Da importância da história

Ao longo dos tempos o homem pensou que era só um. Depois veio a Revolução Francesa e ficou tudo na mesma. Alguns até sabem a data de cor, que eu não sei, mas mesmo assim são capazes de assegurar que a partir daquele momento nada mais como aquilo se passou. Na verdade, na verdade vos digo: nunca se passou nada disso. O homem nunca foi à lua. Ou melhor: o homem foi à lua antes de ficar tudo na mesma. Que é o mesmo que dizer: o homem nunca foi à lua.

A lua não é um satélite, sabeis? Fica bem falar assim (sabeis), porque me distraio sempre do fundamental: ao longo da história tudo se repete, ainda que ninguém esteja disposto a admitir que algo se repetiu. Ora bem, vejamos, sim, os refugiados, coitados. Mas quais refugiados? Refugias-te em ti, refugias-te em mim, e depois dizes que nunca refugiste de ti. Ouve bem: “refugiste”. Soa-te estranho no cérebro? Ainda bem, é sinal que ainda tens algum senso de novidade. Voltaste a fugir, mas agora sabes que nunca pudeste fugir de ti, nem seria bom que o fizesses. Alguém disse - sei perfeitamente quem, só não estou para o dizer - que nunca ninguém fugiu de si, por mais exilado que fosse. Belo, é isso mesmo. Mas esqueçamos a individualidade: ninguém pode ser indivíduo, nunca, não, a indivisibilidade está só ao alcance dos superbusões ou de um qualquer elemento que nunca será visível. Eu divido-me. Agora, por exemplo, divido-me em história.

E quem é ela? Quem é?

Bom, genocídios.

Venham os genocídios. E contemos um a um.

Os Nazis?

Chamem os Romanos. Chamem todos. Todos eles genocidaram. E depois ficaram parados, porque morreram. Coitados dos refugiados - bem entendido - nós. Não sou de sublinhar palavras: mas aqui fica. NÓS.

Mas há sempre este grave problema. Nós não somos eles. A menos que a história existisse, e que soubéssemos que tudo o que vivemos já foi vivido de outra forma e noutra altura.

Mas isso, meu bom amigo, é impossível. Se vinte e cinco de Abril ou quarenta e quatro de Maio ou o trezentos e cinco de Março existiram foi para serem isso mesmo: uma data.

CALEM-SE DATAS.

Sabes que “data” (agora não me apetece investigar, estou a escrever um manuscrito isolado no monte Parnasso) é algo plural que foi dado. Mas sabes que nós, os que somos amiúde e frequentemente (passo o pleonasmo) presenteados esquecemos a dádiva. Daí que tudo seja dado pelo esquecimento.

Mas, desculpem, o tema de hoje (reparem na ambiguidade entre o tu e o vocês) é. História. A História não existe, a não ser que seja para nomear Júlio César como o grande general romano, e não como o filho da puta que destruiu o que restava do futuro da República. Sim, não se esqueçam, hoje podíamo-nos estar a esquecer de como Roma foi cada vez mais uma República até que se tornou numa república, com Cristo e tudo, até ao ponto em que foi sodomizada pelos Bárbaros (que só sabiam dizer bar-bar-bar), que vieram de algures, para depois serem por sua vez remasterizados pelos próprios pagãos-cristãos vindos de alhures que afinal era o mesmo sítio. E depois voltávamos a agora, num ponto talvez mais à frente, num ponto em que cristão-muçulmano-indígena-hindu fosse uma onomatopeia: “oh”, ou como dizem bem os ingleses: AWE (não, tu aí, não confundas com יהוה, olha que te podes tornar ecuménico).

Bom, tudo somado: não à história. Não há história.

A seguir ‘tás-me a dizer que o verbo estar não tem as vogais e consoantes que o iniciam, e isso sim, seria perder todo o universo, toda a gente sabe que a fonética sempre se sobrepôs à ética (basta ler o final do último parágrafo). Fonologia não, é outra coisa, é o estudo da mente, mesmo quando ela passa pelo som. Bom, de qualquer das formas escreve-te o grande poeta grandiloquente, Braga Falcão, que ninguém conhece, mas que quando conhecerem dirão: aquele é o Braga Falcão, para depois - estando eu já felizmente morto - o esquecerem. Melhor das hipóteses: uma placa de rua. Sabem (ou sabeis?), ah, awe, יהוה, θεέ, ॐ, como estou prostrado perante o crescendo da música e das palavras (usei “e” e não um genitivo) que denunciam que somos uma rua. Vivi numa rua chamada Rodrigues Sampaio, noutra chamado Engenheiro Miguel Pais, noutra chamada General Torres. Sabem o que gosto mais? Daquelas felizes e tão infelizes décadas em que vivia numa terra de nome sem nome numa rua tão estranha como “Estrada do Parque” (?, sim é mesmo assim), e em que é de supor havia uma vivenda que nunca teve uma placa a dizer que era uma vivenda. Chamava-se “O Pinhal”. Chama-se.

