As Aventuras do Senhor Lourenço (§23 entre Deus e Marx)

(cont.)

Tudo se precipitou, como acontece num ribeiro seco depois de uma forte chuvada. Uma torrente superficial de críticas e desdém chocava constantemente com Lourenço, arrastando-o contra esquinas afiadas. Impossível de parar: “esperem”, “vamos pensar”, “analisem melhor”, “vejam as contradições da notícia”..., dizia Lourenço, mas a loucura geral queria, por tudo e por nada, despedaçá-lo. Um Zé Ninguém tinha subido ao estrelato e agora caía. Bem feito! Justiça ícara ou bode expiatório redentor.

Antes vivia na solidão do anonimato, do “ninguém quer saber”, depois chegou ao estrelato admirativo, agora era apontado por todos os dedos, com e sem unhas de gel, alguns amarelos do cigarro, envelhecidos quase todos (os alunos vivem num magnífico “who cares?” em relação aos adultos), com aquelas rugas de pele cansada e veias salientes, quase a explodir, de um azul mal camuflado. Ainda falava um pouco comigo e com o Joaquim, mas este iconoclasta militante tinha-se subitamente interessado por coisas vagamente holísticas, juntando-se a uma colega viúva, rija, que dava Religião e Moral. Isaltina, era esse o seu nome, quase fora freira, mas um pedreiro que fazia arranjos no convento desvirginou-a, meio à força meio consentido, perto do altar de Nossa Senhora, e ela esteve tão perto de reproduzir o êxtase de Santa Teresa de Ávila que forçou o macho a assumir para o resto dos dias a responsabilidade de dormir com ela. Começou então a sua vida secular de professora e mulher casada, embora sempre com “um pé perto de Deus”, como costumava dizer.

Na época, eu percorria territórios políticos ligados à extrema esquerda, gerindo bolchevicamente uma cozinha comunitária. Todos as manhãs havia uma reunião geral, demorada, para se votar a ementa do dia seguinte, e os impasses e dissensos eram mais do que muitos, às vezes quase se chegava a “vias de facto” entre vegans e vegetarianos ou marxistas geométricos e maoístas moralistas. Na verdade, quase todos tinham uma roda dos alimentos moderada, mas não prescindiam da tenacidade revolucionária, tudo era razão para competirem sobre quem era mais democrata participativo. Quem me conhecia tinha dificuldades em compreender aquele novo estilo de vida, o próprio Lourenço, normalmente incapaz de julgar os outros, esboçava uma admiração crítica e justificava a minha guinada cívica com a crise dos 40 ou um rabo de saia particularmente apetitoso. Mas, como muitos outros, só tinha ido à procura de uma veracidade que me protegesse da dispersão pós-moderna sufocante. Se quiserem, transformei-me provisoriamente num fundamentalista.

– Mas o que é que se passa contigo? – Perguntou-me, logo na manhã de segunda-feira, Lourenço.

– Não se passa nada, o Joaquim é que anda metido em sarilhos.

– Tu estás pior, agora acreditas na verdade política?

– Não é bem isso, retorqui, e tu fazias melhor em preocupar-te com essa de “traidor cobarde”.

– Nunca te disse que era herói, que tinha feito aquilo deliberadamente, sempre fui modesto, não te armes em inquisidor de esgoto.

– Certo, Lourenço, certo, mas podias ter sido mais assertivo a desmentir a liberdade do teu mergulho sobre o badameco do bombista.

– Discutimos isso muitas vezes, pensei que concordávamos numa concatenação de acasos que me fizeram agir sem eu querer.

– Tens razão, desculpa-me, tenho andado tão ocupado, sempre a discutir e votar, e vou ter um Skype daqui a pouco, antecipo os gritos do costume sobre a ementa de amanhã.

– Mas por que razão não largas isso, estás armado em mártir?

– Não, Lourenço, não meu amigo, tu procuras a harmonia indolente no dolce far niente, ou dolce essere niente, eu estou fascinado pela Verdade, quero encontrar uma fórmula que dê sentido a tudo o que faço e penso. Quero sentido, estou farto de absurdos, como a tua história, por exemplo, tu és um absurdo, tudo o que te aconteceu é um absurdo. Virei-me para o neo-marxismo porque ele é uma espécie de religião do texto, semelhante em muitos aspectos às restantes três. Não se pode pôr em causa a Verdade (revelação analítica) de O Capital, e mesmo o Manifesto, com o seu estilo panfletário, está ancorado na Verdade. Pode parecer-te uma regressão dogmática, Lourenço, mas faz-me um bem do caraças acreditar na Verdade. Se não fossem as discussões intermináveis sobre a ementa e a falta de depilação das raparigas, creio que era um homem feliz.

