Repetição

tudo está às voltas
no lastro de teu gesto 

tudo se repete
num fazer que

descortina: 

compre
uma flor
no mercado
e sê Monet

jardinando em
Giverny – 

refaça
no entulho
de uma casa
o dia que os
mesopotâmios

recensearam
seus deuses
mortos

não basta ao ato
bastar-se a si:
todo agir interpõe

teu agora e teu antes 

voltei-me a mime
parti mais além

fui-me aqui e
assim por diante

– toda tessitura
é a vela na
gávea de Cabral

e o trapo no
torso de
Zumbi –

sê olhar do rei cruel e indigesto
sê o olho que temeu a guilhotina

tudo se repete
num fazer que
descortina 

tudo está às voltas
no lastro de teu gesto

Enquanto

enquanto
procuramos
dinheiro
e trabalhamos
por comida
              é possível ouvir
              o impassível
              pulsar do útero

e de nós está tão próximo
que um arfar contínuo –
antes tão esquecido –
novamente traz à mente
a ideia sempre renovada
de um gestar.  

e o murmúrio
de uma árvore
que brota do chão
fica guardado no ar
esperando que nós,
criadores de línguas
aqui permaneçamos –
quando não, cheguemos! –
apenas para ouvi-lo. 

é o rumor renovado
que nos ideia a esperança
de sermos cegos
ao menos um dia –
que em vigília, em vida,
a vida em nós haja

*

–  mas assim passamos
enquanto
procuramos
dinheiro
e trabalhamos
por comida: 

um zunido sem estrondo
nos chama do dentro
pedindo inquietar-nos,
e nos põe em movimento
onde antes éramos somente: 

um dia sucede ao outro
e mais um e mais um,
e neste rupestre escrevinhar
de traços na parede
divagamos o lento gastar dos dias,
o nosso romper em vagas
contra as rochas do cais,
                           devagar. 

com a mão de margaridas
arrancamos, pétala a pétala,
a esperança de um vaticínio: 

bem-me-quer, mal-me-quer
débito ou crédito,
açúcar ou adoçante,
câncer, coração ou dormindo? 

e se quiseram de verdade que
realmente fôssemos felizes,
ao final ficaremos com as mãos cheias
dos magros galhos de margaridas:
e ali sim estará a predição:
e aí sim entenderemos.

Apreço pelo passado

E isso é história: a sombra retorna,
sussurra seu nome em bocas futuras (...)

Dirceu Villa

 

apreço pelo passado:
se é caro o que é querido
quem aprecia é o mesmo
que sabe o preço de algo. 

contemos em
nossos pés
um cúmulo
infindável
de passos.

mas pelo que
barganharemos
nossos mortos?

            que consciência
            se entranharia
            na anônima

            ascendência
            de nossos
            ossos? 

‘quem somos?’:
medula a pergunta
com a qual
sonhamos
              a pergunta real,
              a pergunta impossível:

‘depois de tudo,
com quem, afinal,
nós vamos?’