Mas deixem lá isso. Uma história é uma infância vivida a sós. Por isso nunca nos lembramos dela, por isso é tão difícil recordar. Se tivessem discernimento saberiam, como eu nunca fui capaz, amar o verbo recordar.

Tem um coração lá dentro. E isso é verdadeiramente lamechas, e tu sabes como é bom ser lamechas. É o mais próximo que tens de ser mãe ou pai.

Meteram-me neste tempo que tem a história que sempre o tempo teve. Ou esteve. As vogais e consoantes intrometem-se sempre, nímio. Gosto desta palavra que tu não conheces: nímio. Se a conheces, algo de errado se passa contigo, e devias-me escrever. Estarei cá para te escrever, nem que arranje (gosto deste coloquialismo, afasta-me do pai latim) um secretário (já me lixei, cá está ele em segredo).

Seja como for, amanhã haverá outra história. A de hoje: pessoas infelizes fogem, e as pessoas que se julgam a caminho de uma qualquer felicidade dizem que a infelicidade dessas outras pessoas está numa direcção oposta e contrária, digamos assim, em sentido contrário, e portanto mais vale que as lições de matemática estejam certas e que menos com menos, como é lógico, dê menos.

De resto, odeio hoje. Hoje é uma coisa nojenta. Ou vivemos na história, e assim ela nunca há-de morrer, ou vivemos hoje.

E hoje uma merda qualquer com um nome qualquer marcou uma merda de golo qualquer contra um genocídio qualquer, que gritou “coitadinhos”.

Coitadinhos. Deixa-me só aqui desligar o monitor (ah, é bonito não é, aquele que avisa, não estou outra vez para verificar esta raiz, estou certo que sim), e vou encetar esta próxima hipocrisia: a história existe.

A história tem importância. Pelo menos enquanto disciplina. Vá lá, é importante que saibamos algo acerca do antigamente.

E não ser que não.

Charles Bukowski, ou depois de ler a imortal literatura do mundo

1.

 O mal de grande parte da literatura é tentar ser complexa. Quando tenta não ser, falha. É pouca a literatura que consegue ser não-complexa e ser, ao mesmo tempo, literatura. É claro que uma leitura na diagonal – sendo aquilo que mais vezes acontece com a maior parte dos escritores que lemos – poderá induzir o leitor em erro, fazendo crer que a literatura não-complexa, que tem o privilégio de estar a ler, é ridícula e não é boa literatura. Um exemplo: Charles Bukowski.

Bukowski é associado à condição de marginal, de proscrito. É também associado a um estilo de vida que muitos consideram pouco aconselhável à saúde. Esse é o primeiro erro: acreditar que Bukowski é só álcool, mulheres e fornicação. Não vou dizer que o não seja. Grande parte da sua obra gira em torno destes três temas. Contudo, eles são apenas o ponto de partida para muito mais.

Charles Bukowski é, sem dúvida alguma, alguém que conhece profundamente o ser humano. O ser humano é o principal personagem da obra bukowskiana. O ser humano e a sua relação com o mundo. Disso não devemos ter a menor dúvida. O seu alter-ego, Henry Chinaski, é disso prova: «Bukowski created a literary persona named Henry Chinaski as a vessel for expressing his alternative view of the world, (…) Trough Henry Chinaski, Bukowski is able to attempt to reveal the absurdity of the world with an element of distance and without succumbing to despair.» (Daniel Bigna).

É claro que, para muitos, Chinaski não preenche os requisitos necessários para ser um verdadeiro personagem, isto é, segundo o cânone, Chinaski não possui a complexidade nem a profundidade, por exemplo, de Ahab, Meursault ou Raskolnikov.

 

2.