– Mas tu eras todo interpretação, recordo-me de que quando te encontrei citavas frequentemente o “não há factos, apenas interpretações”, de Nietzsche.

Não sabia bem o que responder. Sim, gostava imenso daquela sentença, linha de irmandade com o Joaquim, mas depois fiquei mais perto da sagração incondicional do texto, como quando o encenador e dramaturgo Jorge Silva Melo defende a inquestionabilidade do texto teatral, condição de toda a produção teatral, imperativo estético inviolável, no fundo mais uma forma de bibliomania. Peguei no Joaquim para me defender.

– Lourenço, que diferença vês entre eu procurar a verdade e o Joaquim o divino?

– Não sei se vejo diferenças, não é, aliás, essa a questão. O Joaquim anda entretido com a Isaltina, acho que lhe faz bem, até já não cheira tão mal da boca. Tu meteste-te com fundamentalistas que sonham com uma nova ordem total.

– Sim, respondi. Mas nós queremos emancipar as pessoas, não dar-lhes uma droga espiritual que as faz crer na felicidade de pacotilha.

– Ei! Foste ao baú ideológico buscar essa ideia, não?

– Goza, Lourenço, goza que deves ter muitas razões para achares que és melhor, já reparaste no buraco negro onde está enfiado?

– Sim, sei bem onde estou, mas não conjuro nada com adesões idiotas, morrerei de pé, sem me vender.

– Olha, isso também é de um baú qualquer, e de um pretensiosismo piroso.

E foi assim que quase nos chateamos. Entretanto, talvez Lourenço tivesse razão, hoje já me deixei de verdades e democracias participativas, regressei ao cepticismo e às interpretações, talvez porque tenha encontrado uma colega que faz amor comigo duas vezes por semana, sem discutir as posições, uma em casa dela outra na minha. Sempre à tarde, para não termos de dormir, e acordar, juntos. E é incrível como adoro os múltiplos orgasmos que facilmente ela consegue ter, fechando sempre os olhos e pedindo complacência a Deus, não a Marx. 

As Aventuras do Senhor Lourenço (§22 Lourenço no Correio da Manhã)

(cont.)

[não tenham pena do que vai acontecer ao Lourenço, o trágico, ainda que banal, continua a ser um poderoso antídoto contra as formas de anestesias gerais, o universal bocejo de indiferença em que vivemos]

O trágico enfeitiça, mesmo os sacrificados. Creio que Édipo não trocaria a sua biografia por uma entediante vidinha de heleno bem comportado.

[já o escritor desta história, fiel aos factos, revisitáveis na memória do mundo guardada no Google, tem um receio de morte de não passar de pequeno escritor de novelas, enfeitadas com falsas intensidades e peripécias de cordel, adornos de feira, preenchidas por personagens que dificilmente cumprem o plano de parecerem vivas e autónomas, peças fraquinhas de um relógio acebolado]

Referi algumas vezes que Lourenço tinha qualidades, sem que a avaliação fosse influenciada pela nossa amizade. Objectivamente, ele possuía bons traços de personalidade. Destaco a recusa em lamentar-se, evitando assim “ancilosar-se no seu modo de ser.”

Regressemos à história. Numa manhã de finais de Maio, à ida para a escola, Lourenço passa os olhos pelo Correio da Manhã exposto no quiosque da estação de metro, lendo: “LOURENÇO MENTIU!” Primeiro, pensou num qualquer jogador de futebol ou numa estrela de reality show. Durante umas centenas de metros foi tecendo um puzzle simples com esse título do tablóide mais bem sucedido de Portugal. Chegou mesmo a pensar numa leitura nietzschiana, a contra-pêlo, da indignação (no mundo da comunicação social, indignar continua a ser lucrativo). Só quando se sentou numa carruagem de metro meio vazia explodiu no seu cérebro a possibilidade do “Lourenço” ser ele. O “posso ser eu” encheu o seu corpo de adrenalina, tanta que o coração ameaçou parar antes de se pôr ao trabalho, bombeando um fluxo inabitual de sangue para repor o equilíbrio vital, mas fê-lo atabalhoadamente, excedendo-se bastante, obrigando uma grande parte do sangue a viajar até às extremidades do sistema circulatório, junto à pele, para se arrefecer. Pouca sorte, ficou vermelho como um tomate maduro sem ganhos fisiológicos, o dia quente e húmido, prova da primeira onde de calor do ano, não refez a harmonia térmica.

