, nele “Circulam ar, água, vento, luz.” Uma casa sem climatização, “operando uma inversão do espaço, pondo o exterior no interior.” “Para viver num tal ambiente é preciso contar com a sua própria vitalidade, a sua energia e perseverança, aperfeiçoar-se mental e fisicamente, numa espécie de treino estóico.”  Talvez por isso tenha suscitado muitas críticas, fora do “grupúsculo que a adora”.

Por isso, não é estranho que Andõ considere a arquitectura como “a arte de modelar [agencer] o mundo graças à geometria”. Uma arte efectivada à base de betão armado, o seu material preferido, trabalhado de forma única e desenhado por linhas geométricas estratégicas. Tudo para acentuar uma singular e inorgânica percepção do tempo. Sem que haja, regressamos à sua falta de credenciais académicas (condição essencial da sua liberdade artísticas?), um manual de construção ou de reflexão. Andõ demora-se mais nas perguntas do que nas respostas, defende que há múltiplos mundos igualmente interessantes, acredita numa realidade dinâmica, considera que a vida deve ser pouco confortável.

Gosto destes seres que na linha do velho estoicismo resistem ao canto medusante da felicidade ingénua, da, como agora quase todos lhe chamam, “qualidade de vida”, forma última de um niilismo que deixa os humanos colados ao sofá, julgando que a convergência de pensamento e de acção ou o assobiar para o lado são mais vitais do que os seus contrários, acreditando que o Estado Providência é uma espécie de deus realmente e exclusivamente bondoso.


Photoautomat, nota de leitura

 
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Acaba de ser editado pela Enfermaria 6 o livro impresso de Francisca Camelo, Photoautomat, 21 poemas em cerca de 50 páginas. Fica aqui a minha nota de leitura.

O que se escreveu na contracapa – “entra, é um convite; / mas à saída leva-te contigo: / aqui só eu não sou de passagem” –, colhido no final do primeiro poema do livro, “apartamento”, pode muito bem ser a marca de sentido que acompanha a obra: Francisca Camelo dá-se, num esplendor multiforme, à avaliação do leitor a partir de acontecimentos (neste caso os imaginados têm a mesma força ontológica dos realizados) inscritos no plano da imanência e não no da transcendência estéticas, aí onde os poetas costumam produzir o caldo do fingimento cozinhando metáforas mortas. Trata-se, pois, de poesia ao serviço da biografia e não da sonhada poesia pela poesia ou, entre outras, de uma escrita performativa, meio terapêutica, meio demiúrgica (mesmo no poema “manual para a solidão”).

Por isso se misturam, numa encenação incrivelmente dinâmica, umas birkenstock com as moderníssimas torres de babel do multilinguismo, ou se escrevem cartas onde se gastam palavras para confrontar o possível e o impossível, preferindo-se, num neo-masoquismo controlado, o primeiro, mas sem rajadas de vento. Aceitar, num estoicismo realmente pessimista, que o amor é bafiento e as pernas acabam por abrir-se.

Francisca Camelo é uma espécie de jornalista auto-referencial, julgando encontrar em si os códigos de leitura do mundo. Tudo é pessoal e nada é pessoal – por exemplo, o pai é o Pai, não o intangível folião que se entretém a criar mundos de merda, mas o de todos nós, com corpo e mente imperfeitos –, e creio que gostaria que se apaixonassem como ela o faz, não porque resulte lindamente, mas porque é a lei mais favorável à vida.