Charles Bukowski nasceu em Andernach, na Alemanha, em 1920, filho de pai germano-americano e mãe alemã (o avô materno de Bukowski era um ex-oficial do exército alemão). Os primeiros três anos de vida são passados na Alemanha, em contacto directo e diário com a língua alemã. É então que a família decide mudar-se para os Estados Unidos da América, escolhendo a cidade californiana de Los Angeles como destino final.

O início de vida num novo país não foi fácil para Charles Bukowski. Foi em Los Angeles que ele teve, pela primeira vez, contacto com a língua inglesa, pois até então, em sua casa, só se falava o alemão. A relação com o pai também não foi fácil: era um homem violento, arrogante. Em contrapartida, a mãe era submissa à vontade do pai, nunca se opondo a nada que ele decidisse, por mais estranho e descabido que fosse. Isso criou em Bukowski um grande e poderoso sentimento de revolta, pois a única pessoa que o deveria defender contra os ataques de fúria do pai, não o fazia. Bukowski chegou mesmo a dizer que o pai foi quem o ensinou a escrever, a ser escritor. O pai parece ser o motor de arranque de toda a escrita de Bukowski. Poderemos perguntar: sem a “ajuda” do pai, Bukowski teria sido escritor? A resposta é sim.

Bukowski, como um dia referiu o seu editor John Martin, nasceu com a consciência de que era um génio. Publicou pela primeira vez em 1944, com vinte e quatro anos, mas só aos trinta e cinco é que começa a publicar poesia. É a poesia que constitui grande parte da bibliografia do autor, apesar de ter publicado seis romances e várias colectâneas de contos, perfazendo, ao todo, mais de quarenta e cinco livros publicados em vida.

 

3.

Há um problema com os génios: dificilmente lhes perdoamos toda e qualquer “falha”, ou todo e qualquer “defeito”. O génio deverá ser um paladino da ordem e do socialmente aceitável. Ao génio não é permitido o desvio. Daí, talvez, o facto de a genialidade e a loucura andarem de mão dada. A fronteira, entre ambos, é muito ténue. O que é ser génio? O que é ser louco? Salvador Dali seria um génio-louco ou um louco-génio? Bukowski tinha consciência de tudo isso. De outra maneira não se entende a sua iconoclastia. A título de exemplo: a sua relação com as mulheres. Esta poderá ser justificada tendo em conta essa mesma iconoclastia, que Bukowski tanto prezava.

Sobre as mulheres muito se poderá dizer: machista, misógino, sexista. Na altura em que Charles Bukowski escreveu e publicou os primeiros romances (Correios e Factotum), os ideais da segunda onda feminista (iniciada nos anos 60) estavam a ganhar força na sociedade. Era, por assim dizer, “moda”. Ora Bukowski era tudo menos de modas, e talvez tenha visto uma oportunidade única para irritar uns quantos (ou umas quantas), fazendo justiça à fama que começava a granjear. No entanto, não é de todo errado pensar que a hostilidade em relação às mulheres é fruto da sua infância, fruto da relação de um pai obsessivo e de uma mãe passiva. E não podemos esquecer que toda a obra de Bukowski gira em torno de uma certa marginalidade dominada por homens: «I his underground society he describes a purely masculine world, in wich women are hardly more than splashes of a puddle through wich hardy fellows traipse, mostly drunk, or in wich they wallow.» (Karin Huffsky).

 

4.

Bukowski recusa a complexidade da maior parte da literatura Beat (lembremos, por exemplo, os romances de William S. Burroughs) e a metaficção do experimentalismo pós-moderno que grassou na literatura dos anos 60. Em vez disso, Bukowski opta por uma literatura livre, simples. É claro que nada disto é inocente. A pretensa simplicidade da escrita de Charles Bukowski pretende ser uma resposta àquilo que Gay Brewer designa como «collegeboy finger exercises». É claro que o autor de Mulheres sabe que expondo o seu trabalho à crítica o mesmo será comparado com aquele dos seus contemporâneos. Daí, talvez, a opinião generalizada de que a escrita de Bukowski é repetitiva, pouco “trabalhada” e muito pouco intelectual.

Mas a vida, afinal, não é repetitiva, pouco trabalhada e muito pouco intelectual?

