Embriaguemo-nos!

« Il faut être toujours ivre. Tout est là: c’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.

Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous. »[1] […]

Charles Baudelaire, Le Spleen de Paris, XXXIII, Péiade.

Embriagar-se sempre, diz o quase-maldito poeta francês, designando uma trilogia improvável: “vinho, poesia e virtude”. Percebe-se a díade vinho/poesia, com a pequena diferença da poesia não obrigar à culpa corpórea da ressaca. Mas quem se lembraria, a não ser um habitante “infernal”, de juntar a “virtude”? Questão hermenêutica finíssima, que se deve abandonar ao vento para a ver desaparecer ou encontrar a exegese certa (Serge Reggiani, magnífico diseur, realça bem esta heurística). Fora isso, trata-se de uma exaltação à vida, ao prazer, à elevação... a tudo o que é belo e intenso.

Conhecemos a célebre “in vino veritas”, uma outra verdade, mais arriscada, porque a desconexão das partículas discursivas abre fendas até ao íntimo do sujeito, meio animal meio divino. Menos usada, o “in vino glaudium” parece, pelo que googlei, mais venerada na circunspecta Alemanha, mas nós, os do Sul, temos, à falta de palavras, o sentido exacto da alegria na bebida, bem menos estridente, aliás, que a Norte.

Há, também, esse escritor e filósofo inglês, Roger Scruton, capaz de reunir conservadorismo, Kant e estética do belo, que titula um livro I Drink Therefore I am. O vinho tem uma alma que lhe foi doada pela terra, sol e trabalho. Simboliza a sedentarização humana. Cépticos em relação aos mitos antigos sobre a bebida divina (Dioniso/Baco, et al), ainda percebemos, porém, o sentido religioso que transmuta a alma, dando-lhe um poder de percepção mais fino e vasto. Para Scruton, o vinho faz emergir o mundo em sub specie aeternitatis, prolongando o sentido da eucaristia cristã. Beber vinho é, pois, procurar para lá de si próprio, ele é o caminho para a alteridade.

Por outro lado, ao levarmos um copo de vinho à boca degustamos um work in progress, o vinho é um elemento permanentemente vivo (e não apenas quimicamente). Ao contrário da comida, não requer mastigação (a não ser em níveis extremos de alcoolemia) nem é subjugado pelas condições da absorção digestiva. Invade as nossas veias, insuflando o corpo de vida, e depois dessa inundação fisiológica, conquista a alma, acelerando o pensar e libertando as emoções.

Scruton não regateia elogios a esta bebida, já que ela “rima com civilização”. Define a comunidade humana, cada golo de vinho transporta partículas de culturas ancestrais, é uma espécie de peregrinação laica ao passado. Além disso, a boa embriaguez traça um estilo de pensamento: saída de si em direcção a um mundo mais alargado (vejam-se os simpósios gregos, no Banquete Sócrates, aparentemente depois de beber várias crateras de vinho, produziu um dos mais belos discursos filosóficos sobre o amor), através da contemplação e desregramento (“Le Bateau ivre”de Baudelaire). Pelo vinho os outros estão primeiro (com a triste excepção dos tagarelas recalcados), dá-se mais do que se reclama, cultivando um prazer partilhado. Este “bom vinho”, alcoolemia temperada, mantém o respeito pelo outro e, diz Scruton, a capacidade de sentir vergonha perante ele. O vinho seria, então, o meio de reconquistarmos o prazer do convívio e de reaprendermos a temperança.

Por isso, bebamos bem e em boa companhia, embriaguemo-nos temperadamente para entrarmos em 2015 com a vitalidade da esperança e da amizade refeitas.

 

[1] [“É preciso estar sempre embriagado, Tudo está aí: é a única questão. Para não se sentir o horrível fardo do Tempo que quebra os vossos ombros e vos inclina sobre a terra, é preciso embriagar-se sem parar. / Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha. Mas embriagai-vos.”]