Na próxima estação, Lourenço saltou do lugar e esticou o passo para chegar o mais depressa possível a um quiosque de jornais. Ia em contra-corrente, como quase sempre na sua vida, chocando e pedindo desculpas. Sempre gentil, apesar da ansiedade. 5 minutos depois comprou um Correio da Manhã, abriu-o e foi à procura da notícia. Estava logo na página 3, uma fotografia enorme de si e um título, “Fomos bem enganados!”, definiam a trama geral da folha, preenchida por texto, muito texto para um tablóide.

Segundo o jornal de faca e alguidar, especializado em desgraças sexuais, vitais e políticas, mistura de estilo vertiginoso e libidinoso, Lourenço atirou-se sobre o terrorista porque tropeçou enquanto fugia do local em pânico. Aliás, segundo uma “fonte idónea”, pertencente ao grupo do Lourenço durante a caminhada pelas linhas do metro, o suposto herói “tremia como varas verdes”, foi necessário animá-lo constantemente. Depois, quando chegaram à estação, ele foi o primeiro a querer fugir dali, mas a aflição tolheu-lhe os movimentos e acabou por se atrasar. Apesar disso, continuava a fonte, lá conseguiu, e uma vez na plataforma foi o “ver se te avias”. Felizmente, “tropeçou em alguém ou em si mesmo e foi aterrar, para bem de todos, em cima do bombista.”

Em hiperventilação, Lourenço procurou no passado factos que desmentissem aquele, ou aquela, merdas. Fê-lo uma e outra vez, mudando de perspectiva e esforçando-se por invocar detalhes redentores. Mas não conseguiu encontrar provas irrefutáveis contra a fonte. Nem as imagens do circuito vídeo interno, que só captaram o mergulho final sobre o bombista, seriam de grande ajuda. Talvez o jornal tivesse razão, como poderia ele, em consciência e liberdade, ser um herói; ele que hesitava por tudo e por nada, ele que nunca teve coragem além da necessária para fazer uns exames académicos, apanhar transportes públicos e ir sozinho à feira do livro; ele que aliava niilismo e conforto; ele que enquanto jogou futebol quis sempre ir à baliza?

As Aventuras do Senhor Lourenço III Acto (§21 banalidade do trágico)

(cont.)

[às vezes escrevo sem pensar, deixo que a escrita entre em mim e desenhe a história à sua maneira. Outras vezes quero, qual criança mal mimada, dominar todo o processo discursivo, desviando-me para isso das frases feitas, já que só um inventor pode ser legislador]

Lourenço separou-se da Manuela, perdendo as comodidades de menino rico (os ricos são “meninos” até muito tarde), sobretudo a de viver num 5 assoalhadas na rua Garrett ao Chiado, vista para o Tejo e para resmas de turistas que agora nos visitam à procura de sol e, em vão, do pitoresco (o tuga quase desapareceu de Lisboa). Foi viver num quarto minúsculo e rançoso na rua do Salitre, alugado “por especial favor”. Na mesma casa moravam a senhoria (80 anos e queixumes sobre os tempos modernos e a “juventude que já não respeita ninguém, nem Deus”) e mais três estudantes de Belas Artes, cheios de namoradas e sonhos de grandeza artística, sobretudo depois de fumarem canabinóides (os partidos políticos do optimismo deviam distribuir este neo-soma a toda a população), talvez não fosse necessário, sabemos bem que os artistas não sublimam. Na mudança despachou a maior parte dos livros para a casa dos pais em Odemira, contente por ter agora apenas cerca de vinte “obras essenciais” que podia ler e reler, colocando-se em modo penepoliano.

