somos o púlsar das aves/ a rocha linguística/
toda potencia calquera virtualidade/ unha exposición infinita/
un infinito de dor// non cruzamos correspondencias
Chus Pato, Sonora
Seguiu para a gráfica
/Capa de Gustavo Domingues e StudioPilha
Interior, apontamentos para um ficção
/É um vilarejo cujo o calcário do caminhos
obriga os homens a um andar curvado,
ensimesmado, de uma inata errância –
o andar de um homem de algum modo
exilado, embora seja a mesma
a aldeia e mesma a hóstia mascada
e a distância é um abismo que se escava
em busca de seu incólume azul.
Em meio à violência, a melancolia
degenerou para uma suavidade acalanto.
Branco frêmito de chuva entrecortado
pelo guincho de porcos no abatedouro
e a desesperança, crescente, condensa-se
nas manhãs de céu baixo e na neblina
que faz arder a memória e a carne.
Nas esquinas, pick ups enferrujadas
e fios de eletricidade que se cruzam
e engaiolam o infinito. Há obras
interrompidas: montes de areia,
tijolos empilhados, pedras em britas,
a chuva de ontem que ainda goteja
de uma laje inacabada.
De súbito, dois pierrots
(ágeis como acrobatas de um circo
mambembe, inúteis como bailarinos
que encenam uma sonata ao luar
para uma plateia de crianças cegas) –
Dois pierrots, enfim, empertigados
desembainham espadas e duelam.
São homens - igualmente
tristes brutos vingativos.
O que morre, crucifixa o azul com os olhos
e não consegue delimitar uma única fronteira:
o que é nuvem, o que é chuva,
o que é sol, o que é abutre,
o que é a vida que se desenlaça.
Duelaram pela miséria de uma mulher
de vestidos esgarçados:
grávida, mas que ao sentir
o que gera em suas entranhas, pressente
o arpejo de um mar que não conhece,
mas que traz na fissura dos ossos.
O mar de um país de assassinos.
Dois poemas de Daniel Francoy
/RAÇÃO MÍNIMA DE ESPANTO
Ração mínima de espanto
o dia vence com a sua parcimônia:
magra miséria, revolta
que é apenas raiva, ternura
nostálgica, degenerada.
Hoje reunimo-nos em assembleia
para decretar a morte dos escorpiões
e o amor fracassado pelos pássaros
rápidos como o fogo: dourados, sanguíneos,
uma mancha incendiada, um gorjeio
contra o silêncio morto da tarde.
Tenho a esperança do terror puro,
abismo de susto, mas o luar
é um delírio visto todas as noites;
algo como uma rouquidão desafinada
de uma voz que, veludo, é o breu noturno
e ainda há outras formulações possíveis:
o luar é o fracasso do céu
preso às minhas mandíbulas
e é a potência de meus dentes crispados
- vontade sonâmbula de mastigar -
abocanhando fiapos de tédio.
Fracasso em sonhar que sou Van Gogh.
Desconheço a metamorfose do fogo.
No espelho, o rosto é o rosto
que encarei antes de adormecer
enquanto escarrava sangue
contra o mármore da pia.
Em minhas mãos espalmadas, os dedos
alongados são franjas de espuma
e se fecho as mãos, retendo o vazio,
é como se eu sepultasse
um embrião que é vento e desespero
e se calo é porque estou órfão do horror
de exibir o meu rosto mutilado aos homens do meio-dia.
PÁSSAROS
As gaivotas não são brancas
como aquelas que aparecem em poemas: são
pássaros sujos em praias impróprias para o banho.
Disputam o que os turistas oferecem
e morrem nos canais onde a água poluída
com o mar se confunde – imundície
a espelhar o arrebol.
E há o abutre morto à margem da estrada.
Encontrei-o no amanhecer, indistinto
da terra e da relva massacradas.
Sei que o reencontrarei no entardecer
e talvez eu o nomeie melro.
Caderno 4: Modos de escrever
/Caderno 4
Modos de escrever
editado por Tatiana Faia e Victor Gonçalves
Enfermaria 6, Lisboa, novembro de 2017, 96 pp.
