De açúcar

Salivar, diante da imagem, até não mais aguentar. E lambê-la. Toda. Dos impolutos pezinhos aos angélicos cabelos – incluindo a mimosa coroa. Lambê-la, até não mais poder. E mordê-la. Comê-la. Toda. Dos imaculados pés aos dourados cachinhos – incluindo o gracioso ornato da cabeça. Morder, com especial deleite, seus cândidos joelhinhos e as alvinhas e apetecíveis nádegas. 

É pecado, padre? É? Devorar, assim, uma santinha (tão bonitinha!) de alfenim? 

A geringonça

Deu entrevero de gente. Todos queriam ver o resultado de mais de trinta dias de trabalho. Foi um tal de cavouca daqui, cavouca dali… Homens, mulheres e crianças, de olhos arregalados, formavam um imenso círculo. No centro, um dos engenheiros desatarraxava a cabecinha da geringonça. Eu era guri e fiquei impressionado: como podia caber tanta água dentro daquilo que os doutores chamavam de torneira…

Sobre o Bugre da Choupana

Vivia só. Acostumara-se à quietude e à solidão do campo. Plantava, pescava e caçava pra comer. Galinhas no terreiro, uma vaca leiteira, um pingo sogueiro e um cusco fiel. Amigos não tinha. Era de pouca conversa. Conhecidos? Bem, todos o conheciam e ele, de vista, a todos. Sua história se confunde com a história do povoado. Dizem que quando iniciou-se a vila, com a chegada dos Valna, já existia a choupana no alto da canhada, chaminé fumegando. Uma vez por mês descia à vila, montado no matungo de passo lento. Sonolento. Mala de garupa. Não comprava muito: fumo em corda, querosene, cachaça, vinho e algumas outras poucas coisas de que não dispunha, por não produzir ele próprio no sítio. Falam, em cochichos, que de certa feita, matou um. Mulheres até então não conhecia. Só as via de longe, quando na vila. Raparigas de cabelos lisos e longos, busto grande, debruçadas nas janelas, as luzes avermelhadas lá dentro… Naquele fim-de-tarde-quase-noite, início de junho, fez diferente: abriu uma das cinco de canha que levava pro mês, e ali mesmo, no meio do povo, começou a beber. Andando no meio das gentes, bichos estranhos, pelo canto do olho via os dedos apontados, os risos de canto de boca (escárnio) e o menear de cabeças ao vê-lo passar. Curiosidade tinha, mas decerto, foi mais pela bebida que borbulhava em redemoinho na cabeça bronca, do que por especulação, que sem querer, sem notar, sem se dar por conta, entrou… Contam que as putas sequiosas por desvendá-lo, entre risinhos e puxões, o cercaram com dengos, achegos e chamegos. As luzes avermelhadas lá dentro. A fumaça dos cigarros suspensa qual rabos de galos num céu preparado pra chuva. O cheiro do chinedo e o cheiro de trago dos machos que o olhavam de atravessado, como que não acreditando no que viam. Seria mesmo ele ali? O bugre da choupana? Sem saber ao certo o que fazer, o bugre foi se deixando enrolar por Analice – puta velha e cancheira –, de olhos pequenos como que apertados, de cabelo negro e graúdos cachos, tetas grandes, gordacha e de cara lustrosa, que o arrastou pro quarto puxando-lhe as barbas, e fazendo biquinho como quem chama cavalo novo pela rédea. Dizem que o bugre só saiu dos aposentos da china dois dias depois, passos falhos, pernas bambas. Analice o acompanhou até a porta, e apesar da aragem das manhãs de junho, de leque em punho, afogueada. Obrigou-se a folgar por uma semana – a coitada – por conta das assaduras. A zona nunca mais foi a mesma. O chinaredo, depois da propaganda feita pela colega, espera pelo bugre todas as noites. Até senha foi distribuída entre as moças pra melhor organizar o rodízio. O bugre nunca mais desceu à vila – nem pra comprar cana, nem fumo, nem querosene… No alto da canhada a chaminé continua fumegando… 

Torpor, O Cheiro dos cuscos nas bombachas, A caixa

TORPOR

Eu não queria ouvir o que ela tinha para falar. Como num transe, eu apenas via o mexer dos lábios murchos da velha, sua dentadura frouxa, e o bailar de sua língua saburrosa. Tudo sem som. Eu não escutava nadica de nada. O buço da velha lhe sombreava o lábio, e se misturava com os pelos que lhe saíam pelas ventas. Vez em quando algum perdigoto da bruaca me atingia o rosto. Eu permanecia imóvel. Eu não queria ouvir nada. Nadica de nada. No pátio um dos piás chutou a pelota, que entrou pela porta da cozinha, bateu no pé do fogão a lenha, depois no pé da mesa, espantou o gato que passava preguiçoso, veio girando, girando, girando, até que esbarrou em mim, me tirando do torpor. Lá fora começava um chuvisqueiro finíssimo, parecido com neve. E eu que não queria ouvir o que ela tinha para falar escutei a última frase do falatório da velha espanhola: O velho está morto.


O CHEIRO DOS CUSCOS NAS BOMBACHAS

Enquanto todos brincavam de campinhos, e de ser Batista, Zico, Sócrates, Cerezo, De León ou Falcão, eu preferia ficar com a cuscada. Eu queria ser ninguém. Me perder entre os guaipecas vadios e pronto. E só.

Eu abraçava os cuscos e sentia o coraçãozinho lá deles batendo junto ao meu.

Depois os gritos cessavam. Paravam os chutes. O futebol acabava. Os guris iam embora, cada um para sua casa, levando lembranças de dribles, defesas e gols lá deles… E os vira-latas também se iam, seguiam seu rumo.

Eu, a caminho do rancho, levava nada. Só o cheiro dos cuscos nas bombachas.


A CAIXA

 Ele chegou faceiro, depositou a caixa sobre a mesa e chamou toda a família para que víssemos o que havia conseguido no centro da cidade, na saída do trabalho. Foi uma pechincha, disse. Falou que se tratava de um animalzinho frágil, que faria muito bem a todos. Disse que o bichinho comia pouco, e se chamava Paz. Pediu para que todos se aproximassem. Disse que abriria a caixa. O guri menor arregalou bem os olhos e abraçou a perna do velho. Quando o pai abriu a caixa o bicho voou, e desapareceu por um vão da cumeeira. Mal tivemos tempo de ver a cor do animal. A Paz, tão desejada pelo velho, foi embora de nossa casa, e ainda cagou sobre nossas cabeças. O pai nunca mais foi o mesmo.