Privados do património – a exposição de Josefa de Óbidos no MNAA

Este arguto jogo de palavras da primeira parte do título foi retirado de uma obra do ensaísta e professor da Universidade Federico II de Nápoles, Tommaso Montanari. O ensaio Privati del Patrimonio (Einaudi, 2014) pretende elucidar o leitor sobre o perigo corrosivo da entrada dos privados na gestão do património cultural público italiano, procurando, portanto, responder às questões “Porque não?” ao seu ingresso e “Qual o mal?” que disto advém e o quão nociva pode ser a sua acção no desenvolvimento e difusão da cultura.

O título do livro e a breve menção do objectivo do seu conteúdo são deliberadamente mencionados para poder ilustrar a questão sobre a qual me debruçarei baseada no exemplo da mostra sobre a obra de Josefa de Óbidos, em exposição no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) até dia 6 de Setembro. Por meio desta justaposição, pretende-se com este texto dar uma amostra da realidade mercantil e circense em que se tornou o património cultural nacional, utilizando o exemplo da própria exposição e de como os responsáveis pela organização do evento falharam no incentivo do público geral, e em particular do público jovem.

Como descrito pelo MNAA, esta exposição reúne «Mais de 130 peças (pintura, escultura e artes decorativas) vindas de várias instituições nacionais e internacionais, os museus do Prado e de Bellas Artes de Sevilla, o Mosteiro do Escorial e de inúmeras colecções privadas, portuguesas e estrangeiras [...]» e como daqui se intui, uma colecção rica, rara e difícil de reunir e expor ao público. A revisitação da obra de Josefa de Óbidos tem como uma das motivações «Mostrar a um novo público as suas pinturas, muitas em colecções privadas[...]»., situação que complica a exposição e a apreciação do trabalho de uma talentosa pintora que, graças à condição de quase anonimato que a cerca, se torna injusta e quase exclusivamente circunscrita ou relegada às ilhas das páginas insuficientes dos catálogos, ao passo que o público geral não pode livre e equitativamente aceder ao mundo de Josefa de Óbidos, como se de um luxo reservado apenas aos bem-aventurados se tratasse, seja por não possuir meios económicos bastantes para a aquisição dos poucos catálogos existentes, seja por não possuir conhecimentos suficientes sobre a artista –  assimetrias que as instituições culturais deviam corrigir, assegurando o acesso de todos os cidadãos ao usufruto da cultura e perseverando na informação, na instrução e no incentivo à (re)descoberta do património nacional.

Esta disparidade entre palavras e actos revela-se no preçário estipulado para a exposição. Façamos, por isso, uma comparação, em primeiro lugar entre os preçários da exposição temporária (ET) e da exposição permanente (EP) nos pontos de maior interesse (informação mais detalhada nas imagens). Ora, na EP a entrada gratuita para crianças estende-se até aos 12 anos de idade; o público jovem frui de um desconto de 50% apresentando o cartão de estudante ou o cartão jovem – recorde-se que o portador deste cartão pode ter entre 12 e 30 anos; a entrada é gratuita, por exemplo, para professores e alunos de qualquer grau de ensino, incluindo universidades, quando em visita de estudo mediante marcação prévia. Notemos agora que a entrada na ET é gratuita para crianças até aos 6 anos de idade; o mesmo desconto de 50% para jovens cobre apenas as idades entre os 7 e os 18 anos; os professores continuam a beneficiar de entrada gratuita aquando de uma visita de estudo, porém cada aluno passa a pagar o ingresso no museu: para as escolas dos vários graus de ensino o preço fixado é de 2,50 euros, ao passo que para os universitários o preço estabelecido é de 3,50 euros; sublinhe-se, todavia, que um estudante, como indivíduo que ocupa somente o seu metro quadrado, apenas acompanhado pela sua consciência, mediante apresentação do documento que comprove o seu estatuto, não tem direito a desconto. É de um sabor amargo para o jovem visitante, entusiasmado com o evento, estender o braço, entregar o cartão de estudante e ouvir que o desconto não é válido a menos que esteja acompanhado pelos colegas e pelo professor. Terá de ouvir de novo pela vida fora, como provavelmente já tantas outras vezes ouviu, que os jovens não vão aos museus, que os jovens não se interessam pela cultura, nem pelo património, nem pela história, que vão tão-somente a este tipo de actividades quando lhes são impostas pelas escolas e pelas universidades. Evidentemente que os moços agora devem ambicionar, como disse ironicamente um senhor idoso na bilheteira, pela velhice para poderem entrar nos museus. Que se lhe dê razão, mas perdoe-se-lhe ao mesmo tempo o exagero provocado pelo sentimento opressivo da indignação que sempre ajuda a exaltar o ânimo. Vejamos agora as diferentes tabelas de duas exposições de grande relevo em exibição no museu: “Os Sabóias: reis e mecenas”, de uma colecção proveniente de vários museus italianos, como do Palazzo Madama e da Galleria Sabauda; “Rubens, Brueghel, Lorrain: a paisagem nórdica do Museu do Prado”, a primeira exposição em Portugal que acolheu o acervo do prestigiado museu sito em Madrid.