Dois poemas de guerra (de Isaac Rosenberg e Keith Douglas)

ISAAC ROSENBERG
(1890, Bristol, Inglaterra – 1918, Somme, França)

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ROMPER DO DIA NAS TRINCHEIRAS

A escuridão desfaz-se.
É o mesmo Tempo druida de sempre.
Só uma coisa viva me salta à mão,
Uma ratazana excêntrica e sardónica,
Enquanto eu puxo a papoila do parapeito
Para a pôr atrás da minha orelha.
Divertida ratazana, fuzilavam-te se soubessem
Destas tuas cosmopolitas simpatias.
Agora tocaste esta mão inglesa
O mesmo farás a uma alemã
Sem tardar, bem entendido, se for do teu agrado
Atravessar o anestesiado verde que nos separa.
Parece que sorris por dentro ao passar
Por olhos fortes, impecáveis membros, arrogantes atletas,
Menos preparados do que tu para a vida,
Amarrados aos caprichos do homicídio,
Estendidos nos intestinos da terra,
Nos campos devastados de França.
Que vês nos nossos olhos
Quando guincham ferro e fogo
Arremessados pelos céus tranquilos?
Que tremor – que horrorizado coração?
Papoilas cujas raízes se enterram nas veias dos homens
tombam, e tombam constantemente,
mas está segura a minha na minha orelha –
apenas um pouco branca do pó.  

(1916)

 

KEITH DOUGLAS
(1920, Tunbridge Wells, Inglaterra – 1944, Normândia, França)

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FLORES DO DESERTO

Vivas numa ampla paisagem estão as flores –
Rosenberg estou só a repetir o que dizias –
a granada e o falcão a cada hora
matam homens e gerbos, matam 

a mente, mas o corpo pode saciar
as flores famintas e os cães latindo palavras
nas noites, de todas as coisas as mais hostis.
Mas isto não são novas. Sempre que a noite afasta 

os reposteiros dos olhos e deixa a mente desperta
olho para um lado e para outro da porta do sono
em busca da pequena moeda necessária
para comprar o segredo que não guardarei. 

Vejo homens que sofrem como árvores
ou que confundem detalhe e horizonte.
Deposita a moeda na minha língua e cantarei
coisas em que outros nunca pousaram os olhos.  

(1943)


A primeira das metáforas que equipara o ciclo da vida dos homens à vida do mundo vegetal é pelo menos tão antiga como a literatura da Europa e aparece num poema de guerra, no Livro VI da Ilíada, no diálogo entre Glauco e Diomedes, onde se lê que a geração dos homens é como a das folhas, o que pode ou não sugerir que os soldados do mundo arcaico tinham preocupações estéticas, inclinações poéticas. Paul Fussell, cujo livro The Great War and Modern Memory aparece muitas vezes classificado como uma obra de crítica literária, embora seja mais algo como uma história da cultura inglesa durante a Primeira Guerra Mundial (tempos de loucura colectiva), notava o alto grau de literacia entre as tropas inglesas, profundamente enraizadas na ampla cultura literária dos séculos imediatamente precedentes, resultado de escolaridade e hábitos de leitura bastante disseminados. Explica Fussell que os soldados liam na frente e carregavam com eles nas mochilas os clássicos da literatura inglesa, que uma porção considerável de cartas de soldados que se preservaram atestam elevados níveis de literacia e provam, para lá de toda a dúvida, que muitos deles liam todos os dias e incessantemente. Há toda uma geração de autores ingleses que surgiram ou se fizeram poetas durante a guerra (Wilfred Owen, Siegfried Sassoon, Robert Graves, Edward Thomas (um poeta absolutamente extraordinário), David Jones...), sendo que boa parte deles não sobreviveu. Quer isto dizer que há toda uma geração de autores ingleses que pereceu durante o conflicto. Uma das conclusões do livro de Fussell é a de que o choque que a guerra causou é também um choque de linguagem que torna obsoleta a expressão literária do século XIX, capaz de sonhar com heroísmo, mas não com a aniquilação sistematizada, brutal e em números nunca antes vistos imposta por meios de guerra mecanizada. A Primeira Guerra, inicialmente acolhida numa série de círculos intelectuais com genuíno entusiasmo, entre sociedades certas de que tudo duraria apenas alguns meses, viu o conflicto arrastar-se para lá de todas as estimativas, com níveis de mortalidade sem precedentes. Isto em parte explica porque é que de repente a linguagem até então utilizada para descrever guerras anteriores se tornou rapidamente desadequada para descrever a realidade. Os elos entre a literatura da Primeira Guerra e da Segunda estão amplamente estudados, mas talvez uma breve disputa entre dois poetas ingleses da geração de autores da Segunda Guerra, um deles um pacifista convicto e o outro um soldado, sirva para ilustrar esta ideia muito brevemente. Numa carta escrita a J. C. Hall (o pacifista), seu colega em Oxford, Keith Douglas (o soldado), um dos poetas que aqui traduzo, responde a uma crítica que este fizera aos seus poemas. A crítica de J.C. Hall, que de resto mais tarde se tornou o editor e o responsável pelo espólio de Keith Douglas, é mais ou menos aquela de que jovens poetas pedantes de todos os tempos se socorrem para se criticar uns aos outros. Hall escrevera a Douglas, então no Egipto, prestes a ver accção em El-Alamein, que o que ele estava a escrever não era poesia. Douglas envia-lhe uma resposta furiosa, dizendo que o que Hall queria dizer com aquilo é que os seus poemas não eram poemas líricos, que não era o mesmo que não serem poesia. Numa leitura do poema “Flores do Deserto” para o The Guardian, Carol Rumens notava que o lirismo de Douglas era de outra ordem, e mais próximo do tipo de lirismo do poeta da Primeira Guerra que aqui traduzo, Isaac Rosenberg, o que o próprio Douglas definia como um compromisso entre lirismo e cinismo cuja função era chegar a uma verdade sem concessões. É muito difícil de imaginar hoje, mas a poesia que foi escrita durante a Primeira Guerra teve um papel fundamental em elucidar a população civil sobre o horror perpetuado nas trincheiras, o que a propaganda da época tentou suprimir.

