Cegueira, razão e persistência

121. CEGUEIRA

Um homem avançava num passo regular. Um velho ao volante de um carro de luxo lançou-lhe um olhar desconfiado. Uma quarentona à janela de um rés-do-chão espreitou-lhe a juventude desaparecida. Um jovem desocupado encostado a uma esquina, pensou se valeria a pena pedir-lhe dinheiro. Um poeta sentado numa esplanada reconheceu-o e acenou-lhe. O homem continuou a avançar num passo regular.

137. PERSISTÊNCIA

Entrou na rotunda com apreensão e circulou-a com cuidado. Circulou-a, circulou-a e circulou-a. Ainda hoje a circula, à procura de uma saída.

154. RAZÃO

Admirava todos os e poetas e artistas em geral, homens e mulheres capazes de enlouquecer. Ele não tinha essa capacidade, era completamente louco.

Chão, interrogação, planeamento, fama

67. CHÃO

Os seus poemas eram puras excrescências que expulsava de si mesmo, uma vezes com prazer, outras com sofrimento, impedindo dessa forma que o seu corpo apodrecesse e afinal morresse. 
Era por isso que escrevia, foi tudo o que declarou.

79. INTERROGAÇÃO

O homem perscrutou as ruas que se cruzavam e prolongavam até onde os seus olhos alcançavam, os parques de estacionamento traçados a esquadro e até um campo de jogos com um aspecto exemplar, porém, dos prédios que ali deviam estar, nem sinais. E então o homem interrogou-se porque cargas de água se teriam ido embora os prédios.

92. PLANEAMENTO

Um homem amputou o seu braço esquerdo e comeu-o. Gostou bastante, porém, mais tarde, vistas bem as coisas, arrependeu-se. Deveria ter cortado uma perna, disse a si mesmo.

106. FAMA

Declarava sempre, com humildade, que era a sua mão direita que escrevia; calava sempre, com desgosto, que a mão escrevia os seus próprios livros e não os dele.

Decisão, fado e contraste

36. DECISÃO

Toda a sua vida se sentira ora feliz ora triste e isso perturbava-o bastante, a tal ponto que chegou a desejar sentir-se sempre triste a sentir-se assim, ora feliz ora triste; no entanto, nunca soube escapar a essa indesejada alternância. Decidiu então, de uma vez por todas, deixar de sentir-se. E foi o que aconteceu.

45. FADO

Porque estava cansado de não trabalhar, deixou de procurar emprego. Porque estava cansado de passar fome, deixou de comer. Porque estava cansado de procurar um sentido para a vida, deixou de viver. Não foi feliz para sempre, mas morreu.

55. CONTRASTE

O preto e o branco estavam um à frente do outro e olhavam-se com desconfiança. “Queres mudar de cor?” - perguntou um deles, não sei qual, e o outro assentiu. 
Mudaram então de cor e continuaram um à frente do outro a olharem-se com desconfiança.

Método e Equilíbrio

21. MÉTODO

Sentia-se tão bem no escuro que um dia arrancou os olhos*.

* Podia ter escrito “que um dia cegou”, mas a verdade é que evito, sempre que posso, as metáforas.

28. EQUILÍBRIO

Ele amava-a tanto que se transformou num homem melhor, só para lhe agradar. Tornou-se mais belo, mais instruído, mais bem-sucedido e muito mais rico.
Ela não mudou nem um bocadinho; continuou a não acreditar no amor.

Realismo e expectativa

10. REALISMO

Iniciou as buscas à hora marcada e levou-as até ao fim com um rigor e uma determinação exemplares. Tinha a certeza de que nada encontraria ali.


15. EXPECTATIVA

Caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu e continua a cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, sempre a cair...