Como se pode verificar pelas imagens no final da página, e como parece ser regra geral, as exposições temporárias apresentam uma lista de preços sempre mais reduzida e com modalidades de desconto sempre mais pobres paragonando-as à exposição permanente. No entanto, não obstante a sua condição de cabeça de cartaz, repare-se que tanto uma exposição como a outra praticaram o consueto desconto de 50% sobre o preço cheio do bilhete para estudantes. Infelizmente tão-pouco foram considerados outros pontos importantes, como considera o MNAA na exposição permanente, como o desconto para cidadãos com mobilidade reduzida e respectivo acompanhante e a entrada livre a desempregados residentes não só em Portugal mas em toda a UE; pontos que qualquer instituição cultural não pode ignorar, sobretudo uma instituição pública, não excluindo da cultura os cidadãos independentemente do seu estatuto económico e social, esforçando-se por proporcionar condições suficientes que contrabalancem estas oscilações e garantam equitativamente e sem distinção o ingresso de todos os cidadãos nos eventos organizados. A verdadeira função constitucional do património não é a de produzir o desenvolvimento económico, como este neoliberalismo desenfreado nos quer fazer crer sobre qualquer coisa, mas o próprio desenvolvimento da cultura. E evoque-se a propósito disto a Constituição da República Portuguesa:

 

- capítulo III, artigo 73, nº 1: Todos têm direito à educação e à cultura; nº 3: O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as colectividades de cultura e recreio, as associações de defesa do património cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais;

- capítulo III, artigo 78, nº 2: alínea a) Incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio;

 

Esta estratégia de preços pode ser prejudicial para um museu da importância do MNAA nas suas receitas e poderá mesmo acentuar o desinteresse do público para novas exposições, sobretudo do público jovem. Um artigo do jornal Público divulgado no dia 24 de Julho (“Visitantes dos museus e palácios crescem 10%”), chama a atenção para o crescimento mais ou menos expressivo de certos museus, dos quais consta o MNAA, mas não pelas melhores motivos. Segundo consta, “dos museus em perda no que toca a entradas, a lista é encabeçada pelo Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), com 80.591 (-43,7%), seguido do Museu de Arte Popular (7.708; -12,1%) e do Museu Nacional do Teatro (22.468; -10,3%).”, que desgraçadamente lidera com uma enorme diferença. Vemos, portanto, que o MNAA depois da exposição responsável por acolher o acervo do Prado confrontou-se com dificuldades para contrabalançar o sucesso conquistado – cerca de 80 mil visitantes; a exposição dedicada aos Sabóia sofreu uma ligeira queda em comparação e, por sua vez, a exposição sobre Josefa de Óbidos recebeu cerca de 10 mil visitantes no seu primeiro mês. Reduzir as opções de acesso à exposição herdeira não é receita de grande sucesso, principalmente pelas ambições da exposição sobre Josefa de Óbidos; portanto, porquê esta guinada na abordagem com o público?