[quando se envelhece troca-se a horizontalidade pela verticalidade, a amplitude pela concentração, escava-se um buraco em vez de se lavrar uma terra. Prefere-se a imersão a prumo aos deslocamentos conquistadores, é-se menos territorial e mais espiritual]

 Estranhamente, este regresso a uma vidinha quase miserável preparou Lourenço para a tragédia. Não sobre-intensa, repleta de hybris, com deuses a espumar vingança em cada frase. Uma pequena tragédia, com alguma tensão dialéctica, mas sem os antagonismos delirantes entre o humano e o divino; a secularização manteve apenas alguns equívocos do quotidiano e os gritos furiosos e incontroláveis das guerras. Se as guerras são totalmente colonizadas pelo absurdo, então perdem o sentido do trágico. Restam os acasos desgraçados para o trágico, o mini-trágico. Não se suprimindo, porém, o sofrimento sem porquê, isento de redenção para os actores, agora representado nos Zés da Esquina a quem bloquearam o carro porque não respeitaram o estacionamento pago; ou nos Antónios de Lisboa que nunca arranjaram um emprego decente, apesar dos doutoramentos em velhas e veneradas humanidades, porque, meios autistas e com famílias modestas, ninguém os recomendou e o funcionalismo público privilegiou, por estratégia política, as gerações antes das suas. Noutros termos, já não há nem Édipos nem Antígonas capazes de desafiar parcelas fundamentais da Ordem. Ou, depois da enésima morte de Deus, já não há sequer Ordem para desafiar.

Se Hannah Arendt cunhou o termo “banalidade do mal”, os tempos hiper-modernos encarregaram-se de inscrever na história das palavras e ideias o de “banalidade do trágico”. Talvez, mas fico-me pela suspeita, porque vivamos a fazer zapping entre os problemas vitais que envolvem, num abraço de urso, o mundo. E fazemo-lo porque as soluções obrigariam a substituir-se o estilo de vida Ocidental pelo regresso a uma austeridade medieval, e nós preferimos o conforto tecnológico e dietético. Nova versão do “prato de lentilhas”.

Será este trágico, “o melhor dos trágicos possíveis”, como costuma dizer um amigo meu, que Lourenço voltará a educar-se para um mundo que, como queria Schopenhauer, só pode ser de sofrimento (aqui e ali redimido pela contemplação estética, sobretudo musical). 

As Aventuras do Senhor Lourenço (§20 os restos do dia, bacanal III)

(cont.)

Pensa-se que o delírio afirmativo é mais intenso do que o negativo, mas creio que é justamente o oposto.

[para os que me ignoram, eu não sou um especialista em tragédia, mas hoje teria feito um curso embebido de classicismo grego, em vez de me banhar na opacidade dos velhos conceitos, emoldurados por categorias racionais bastante duvidosas. Vejam que na história da humanidade só os gregos, querendo a perfeição, aceitaram a imperfeição. O cristão, por exemplo, no final só consente uma felicidade metafísica, ligada à realidade sem erros e acasos]

Quando a festa acabou, Lourenço iniciou o percurso em espiral até ao buraco mais negro de que há memória, uma obscuridade sem qualquer redenção, um grito surdo que desloca as costelas. Joaquim, sabia-o bem, nada podia fazer. Mas continuava ali, adivinhando a tragédia. O fiel e amedrontado Tirésias que conhecia tudo, sem os detalhes supérfluos, panfletários, dos adivinhos actuais, quase todos na política. Sabia que um fluxo de angústia iria rasgar as entranhas de Lourenço. Manuela dissera alto e bom som que “nunca mais o queria ver. Nem pintado.”

[a estupidez lógica desta expressão deve ser pesada junto com o desespero emocional que a provoca, sempre]

