tipitaka, em lugar de poesia

1. 

as ruas do mundo se oferecem na fedex 
um prozac, um sabonete 
usado com pentelhos grudados 
embora gaste dentro esse sotaque 
eu nunca fui pra califórnia 

do outro lado da rua os correios 
- enviar uma carta de 110g. 
sai por 6,72 
                        a minha miséria também é sua 

eu me jogaria do 8º andar 

o chão quente do centro 
chega à sola de todos passantes 
eu não tenho nenhum centavo 
para o almoço, para os cigarros 

uma moça me entrega diamba 
os versos de mombaça me estalam 
um metrô que não funciona 
a calcinha tão pequena que me rasga 

penso em partir para outro sítio 

cantar os meus mortos 
é atravessar um campo de neve 

 

2. 

um verso me martela 
abandonar o território conquistado 

o homem antigo barbado e com óculos 
é só um desenho manchado 

as pessoas se abandonam 

talvez o nome puro, qualquer nome 
fosse mais que desejo 
ou menos mais ou menos 

em sarajevo toda criança tem a pele coberta 
dum cheiro ocre 
os muros parecem dizer i adore you 

lá sonhei com duas árvores 
uma delas africana 
eu e concha como coisa única 
nunca existimos, nem novokuznetski 

tenho a ousadia de dizer 
meu nome, qualquer nome 

é madrugada 
nenhum barulho de gente trepando 
nem nas janelas ou ao meio-dia 

úmida, úmida 

 

3. 

estive no templo 
por alguma razão que não busco entender 
eles cobravam entrada 
do lado de fora fiquei a olhar 
os pés retorcidos e a cenografia do desespero 

lembrava 
as duas sujeitas propondo cultos 
– você tem cara de crente 
você daria uma ótima crente 
eu daria apenas, e sigo a dar uns olhos de encruzilhada 
essa vingança em ser mortal, ser o que quiser 
conquanto palas e deuz e anúbis sempre eles 

a cara do desastre 
ser o que quiser desde o caminho da miséria 
e a duração do que não pode permanecer 
o templo, a ruína 
em lugar de poesia 

. oráculo 

a ponte de einstein-rosen

tempo é desconfortável:
verde-água percutido de ouro,
gaivotas se bicando
por postas de peixe no mercado,
caixas de madeira-balsa em pilhas.
tempo não flui congestionado,
seja no pulso, na estação de trem,
no último momento de relance em que
eu vi seus olhos: não flui.
carros descem a avenida,
pneus são cachoeiras ao ouvido,
luzidio porta-torradas de prata
jaz na rica mesa recém-posta
e palavras holandesas se misturam
a frases francesas no café
e eu tenho uma colher
e a espuma forma uma galáxia
no centro da qual está o tempo,
dobrando-se diante de mim.
velho néon intruso em nosso quarto
pobre, provisório, nesta noite
em que leio os lados de seu corpo;
mãos nas rochas da cidade,
pés no limo de outra sob a sombra
daquela torre vicentina, a sorte
do azul dos olhos, protegido.
pego o tempo na ponta
dos dedos, ou da mente?
se contorce , uma minhoca 
já sem terra, já sem lisa pele
que deslize úmida, cilíndrica.
desconfortável: pouco tempo
em nossas mãos. um sopro.

HOJE AS RUAS ESTÃO ERMAS

Hoje as ruas estão ermas
e a cidade fecha-se, enclausura-me
dentro de meus poemas.
Kavafis. Saio em busca de Kavafis
ou de qualquer outro poeta
que ande por estas ruas:
Eliot transmudado em Tirésias,
Dante guiado por Virgílio, qualquer um.
Onde encontrá-los
no deserto em que só a minha voz ecoa?
Como cantariam eles a aridez da tarde
e os vivos e os mortos?
Como cantariam eles o silêncio
destas ruas que vazias esperam
os bárbaros que já aqui chegaram
e constituíram família?

Repetição

tudo está às voltas
no lastro de teu gesto 

tudo se repete
num fazer que

descortina: 

compre
uma flor
no mercado
e sê Monet

jardinando em
Giverny – 

refaça
no entulho
de uma casa
o dia que os
mesopotâmios

recensearam
seus deuses
mortos

não basta ao ato
bastar-se a si:
todo agir interpõe

teu agora e teu antes 

voltei-me a mime
parti mais além

fui-me aqui e
assim por diante

– toda tessitura
é a vela na
gávea de Cabral

e o trapo no
torso de
Zumbi –

sê olhar do rei cruel e indigesto
sê o olho que temeu a guilhotina

tudo se repete
num fazer que
descortina 

tudo está às voltas
no lastro de teu gesto