Isaac Rosenberg pertence a um mundo bastante diferente do de Keith Douglas. Douglas foi educado em Merton College, Oxford, aluno de Edmund Blunden, outro poeta da Primeira Guerra, e de muitas maneiras o percurso da sua juventude está marcado por um interesse em actividades que são próprias de soldados. Douglas não é um soldado relutante, alista-se cedo e escapa-se, no Norte de África, da segunda linha de batalha, onde tinha sido colocado, para a primeira. Rosenberg é um inglês de origem judaica, de uma família muito pobre, que treina como pintor na Slade School of Art em Londres, que hesita durante muito tempo entre a poesia e a pintura, e é um pacifista convicto, que entendia que a guerra era o palco ideal para os piores actos que um homem pode cometer. Rosenberg alista-se pelo que parece ser uma falta de escolha: o papel de soldado dava-lhe acesso a um salário. No poema de Rosenberg que aqui traduzo “Romper do dia nas trincheiras,” assim o notam todos os críticos que se debruçaram sobre o poema, quase todos os símbolos da poesia bucólica surgem e quase todos eles estão pervertidos: o romper da aurora, os campos, as flores, a quietude contemplativa. A ratazana, que é na leitura de Fussell um símbolo demónico (de daimon), encontra outro eco, menos óbvio do que a alusão directa que Douglas faz ao poema de Rosenberg no segundo verso do seu poema, na moeda cujo o referente é o óbolo colocado debaixo da língua dos mortos na Antiguidade Clássica para pagar a passagem a Caronte e nesse outro elo, menos evidente e mais terrível, entre os dois poemas e que é o do modo como a ideia de efemeridade é formulada em ambos. À distância de 27 anos, Keith Douglas repete com esta imagem da moeda debaixo da língua a ideia de efemeridade que no poema de Rosenberg é expressa pela papoila, segura na orelha mas, na verdade, já a fenecer porque colhida, no próprio corpo vivo daquele que, vivendo, pode já cantar como cabe aos mortos, com o óbolo na língua. O efeito da metáfora, o campo de forças que ela traça, é o mesmo, afinal, desse símile homérico muito antigo, a geração dos homens é efémera, como a das folhas. Homero é demasiado optimista, ele escreve que as folhas morrem e voltam florescer, e assim as gerações dos homens, Homero que não tinha ouvido falar da estupidez homicida de mechanical warfare.