É verdade que Lourenço também se sentia incapaz de continuar com a Manuela, sofria sem remédio, antecipando o mais que provável abandono. Como um cão especial que no dia da adopção pressentisse que dali a um ano, ou menos, regressaria ao canil. Antes continuar lá, nunca sair de lá, que o biológico só sofre quando há termos de comparação. Mas isto não evitou que Lourenço caísse num abismo, sem que o Joaquim, ou eu (embora na altura tivesse uma valente depressão, atestada pelo médico para poder faltar à escola. Nem à festa do Plateau fui), pudesse fazer alguma coisa. A beleza e o heroísmo tinham posto Lourenço em contacto com o Universo, mas quando se é professor e se vive em Portugal é muito difícil justificar a vida. A dúvida não cai de uma só vez, desenvolve-se através de insinuações, de viés, com argumentos de treta. Do tipo: “só há adeptos para um Quinto Império numa comunidade moralmente falida”; ou, “só se espera que um rei idiota nos venha salvar numa manhã de nevoeiro quando o delírio derrotou o bom senso”. Depois, há ainda os peregrinos de Fátima a morrer no caminho, em pleno exercício de pagamento de promessas. Só um Deus muito desiludido com o seu povo permite esta ironia cruel (e não me venham com “escrever direito por linhas tortas”). Sem Deus, sem mitos explosivos, sem festa, sem esperança... E todos os dias com as colegas, sempre iguais, com os alunos, mais interessados na libido do que em Sócrates. Todos os dias a provar um pouco de sem-sentido e a cheirar o hálito nauseabundo do Joaquim. Todos os dias a imaginar a Manuela com um novo namorado, desses que conduzem Mercedes e vestem camisa azul e blazer. O pior, Lourenço não tinha ninguém com quem partilhar esta tristeza, a psicanálise está pelas horas da morte e os padres já não sabem confessar. Só professores, cada vez mais histriónicos, concentrados na aposentação e em técnicas, por vezes sofisticadas, que evitem a chatice de preparar aulas e avaliar.

[a quantidade de professores que se esganiça tem vindo a crescer exponencialmente. Os educadores, tantas vezes pais substitutos, estão doentes. Têm um cansaço auto-induzido que nada parece debelar]

Quando chegou à rua, Lourenço não olhou para as estrelas (erro de principiante ou gesto suicidário?). Cabisbaixo, desceu as escadas e, lado a lado com Joaquim, foi apanhar um táxi (a Uber ainda não tinha desbaratado a cangalhada desta seita retrógrada). Despediu-se de Joaquim – a quem Manuela tinha dito: “tu, nem para o inferno vais, vais para a sucata!” – como se estivesse a despedir-se da vida. Deu a morada ao taxista e adormeceu. Tudo correu bem até casa, um hiato de felicidade. O problema estava estacionado no dia seguinte. 

As Aventuras do Senhor Lourenço (§19 música álcool e Dioniso, Bacanal parte II)

(cont.)

À meia noite, a discoteca começou a encher. Lourenço estava perto do balcão, virado para a pista com a Manuela ao seu lado. Os colegas cumprimentavam-no depois de entrarem, todos o fizeram com sinceridade. O Dj tinha uma playlist entre The Neighbourhood e Artic Monkeys, talvez recomendada por Lourenço, mas não estou seguro disso. Manuela irradiava felicidade, ondulando levemente o corpo com um copo de whisky na mão. Tinha um decote magnífico e a maquilhagem de €100 elevou-a à perfeição. Lourenço amava-a, mas não acreditava que ela ficasse com ele para sempre. Aliás, o sintagma “para sempre” cheirava tanto a vulgaridade que era melhor isso não acontecer. E Lourenço fez bastante para que Manuela o abandonasse.

À uma da manhã a pista abriu com Celebration. As colegas mais gaiteiras, quase todas meio embriagadas com baileys, saltaram para o meio e, suportadas pelos laços de cumplicidade feminina, dançaram com entusiasmo. Depois veio Everybody Wants To Rule The World dos Tears For Fears e a pista encheu. Foi a noite do Pop 80s, até Lourenço que não gostava de dançar, digamo-lo assim, entrou na confusão ao som de Funkytown, e nem o Uspide Down de Diana Ross o pôs novamente no lugar. O Dj animava a multidão nomeando o “herói Lourenço”, a quem “devemos a nossa liberdade” e que “mais algumas das nossas lágrimas não tenham ido salgar ainda mais o mar”. Um Dj culto? Competente, mas já meio surdo. Que importa?! Com Come On Eileen entrou-se em delírio, todo o Plateau, agora com muito mais clientes, pegou fogo.

Dioniso compunha e tocava música, só esta arte podia conviver com a sua desmesura, excesso vital, e mortífero, que nascia em cada um dos seus gestos. E Dioniso ressuscita constantemente, já não no aparato estético das Grandes Dionisíacas, mas em cada noite mais vibrante de todas as discotecas, de todos os festivais de música, de todos os bailes de aldeia... Dioniso preside aos histrionismo erótico que invade os corpos anti-cartesianos das noitadas de música, dança e alguns psicotrópicos.

