Quatro poemas de Ismar Tirelli Neto

Os irreconhecíveis

Continuam imóveis, fortificações      
um horizonte espartilhado
Nos poemas, descubro, cai-se ainda do mar
não é tão difícil
quanto se imaginava
                        extraviar-se de alguém
Nesta sebenta província,         o mundo
Perfilado sem falha
No baço das vidraças
(Cai-se ainda do mar)
Com gorda artilharia de gestos, agravamentos
Montes sem relíquia
Acostando-se às estradas
E o desejo
A deformar todas as cidades
Naquela em que nasci

Método

Aos domingos havia tempo para os poemas
o tempo vem se portando bem? pergunta
Ata de cada lentidão
Cada pachorra entre os tempos
Sorrisos do dia laboral
Uma ou outra
Observação rotineira devidamente
Radioscopada
Ocasiões em que se vira tentado
a espalmar-se todo sobre os muros
tentado a leituras
menos vagas talvez
o acaso está já vestido, alimentado? pergunta
as contrafações em dia?
a imagem – saciada?

Cada interpolação entre casa e trabalho
Cômputo de calos
Parques descritos com tambor e fechadura
Mas aos domingos era possível tirar a cera aos ouvidos
Para toarem galantes os muros
O passado dava e sobejava

O Mundo Moral

                        para a Fernanda Mira Barros

Os poemas ficaram pequenos
Não saem muito de perto do fogão
Lá dentro ocidente e oriente

Abreviaram-se também os companheiros
Já não perfazem
Os dedos de uma mão
Mostram-se perplexos
Com tanta retilineidade
Os termos: ocidente, oriente           

Encurtaram os poemas
Ainda assim vão maiores um pouco
Que esta cozinha, esta casa
Maiores uns dedos

Os Nublamentos

Ao dispor de versos
tenho cada vez mais a impressão
de tirar do armário certo
paletó que só costumo usar em funerais.
Trajo para ocasiões graves.
Não pude impedir o verso de tornar-se
com o passar dos anos
ocasião das mais graves.
Com estas mãos não me foi dado
maleá-lo.
Quer-me parecer que
agora, ao escrever um poema, devo
forçosamente, de par
com o poema,
enunciar que o escrevo,
como se lhe faltasse certa medida
de evidência.
                        Àquela mulher
(mal me conhecia e súbito
falava por todos)
não faltava evidência.
Há obra de dois anos, vejam, veio ter comigo
após uma récita.
Disse-me que eu era poeta tolerável, mas
péssima pessoa.
A princípio, fiquei um bocado ofendido.
Senti vagamente que precisava
defender minha honra,
provar para aquela mulher
que ela estava enganada – que eu
era um tipo admitidamente leviano, sim,
mas incapaz de fazer mal a uma mosca.
Em mais de uma ocasião pretendi
discorrer sobre a alegria do engano,
sobre a possibilidade de enganar-se com alegria,
sobre
                        À alegria, vejam,
não falta evidência.
Paletó escuro, talhe inteiramente
a propósito.
Que sabe esta mulher do meu passado?
remoía.
Quando voltou as costas e encaminhou-se
às portas do cemitério,
que longínqua ofensa
remoía?
Por outro lado, valeu-me à grande pensar nos
poemas. Enrijecem. E depois
é o desfazimento.
Há quem pense que só passam a existir
maximamente
quando o poeta, impossibilitado enfim
de opor-se,
perde toda e qualquer evidência, ocasião
de perguntar a alguém
a que horas começa a cerimônia
com que paletó devo ir

com que
paciência com que paciência
esperamos por isso

Revoada de trinta-réis

O cheiro das goiabas invadia a casa, de assalto, como enxame de vespas. Era um cheiro doce de arder as narinas e dar água na boca. Sara havia arrumado tudo com esmero redobrado. Varrera a casa com vassoura de alecrim, passara pedra na chapa do fogão Venax nº 2, ariara a chaleira onde mais tarde aqueceria a água pro mate, juntara, ao redor da casa, gravetos para o fogo, e do paiol trouxera palhas, algumas das quais amaciara, passando por várias vezes as costas da faca. Quanto mais macias melhores são para a feitura dos cigarros. Flores do campo, brancas, amarelas e azuis, sobre a tosca mesa da sala. Ranhuras disfarçadas pela surrada, porém limpinha, toalha xadrez. Agora era sentar no alpendre, na cadeira de balanço de encosto alto e imponente e esperar. Faria crochê contornando uns panos de copa duplamente alvejados com Quiboa, e esperaria. Alaor não tardaria a chegar, suado, cansado, poeira nos vincos do rosto e do pescoço, cabelos ensebados sob o chapéu de palha. Traria pra ela algumas pitangas das grandes ou algumas guabirobas, um ovinho colorido de passarinho, que não chocou… Ele sempre tinha um carinho nas mãos calejadas. Era só esperar. Não tardaria a casa teria vida. Lampião aceso, fumaça na chaminé, conversas e cheiro de comida que ela prepararia com amor. Depois, era lavar a louça, passar a lixa nos garrões dele e com a pontinha do canivete de cortar fumo desencardiria-lhe as unhas. Deitariam, e na cama-de-vento, conversariam um pouco mais sobre o dia que passou e o próximo que viria. O cheiro das goiabas parece agora está no colchão de palhas, no travesseiro de penas e nos lençóis. No alpendre, sentada na cadeira de balanço de encosto alto e imponente, Sara esperou por três noites e dois dias até ser visitada pelo delegado. Da cozinha, o cheiro das goiabas podres infestava a casa, de assalto, como enxame de vespas… Ao longe, ao movimento dos homens que traziam o corpo na padiola improvisada por galhos de guamirim, revoada de trinta-réis.