Capa de João Concha
8€
Carla Diacov
Daniel Francoy
Fernando Guerreiro
Gonçalo Marcelo
João Bosco da Silva
João Concha
João Pedro Cachopo
Luís Quintais
Miguel Zenha
Patrícia Lino
Paulo Rodrigues Ferreira
Pedro Braga Falcão
Tatiana Faia
Victor Gonçalves
Victor Heringer
Introdução
Tatiana Faia e Victor Gonçalves
George Steiner, prolongando o pensamento de Jorge Luis Borges, refere que a “opressão pode ser a mãe da metáfora”. E a metáfora não é somente um lance rizomático que translada o sentido de um ponto linguístico para outro (com subtis, mas importantes, alterações, claro), ela está no nascimento (mais do que na origem) de toda a escrita que vale a pena, mesmo da que tem um cariz mais científico. Ora, quisemos com este Caderno, exibindo uma certa linha de continuidade, pelo menos no espírito, com os três números anteriores, desafiar um conjunto heteróclito de autores a escreverem sobre modos de escrever, o seu ou de alter-egos, a buscarem e revelarem os pontos cegos onde aparecem, às vezes em milagre, os primeiros esboços de grafemas, numa irreprimível intensidade metafórica, porque no início estão as forças inventivas. O pedido foi formulado nestes termos: “Exm@ senhor@, permitimo-nos convidá-l@ para escrever um pequeno texto para a edição impressa do Caderno 4 da Enfermaria 6, com o título, orientador, de MODOS DE ESCREVER. Pretende-se que os autores, dentro do horizonte de sentido que elegerem (prosa, poesia, ensaio, literatura, filosofia, direito, dramaturgia, desenho...) pensem e revelem maneira(s) de escrever (porventura as suas): técnicas, locais, rituais, inspirações... Aquilo que permita vislumbrar partículas da escrita de sangue dos colaborares desse Caderno, sem com isso cairmos na coscuvilhice banal.”
E já que falamos na procura de uma certa perspectiva, numa das imagens incluídas em On Reading, um livro do fotógrafo húngaro André Kertész, pode ver-se um rapaz sentado a uma mesa austera, em tronco nu num dormitório. Filas de beliches alinham-se atrás dele e pela janela completamente aberta a que está encostada a mesa entra uma luz clara. A fotografia foi tirada em 1972 na Martinica. Há um livro aberto sobre a mesa, que é o único objecto para lá do mobiliário que se vê na imagem. Não há mais ninguém e o cuidado do fotógrafo em não perturbar o leitor ficou inscrito, acidentalmente ou não, no ângulo da distância a partir do qual vemos a imagem do rapaz. Isto causa um efeito, ao mesmo tempo, de distância e intimidade.
Queremos pensar que esta perspectiva não é alheia aos textos que aqui se coligem. As contribuições que aqui se reúnem traçam um itinerário através de filmes, ruas que se perdem e a que se regressa, fotografias, livros lidos, obsessões, afirmações que podem ser reconduzidas a práticas pessoais ou circunstâncias biográficas. À possibilidade de resposta a essa hipotética pergunta, qual a origem da escrita?, contrapõe-se uma polifonia de soluções que jogam com a expectativa dos leitores. As respostas que recebemos não foram, de todo, as mais evidentes. Mas talvez que na exposição das diferentes oficinas que estão aqui em causa se desenhe algo um pouco mais perene do que a mera enumeração das idiossincracias de cada autor (como se verá, em muitos dos textos não é exactamente o autor a criatura mitológica para ser encontrada no centro): o assumir de uma determinada perspectiva ética. A nossa esperança é que essa perspectiva faça pelo leitor o mesmo que a distância inscrita nessa fotografia tirada há décadas por um fotógrafo húngaro em viagem, que no fundo não é assim tão distante do ofício de escrever: dar uma certa perspectiva, deixar espaço para o trabalho do leitor, ser um pouco misteriosa. Numa nota de rodapé a Steiner, metáfora é tudo o que, incluindo uma certa perspectiva, a transfigura. Enquanto editores deste caderno era sobretudo disso que estávamos à procura.