Quando passou o incontornável Addicted To Love, Lourenço já ia no quinto whisky e Joaquim tinha-se juntado à festa (com ar carrancudo e sem um botão da camisa, umbigo à mostra), descobrindo, para seu espanto, uma nova simpatia por seios fartos. Mas em vez de se atirar à mamalhuda que dançava insidiosamente à sua frente, deixou que o empregado, cheio de gestos efeminados, se roçasse cada mais nele. A página tantas, perguntou-lhe, meio a sério meio a brincar:

– Queres chupar-me?

– Não, respondeu. Para logo a seguir, no que pareceu ser uma desculpa, acrescentar que o podia sujar.

“A vontade de perfeição leva à inacção”, pensou, um pouco a despropósito, Joaquim.

Foi a partir desta altura que tudo se precipitou, um feixe de loucura emergiu quando entraram The Rolling Stones e o seu Sympathy For The Devil. Os corpos emanciparam-se e assumiram uma esperança inverosímil em amanhãs radiosos, a discoteca tinha uma comunidade espasmódica com formas tensas e contorcidas, oscilando entre o esticado e o dobrado, pareciam seguir o tirso imaginário de Dioniso. Chegara a vez de se falar a língua dos relâmpagos, lançados, porém, ao acaso e sem a potência fulminante da mitologia. Como dizia Nietzsche, em quem esta língua era autêntica e importante, mas por razões mais nobres, “O corpo entusiasma-se, deixemos a alma fora de jogo.” No meio disto, Joaquim auto-dissecava-se à procura do pecado pagão que impulsionara irremediavelmente a sua decadência social, um apátrida sem génio. Lembrou-se de Álvaro de Campos: “Não posso estar em parte alguma. A minha / Pátria é onde não estou.” Mas num assomo de dignidade varreu tudo para debaixo do tapete e declarou-se fiel absoluto do pessimismo da força nietzschiano. Não por ser o mais duro, mas por ser o mais complexo, que a força em Nietzsche nunca teve que ver com domínio, tratou-se sempre de abrangência, da máxima abrangência possível.

Uma colega de português, adorável até ao ponto em que não era adorada (aí, em perplexidade furiosa, atirava-se à vítima como se fosse a única responsável pelo Pecado Original. Dizia, sem o dizer, “como te atreves a não me achar adorável, mas quem és tu para deslizares da unanimidade em relação à minha santidade?) meteu-se com ele.

– E se te apalpasse?

Lourenço, surpreendido, mas não muito, respondeu:

– Faça o favor, colega.

E a colega pôs-lhe a mão no sexo e apertou. Ao mesmo tempo tentou beijá-lo, mas Lourenço recusou, argumentando, mais mimeticamente do que foneticamente, que estavam pessoas a ver. E estavam, talvez mesmo a Manuela.

A colega prosseguiu na conquista.

– O mais histericamente histérico de mim, como vivia Álvaro de Campos em Pessoa, está aqui hoje para cometer uma loucura, Lourenço, vem, vem foder-me!

Lourenço ouviu vagamente o nome de Campos, histriónico e melancólico, e por isso aceitou, sem saber o que aceitava. Entraram na casa de banho feminina sem que ninguém se espantasse, parecia ser habitual naquele lugar a mistura de géneros. Tiveram que esperar que alguém saísse de uma cabine. Chegada a vez deles, Lourenço com a cabeça à roda, mais interessado num analgésico ou em vomitar do que em foder a colega. Alguns riram quando os viram entrar, justificando-se a velha tese de que com gracejos gratuitos se ordenou grande parte do mundo. Por outro lado, não havia nada de novo nesta escapadela, vazava-se num odre velho vinho novo.

Ninguém sabe o que se passou lá dentro, Lourenço jura que só vomitou e dormitou no colo da colega. Ela nega inclusive que alguma vez tivesse ido para a casa de banho com alguém, ela que nunca faltou ao respeito ou deixou de se dar ao respeito. Manuela estava, porém, furiosa. Gritava muito, mesmo junto ao ouvido de Lourenço:

– És um merdas, sabias, um merdas total.

Lourenço sabia que se saísse para a rua poderia olhar as estrelas sem medo de nada, mas tinha-se enrolado numa teia que talvez o prendesse para sempre no Plateau.   

(cont.)