Escalas de protagonismo no ronche fort

I

 da última vez, todos nós nos excluímos.  
tudo  
o que poderíamos ter sido é:  
uma onda  
como a água te divide em dois
e as luminâncias
(no meio de uma tempestade) 
e conseguem dizer mas não se sustentam:  
arrastam com sonhos palavras de ordem  
(marcação que eu possa já ter cruzado): 
vocês tentarão descrever sem êxito à que me pareço antes de dizer as cidades com melhor custo benefício de perder os declames
- os oh’s e ah’s os cliques e flashes –  
ficcionalizamos os públicos passando em paredes de aço e em esferas
mas mesmo assim não foram dessa vez alegando perda de algo a falar em genéricos antes da viagem  

II

não volto lá sozinho
não vejo como escovar os dentes todos os dias em outro continente na mesma proporção que se frequenta a bebida local
talvez muitos lugares não me lembre   

III

reclames a formar bolas e esferas com a língua.  
uma praia emporcalhada de turistas - 
à disfarce nativo e belo.  
os dentes  
essa barreira à brecar tudo  
trouxas dedos a física da língua
este braço fazendo movimento de cisne a toda uma unidade de extensão dos pés direitos das calhas*:  
o que seríamos sem o estorvo? 
(quando coloca as palavras em seleção
prefere um desenho de indicadores
acham que tem uma distinção  
um fungo na “rivera” 
constante deslocamento que não deixa prestar atenção no que não seja enquadramentos)  

IV

ela  
já esteve procurando também um apartamento  
um emprego  
uma tautologia
(mais guinada à quiromancia
a descobrir as linhas das digitais no registro geral  
-também é ele
uma quiromancia impondo coisas) 
o beco não é essa coisa que se mira e se chega com as mãos  
algumas ferramentas de luz não encarnamos.  

-  

*as senhoras podem ver de engate à emplastro
sondas marinhas juntando grama
noturno chã ou furão de ferro
ceifas britadeiras quedas de temperatura
tudo da mesma maneira untando as mãos  
nós íamos  
e agora não vamos mais  
levando em consideração os joelhos e as colunas fechando círculos
bolsões de sonos  
a corda que fica suspensa partindo uma série de considerações sempre aos despejos:  
chuvas fazendo anatomia de mapas
quedas no armazém retendo
algumas formas de vida
algumas formas de empacotamento
mãos cerrando calhas  
mãos fazendo teto
mãos à procura das luzes em busca do contentamento
as senhoras poderão se alojar no lugar menos possível
algumas ferramentas de luz não encarnamos

nervoso invisível indiscutível molhado e como que de veludo acelerado 

acelerar  
comboios e pontos  
para ser galinha velha
devo gemer cores velhas
tomar banhos opacos
vaporizar as ventas as plantas e as crianças que
chegam pela velhice  
aceleradas
trocar de nariz diariamente
trocar os dias enlouquecer de hora em vez
tocar as orelhas condescendentemente
minhas tuas de ney
bordar as calcinhas novas
cerzir as calcinhas antigas tão cheias
que vazam novidades das noites mal cozidas
abrir a porta do guarda pratos
repetidamente até que o som seja
portanto assim tão parecido  
minha velha vogal mais aguda
ser galinha velha deverá ser encanto para a frente
pele sobre pele sobre pelanca tatuada
tetas verdes de bico para dentro
uma batata doce antes de seu tempo
sem pelos pelas raízes pelo ralo  
feito a escova feito um porco feito espinhos
dar corda ao velho soldadinho russo  
ver graça e tristeza mais graça que tristeza
nova a marcha enferrujada suja bonitinha que só 
sublimar samambaias especialmente
especialmente
tomar o novo uísque envelhecido a fórceps   
deixar a agulha
falar por ney
deixar apitar a chaleira trocar a lâmpada com o troca lâmpadas  
correr pelada pelo corredor no jardim acelerado
me enroscar com heras e ervas impulsivas
acelerar na velhice a guilhotina cabeluda
embebida de tudo que por lá fez casa
estacionamento boate escritório mictório  
e acelerar isso cada dia mais e tanto
me disseram
na velhice é que se sabe o nome daquilo
aquilo nervoso que toda jovem meio que quase sabe e quer saber inteiro
aquilo que todo mundo quer saber o nome nervoso
nervoso invisível indiscutível molhado e como que de veludo acelerado