Sobre a exposição de Josefa de Óbidos, um outro artigo do Público (“De pintora provincia a mulher culta, a emancipação de Josefa de Óbidos”) confirma que «metade das obras na exposição [...] são empréstimos de privados», logo, como já mencionado, uma colecção difícil de reunir num só lugar, e esta realidade é reflectida pelas poucas exposições realizadas em Lisboa sobre a pintora – a primeira em 1949 no MNAA e outra em 1991 no Palácio da Ajuda –, o que manifesta um desinteresse que provavelmente poderia ser explicado pela condição de provinciana a que foi relegada. Visitou a primeira exposição dedicada a Josefa de Óbidos em 1949, como dá conta do sucedido o artigo, o escritor Miguel Torga, que manifestou o seu desagrado e decepção na entrada respectiva ao dia 30 de Maio do Diário V: «Grande e penosa desilusão. A senhora fazia renda com os pincéis. Que falta de imaginação, que miséria de desenho, que geleia, tudo aquilo!». Diz a autora do artigo que este desprezo de Torga não foi um caso isolado, foi, aliás, partilhado pela maioria dos críticos que por fim concluíram tratar-se de uma artista inferior, «menor, monótona e ingénua», independentemente da fama que gozava entre os coleccionadores, um pequeno nicho de apreciadores que perdurou até hoje. Uma das intenções desta exposição, como assumem os comissários Joaquim Oliveira Caetano, José Alberto Seara Carvalho e Anísio Franco, é «afastar de Josefa o mito de artista provinciana, beata e prendada e apresentá-la como uma mulher emancipada e culta». Juntando este depoimento ao outro citado no início deste texto, acerca da intenção do museu e dos organizadores pretenderem dar a conhecer a um novo público a obra de Josefa de Óbidos, dificilmente se deduz como será apagada esta noção de pintora provinciana olhando para a estreitíssima porta aberta a um mais amplo e “novo público”, salvo a verdadeira ambição seja montar uma grande montra que exponha os vários quadros a novos coleccionadores interessados. Mas este não é um “novo público”, é um público alvo, uma rota de comércio, que pode ajudar a elevar o valor da obra de Josefa de Óbidos, e falemos de valor enquanto somas de dinheiro, um público sobretudo preocupado em aumentar as próprias fortunas, recompensado assim pelo esforço com que até hoje pacientemente nos privou dos trabalhos da artista. O novo público é sim aquele a quem está vedada esta exposição, um público que desde 1991 não teve direito a uma nova abertura destas colecções privadas que agora se encontram expostas num museu público. É assim que se pretende mudar a reputação de Josefa de Óbidos, dando-a a conhecer aos mesmos coleccionadores que detêm a sua obra e aos críticos que a estudam? A estes, coloco as mãos no fogo, é-lhes concedida entrada livre, algo que nem na tabela de preços está previsto para visitantes cuja idade vá além dos 6 anos. Esta inacessibilidade alimenta e perpetua a fama de Josefa de Óbidos como pintora de província, de bolinhos e de geleia, como disse Torga, e acentua este anonimato, esta surda estranheza instalada entre gerações (afinal de contas passaram já 24 anos desde a última mostra) que, excepto o caso de terem estudado Belas Artes ou lido, fruto do estudo ou da curiosidade, algum manual de arte que dedique meia dúzia de linhas a Josefa de Óbidos, ou ouvido mencionar o seu nome, ou lido os diários de Torga, cujas declarações polémicas podiam estimular a curiosidade em verificar a validade da apreciação feita pelo autor, pouco conhecem sobre o tema.

O copioso número de imagens digitalizadas facilita o acesso à visualização de fotografias de várias pinturas da autora, coisa que por si justifica os preços e a ausência de descontos para os vários visitantes? Se sim, qual o sentido sequer de inaugurar uma exposição? Será o futuro dos museus um edifício digital com imagens emolduradas, dispostas numa certa ordem, com uma legenda e uma explicação acessível por meio de um simbólico pagamento? O artigo do Público explica a organização temática da exposição e qual a intenção de cada sala, que cobre o período de aprendizagem de Josefa com o pai, a fase das naturezas-mortas e das influências de Francisco Zurbarán (conhecido como “Caravaggio espanhol”), até à fase de maior maturidade; e graças a esta minuciosa organização, um dos curadores da exposição, Anísio Franco, facilita a nossa argumentação: «Aprendi mais nesta semana demontagem do que numa vida de fotografias». Uma pena que esta aprendizagem e todas as noções sejam acessíveis a um público restrito; uma pena deixar de fora a importante fatia que representa o público jovem, dos 18 adiante, aquele que mais deve ser incentivado e cultivado, pois, afinal de contas, serão os responsáveis por ensinar e transmitir o legado cultural e patrimonial às gerações futuras; uma barbaridade impedir, num período de crise social e económica, perante as dificuldades por que muitas famílias passam, que pessoas sujeitas a viver com o mínimo para a própria subsistência não possam beneficiar de entrada livre ou de um desconto mais generoso – ou merecem mesmo não ver a mostra?, perguntariam alguns cépticos; se a sua condição não lhes permite, quem sabe como chegaram a um ponto assim extremo, talvez fossem preguiçosos, provavelmente isso, se fossem trabalhadores sérios teriam a confiança e a segurança reforçada do patrão, dado que os despedimentos em massa, devido a falência, a fuga fiscal, a branqueamento de capitais, são apenas um pequeno e desditoso caso isolado –, situação que, como se viu anteriormente, viola a Constituição. Relembremo-la: “Incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio”. E aqui urge abrir outra questão sobre o panorama da cultura nacional que se nos apresenta: a cultura é um bem comum e de acesso igualmente comum, ou é um luxo? Abrindo um parêntesis para reflectir sobre esta interrogação leia-se esta vinheta de Calvin & Hobbes, de Bill Waterson:


Mesmo para aqueles que crêem na arte como um luxo, nem para esse nicho ela está reservada; não é dono dela quem tem posses, e isto por duas razões: primeiro, ter dinheiro não quer dizer que entendam um chavo do que a obra e a sua linguagem representam, banalizando-a a uma simples soma de cifras e privando-a de significado, a pior e mais grave redução de uma obra de arte; segundo, se a arte não é para a contemplação de todos, então não é sequer para ninguém, a não ser para os próprios artistas, pois como diz Calvin, a linguagem privada e sofisticada da arte apenas seria transparente e inteligível para os artistas. Quem sabe se estes indivíduos tomassem a devida consciência da sua ignorância talvez desistissem deste mercantilismo circense e deixassem visíveis, públicas e acessíveis as várias obras a quem deseja entendê-las e decifrar os seus códigos – estimular novos talentos, quiçá um novo artista em formação –, caso contrário a cultura é inevitavelmente vulgarizada e transformada numa acompanhante de luxo da vida pública.

Ou será, por outro lado, tudo isto uma grande montra para potenciais clientes dos quadros de Josefa? Recordemos que um luso-descendente em Janeiro deste ano arrematou num leilão pelo valor de cerca 239 mil euros, para depois doar ao Louvre, a obra “Maria Madalena confortada pelos anjos”, uma generosa oferta para o museu francês e uma retumbante desconsideração pelos museus portugueses, mas em contrapartida um bom aumento de capital dos quadros de Josefa e uma óptima oportunidade para os coleccionistas exporem os seus tesouros, primeiro em Lisboa e dada a oportunidade, que surgirá, em Paris. Já o magazine francês La Tribune de l'art, num artigo escrito a 13 de Julho dedicado à exposição decorrente no MNAA, começa recordando o leilão, alonga-se depois numa detalhada análise à vida e obra de Josefa de Óbidos e conclui sublinhando que “Le Portugal à son tour, incontestablement, mériterait d’être montré à Paris.”. Quem sabe mesmo se o próximo destino de Josefa depois desta doação ao Louvre não será uma das galerias do próprio museu. Para o caso desta intuição se concretizar, relembro que o ingresso único do Louvre para a exposição permanente e para as exposições temporárias custa um total de 15 euros, ou 24 euros se o visitante optar por uma dupla jornada no museu. Com efeito, não obstante a quantidade de oferta, os bilhetes são mais custosos e o próprio museu não permite uma escolha selectiva do leque, por exemplo, para uma só exposição temporária. Todavia, o preço a pagar para entrar no Louvre não parece tão caro quando comparado com a tarifa combinada entre exposição temporária mais exposição permanente do MNAA de 11.50 euros. Relembremos também que o custo de vida em França é outro, tal como o ordenado mínimo, cerca de 1450 euros, quase três vezes mais que o português. Ademais, a entrada a todas as exposições decorrentes no Louvre é livre, mediante a apresentação de um documento que comprove o seu estatuto, a desempregados e a beneficiários de serviços mínimos sociais (minina sociaux) apresentando um comprovativo de data inferior a um ano, a visitantes de mobilidade reduzida e respectivo acompanhante, a todos os professores dos vários graus de ensino, incluindo universitários de História de Arte e de todas as matérias relacionadas com a arte, a artistas plásticos, a menores de 18 anos e a jovens entre os 18 e os 25 anos; significa que podem todos aceder sem limites à colecção do museu e às exposições temporárias. Para aqueles cuja idade ultrapasse este limite, podem ainda beneficiar de uma tarifa reduzida até aos 30 anos de idade aderindo ao cartão Louvre Jeunes.

