4.

Saint-John PerseAmers, Strophe 1-4

Tradução: João Moita

Daí vinhas, riso das águas, até às dependências do latifundiário.

Ao longe o aguaceiro atravessado de lírios e de foices luminosas abria para si a caridade das planícies; os porcos selvagens remexiam a terra com máscaras de ouro; os velhos assaltavam à bengalada os pomares; e por cima dos vales azuis povoados de latidos, o corno breve do vigieiro reunia-se ao anoitecer à vasta concha do peixeiro… Os homens tinham um verdelhão amarelo numa gaiola de vime verde.

Ah! que um mais amplo movimento das coisas na sua margem, de todas as coisas na sua margem e como vindo de outras mãos, nos alheasse por fim da antiga Maga: a Terra e as suas bolotas fulvas, a pesada trança de Circe e as sardas da tarde em marcha nos abrunhos domésticos!

Uma hora ávida ruborizava-se nas lavandas marítimas. Os astros despertavam na cor das hortelãs do deserto. E o Sol do pastor, no seu declínio, sob os apupos das abelhas, belo como um encolerizado nas ruínas dos templos, descia aos estaleiros em direcção aos tanques da querenagem.

Lá se avinhavam, entre os homens de trabalho e os ferreiros do mar, os estrangeiros vencedores de enigmas da estrada. Lá se excitava, antes do anoitecer, o odor a vulva das marés baixas. Os fogos de asílido enrubesciam nos seus cabazes de ferro. O cego descobria o caranguejo dos sepulcros. E a lua no covil das pitonisas negras

Embevecia-se com amargas flautas e com clamores de estanho: «Tormento dos homens, fogo da noite! Cem deuses mudos sobre suas mesas de pedra! Mas o mar para sempre atrás das vossas mesas de família, e todo o seu perfume de alga da mulher, menos insonso que o pão dos sacerdotes… Teu coração de homem, ó transeunte, acampará esta noite com as gentes do porto, como um caldeirão de chamas rubras sobre a proa estrangeira.»

Advertência ao Mestre de astros e de navegação.

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«Ensaio sobre aquilo em que mais penso», Anne Carson

Tradução de João Moita

De Men in the Off Hours (2001)

Erro.
E as suas emoções.
À beira do erro está a condição do medo.
No meio do erro está um espírito de loucura e de derrota.
A descoberta do erro é acompanhada de vergonha e remorso.
Ou não?

Vejamos.
Muitas pessoas incluindo Aristóteles pensam que o erro
é um evento mental interessante e útil.
Na discussão sobre a metáfora na sua Retórica
Aristóteles afirma existirem três tipos de palavras.
Estranhas, vulgares e metafóricas.

“Palavras estranhas confundem-nos;
palavras vulgares exprimem o que já sabemos;
é através da metáfora que alcançamos alguma coisa nova e revigorante”
(Retórica, 1410b10-13.)
Em que consiste a novidade da metáfora?
Aristóteles diz que a metáfora torna a mente consciente de si mesma

no momento de cometer um erro.
Ele imagina a mente a mover-se através de uma superfície lisa
de linguagem vulgar
quando de repente
a superfície quebra-se e complica-se.
Surge o inesperado.

De início parece esquisito, contraditório ou errado.
Depois começa a fazer sentido.
E nessa altura, de acordo com Aristóteles,
a mente vira-se para si mesma e diz:
“Tão acertado, e ainda assim eu confundi-o!”
Dos verdadeiros equívocos da metáfora pode-se aprender uma lição.

Não apenas que as coisas são diferentes do que parecem,
e portanto as confundimos,
mas que tais equívocos são úteis.
Atentemos, diz Aristóteles,
há aqui muito que ver e que sentir.
A metáfora ensina a mente

a gozar o erro
e a aprender
a justaposição daquilo que é e daquilo que não é assim.
Há um provérbio chinês que diz,
O pincel não pode desenhar dois caracteres na mesma pincelada.
E ainda assim

isso é exactamente o que um bom erro faz.
Por exemplo.
Há um fragmento de um antigo poema grego
que tem um erro de aritmética.
O poeta parece não saber
que 2 + 2 = 4.