O que me leva à relevância de escolher ler ou reler estes poetas soldados da Primeira e da Segunda Guerra. Matteo Salvini, Vice-Primeiro Ministro de Itália e Ministro do Interior, estava nas notícias na BBC esta semana, por um motivo ou outro que agora me escapa. Mas no final da peça sobre o dito Vice-Primeiro Ministro, a BBC entrevistava um politólogo italiano que comentava algumas afirmações de Salvini, ou do seu partido, sobre a posição pró-Europeia de Macron, ultrapassada na visão de Salvini, e simbólica de um velho mundo, sem lugar no futuro. O professor concluía que não era mais original a posição de Salvini ou de políticos como ele. Numa voz cansada, irritada e desencantada, o senhor dizia que toda a gente sabe qual é o resultado quando se erguem fronteiras entre países: o resultado é a guerra. Assim, deste modo simplíssimo, numa qualquer manhã da Europa no século XXI, durante o noticiário que a BBC emite de madrugada, quando o dia está a romper, e todos os pássaros de Inglaterra, país de melodramática memória, cantam ao nosso redor.  

 

Utopias vs. Heterotopias

La bibliothèque en feu, Vieira da Silva

La bibliothèque en feu, Vieira da Silva

Há uns dias, o filósofo francês Bernard-Henri Lévy disse que vivíamos pela primeira vez numa era sem esperança. Não sei se será bem assim, acho que houve outros momentos onde a luz parecia, depois de um grave declínio, esgotar-se definitivamente no presente. Porém, sinto que as crises ambiental e social actuais, mistura, heteróclita, de aquecimento global, perda de biodiversidade, sobrepopulação humana, migrações desreguladas ou querela de egos presidenciais, adensam as trevas.

Há uma história apócrifa do mito da caixa de Pandora (resultado de erros ou desvios nas sucessivas traduções) que inverte a narrativa da desgraça: o problema não teria estado na libertação dos males da caixa, mas no ter ficado lá o principal, a esperança. Resguardada, manteria o seu poder de perpetuar as crenças infundadas em dias melhores, uma espécie de alucinação optimista. Sem ela a humanidade teria desistido há muito, extinguindo-se jovem e bela, seguindo o imperativo ético da Grécia Homérica.

Como sabemos, os mitos dizem mais sobre a psicologia humana do que sobre a realidade que supostamente descrevem e avaliam. Somos, pois, animais estruturados, antropologicamente, em torno da esperança. As religiões e as bolsas financeiras, a política e a subjectivação, o enamoramento e a vendeta... vivem animadas pela esperança, que, deixem-me ousar, é mais primordial do que as pulsões sexuais freudianas ou a vontade de potência nietzschiana. É o magnetismo de um futuro amniótico, onde a vida de cada um e de todos estivesse totalmente imunizada.

É por isso que a utopia, distorcendo-se o sentido literal de “não lugar” para “bom lugar”, não cessa de nos obcecar. Ela alimentou a demanda do possível-impossível ao longo da história da cultura ocidental, força da imaginação em vista da inovação, espiritual e material. Paradoxalmente, nunca se desconfiou tanto dela como hoje, como nunca se empreendeu uma desmistificação tão firme da sua intrínseca bondade. Vivemos, para o bem e para o mal, na era da suspeita, talvez da hipersuspeita, revogaram-se o optimismo ingénuo e a idolatria do progressismo, até porque muitas utopias se transformaram, patologicamente, em distopias. Diz-se que o “tempo dos crentes cedeu o lugar ao dos críticos”. Às crises de que falei acima, junta-se uma contenção do campo irracional que perseguia, fanaticamente, a perfeição, a “cidade ideal”, vista agora como uma ideologia opressiva (a queda do comunismo estalinista e a vigilância massiva do pseudo-comunismo maoista, ou chinês, e das polícias secretas ou de mega redes sociais um pouco por todo o mundo influenciaram esta visão) deu lugar à “cidade do bem-estar”, houve uma domesticação dos possíveis. Resta saber se este realismo, um pouco triste, talvez demasiado prudente, vai perdurar ou é apenas uma paragem para que o sopro idealista descanse até ganhar novo alento.

Para ultrapassar o impasse que a desilusão utópica criou na vontade sonhadora da imaginação talvez possamos recuperar, pelo menos parcialmente, à maneira de um roubo selectivo, o que Michel Foucault escreveu em 1967 sobre heterotopias (“Des espaces autres”, autorizado para publicação em 1984, in Dits et écrits), esses outros lugares possíveis, mas esquecidos ou desvalorizados. Se as utopias são sempre “lugares essencialmente irreais”, as heterotopias foucauldianas mantêm uma relação tangível, ainda que complexa, com a realidade. São lugares afetivos, uma “espécie de utopias efectivamente realizadas”, simultaneamente distantes dos lugares habituais, mas passíveis de serem localizados e habitados.

Nesse texto Foucault enumera os jardins, os cemitérios, as prisões, os lares da terceira idade, os museus, as bibliotecas, os barcos... Mais do que caracterizá-los com a devida profundidade, Foucault pensa na criação de uma nova disciplina capaz de estudar as heterotopias, uma disciplina sonhadora, ou melhor, uma disciplina dos lugares sonhados, como em Nietzsche havia uma ciência do prazer, uma Gaia Ciência, que seria ao mesmo tempo uma ciência prazerosa e uma ciência do prazer (prefiro o “prazer” à “felicidade” por ser um termo bem menos teológico).

Numa abordagem sumária, refere o carácter universal das heterotopias. Primeiro, nas sociedades primitivas, heterotopias de crise, “lugares ou sagrados, ou interditos, reservados aos indivíduos […] em estado de crise”: adolescentes, mulheres com o período menstrual, grávidas, velhos... Estas heterotopias ainda subsistem, mas no essencial foram substituídas por heterotopias do “desvio”, aquelas onde se instalam os indivíduos à margem da normalidade.

Foucault vai apresentar mais cinco princípios, contribuindo para o esboço da nova disciplina sobre o espaço (que nunca chegou a desenvolver). Não é tanto isso que agora me interessa, quero antes pensar, num pequeno vislumbre, a necessidade de cada um de nós, pelo menos os mais iconoclastas, encontrarmos e cuidarmos, cuidando-nos, das nossas heterotopias. Esses outros lugares, um pouco de crise (é a nossa condição viver nela), um pouco de desvio. Lugares – jardins ou cemitérios, florestas ou esquinas de ruas, quartos de pânico ou cascatas isoladas –, que serão as nossas “utopias efectivamente realizadas”, onde a singularidade se poderá contemplar sem vergonha ou distrações e onde se comunicará com alteridades normalmente censuradas pelas forças da banalidade (Platão ou Kafka, por exemplo). Para mim, escolho a biblioteca, a de casa (pequena mas significativa), a de amigos ou pública. É nesse heterolugar que encontro a verdadeira espessura do tempo, preenchido por ideias luminosas e personagens resplandecentes, cheias de erotismo conceptual ou de força ficcional, é nesse lugar que adquiro o poder da emancipação. Aí, lugar de crise e de desvio, sou contaminado por um prazer que se assemelha ao das brincadeiras sem fim da infância. E, por isso, emerge o melhor que vive em mim, nesse lugar sou o melhor ser do mundo.