Fragmento 20 de Alcman:
         [?] fez três estações, verão
         e inverno e outono em terceiro
         e em quarto a primavera quando
        há floração mas para comer o suficiente
        não há.

Alcman viveu em Esparta no século VII a.C.
Esparta era um país pobre
e é pouco provável
que Alcman tivesse vivido uma vida saudável e nutrida.
Este facto está na origem das suas observações
que vão desembocar na fome.

A fome dá sempre a sensação
de ser um erro.
Alcman faz-nos sentir esse erro
com ele
através do recurso a um efectivo erro de cálculo.
Para um miserável poeta espartano sem alimentos

na despensa
no final do inverno –
chega a primavera
como uma reconsideração da economia natural,
quarta na série de três,
desequilibrando a sua aritmética

e elevando o verso.
O poema de Alcman irrompe a meio caminho pela métrica jâmbica
sem explicar
de onde veio a primavera
ou porque é que os números não nos ajudam
a controlar melhor a realidade.

Há três coisas de que gosto no poema de Alcman.
Em primeiro lugar o facto de ser pequeno,
leve
e mais do que perfeitamente económico.
Em segundo lugar por sugerir cores como verde-claro
sem as nomear.

Em terceiro lugar porque traz para primeiro plano
algumas questões metafísicas importantes
(como Quem fez o mundo)
sem análise manifesta.
Reparem que o verbo “fez” no primeiro verso
não tem sujeito: [?]

É muito invulgar no grego
um verbo sem sujeito, na verdade
é um erro gramatical.
Os filólogos dir-nos-ão
que este erro é só um acidente de transmissão,
que o poema tal como o recebemos

é seguramente um fragmento retirado
de um texto maior
e que Alcman certamente
nomeou o agente de criação
no versos que precedem os que aqui temos.
Bem, pode ser.

Mas como sabem, o objectivo principal da filologia
é reduzir todo o encantamento textual
a um acidente histórico.
E eu não sou favorável a qualquer reivindicação de se conhecer
exactamente o que o poeta quis dizer.
Por isso deixemos o ponto de interrogação

no início do poema
e admiremos a coragem de Alcman
por confrontar-se com o que está entre parêntesis.
A quarta coisa de que gosto
no poema de Alcman
é a impressão que ele dá

de expressar a verdade sem ela disso se aperceber.
Muitos poetas aspiram
a este tom de lucidez inadvertida
mas em poucos ele é tão genuíno como em Alcman.
É óbvio que a sua simplicidade é falsa.
Alcman não é simples de todo,

ele é um mestre do enredo –
ou o que Aristóteles chamaria um “imitador”
da realidade.
Imitação (mimesis em grego)
é o termo de Aristóteles para os verdadeiros erros da poesia.
O que eu gosto neste termo

é a facilidade com que ele aceita
que o que nos fascina quando fazemos poesia é um erro,
a consciente invenção do erro,
o deliberado ímpeto e complexificação dos erros
dos quais pode sobrevir
o imprevisível.

Assim um poeta como Alcman
esquiva-se ao medo, à ansiedade, à vergonha e ao remorso
e a todas as outras emoções patetas associadas ao acto de cometer erros
de maneira a atingir
a verdade dos factos.
A verdade dos factos para os humanos é a imperfeição.

Alcman quebra as regras da aritmética
e ameaça a gramática
e joga com a forma gramatical do seu verso
de maneira a revelar-nos esse facto.
No final do poema o facto permanece
e Alcman não está menos esfomeado.

No entanto alguma coisa mudou no quociente das nossas expectativas.
Pois enganando-as,
Alcman aperfeiçoou alguma coisa.
De facto ele fez mais
do que aperfeiçoá-la.
Dando apenas uma pincelada.

*

Original aqui.