Que não se veja esta última explanação como um acto gratuito de publicidade ao museu, mas sim para ilustrar com as matizes certas o contraste entre dois museus geridos pelos respectivos estados e de como cada um lida com a gestão do seu público e com colecções provenientes de outros museus ou de coleccionadores privados. O próprio Louvre não estará isento de críticas sobre determinados aspectos das suas políticas, mas não se lhe pode criticar o modo como gere e incentiva o público geral, de como tenta corrigir as assimetrias sociais com a criação de várias tarifas que possibilitem a entrada indiscriminada de todos, e de como se preocupa igualmente em cultivar o público jovem, de como o protege desde a infância até à adolescência, de como o preserva a partir da entrada na universidade até praticamente aos primeiros passos no mundo do trabalho.

Enfim, como é costume ouvir a velha sabedoria popular dizer: cada um colhe segundo semeia.

Em busca da Brasiliana

O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, 2012

Na nossa mídia de massa, Brasil e brasileiros são retratados por três lentes principais, todas elas irremediavelmente distorcidas. Esse triclope midiático inclui grande parte -- ao menos, a parte que mais aparece -- da televisão, do cinema, da literatura mais abrangente e até do imenso Instagram coletivo que dá corpo à hashtag #Brasil. São elas: a lente do estrangeiro, a lente para o estrangeiro, e a lente que tem como fotógrafo e fotografado essa coletividade que chamamos de nós mesmos (na Europa, se chamaria povo. No Brasil, não).

Sem dúvida, essa etnografia discursiva e seus resultados atrofiados são amplamente conhecidos e criticados. Contudo, meu ponto é exatamente um contraponto: não quero falar da exploração daquele que é falado, mas problematizar a dificuldade que do falante (artista, jornalista, cineasta, escritor, e, em grande medida, leitor). A dificuldade que esse falante brasileiro tem de enxergar a si mesmo. Conhecendo quem discursa, talvez conheçamos melhor as falhas de todos os seus discursos.

Quando se trata da lente do estrangeiro sobre o Brasil, enxergam-se os estereótipos, e pouco além. Sabemos disso.O futebol, o Carnaval carioca, a praia de Copacabana, a partida no Maracanã, sa favelas, a Amazônia. Até pouco tempo, a lente do estrangeiro era um cartão postal de 1990, daqueles que vemos em bancas de jornal. Araras, bundas de fora, Brush Script. Hoje, temos mais nuances. Com megaeventos de um lado e a Economist do outro, não significa que estejamos menos estereotipados.

Mas a lente se inverte, na segunda distorção, também muito debatida: o olhar é nosso, mas feito para o estrangeiro. O porta-voz é o artista (o cineasta, o fotógrafo, o autor) e o tema é, por excelência, o despossuído. Prevalece a jornada etnográfica à alteridade: excursões à favela, safaris na periferia, e outras aventuras que conectam momentaneamente mitos e leitores, e que, no fim, deixam as partes mais distantes do que estavam. Autor nenhum chamaria seu personagem para um jantarzinho, num sábado.

Quando finalmente nos retratamos para nós mesmos, facilmente viramos uma telenovela. Só gente fina, com os problemas mais eruditos. Não tem tio de bermuda e chinela, não tem aniversário de criança, ninguém leva sobra de almoço para casa ou o som do Domingão do Faustão -- quando a vida real aparece, é sob a lente transtornada de alguma alteridade sobre nós; um Baudelaire anacrônico, um Proust latino, um transplante qualquer lamentando esse incapacitante desgosto existencial sobre a vida prosaica. Em suma, eis a tragédia: o lamento não é pelo que somos, mas pelo que não somos. Há um problema de autenticidade.

E o problema se aprofunda: porque as circunstâncias do Brasil não permitem a mesma joie de vivre de outras sociedades. Mas tomamos esse direito, mesmo assim. Somos um comercial dirigido por David Lynch: o casal caucasiano atravessa o calor do concreto, apaixonado, pisoteando o rosto da gente ensanguentada, abraçando a bolsa Louis Vuitton, por toda a eternidade. Somem no horizonte numa SUV. Troca-se o canal. O Brasil agora é louro, numa Hollywood-pesadelo: somos a família ariana num McDia feliz, na Berlim de 1944.

Nessa face oculta do “nós” brasileiro, nós, detentores do discurso, ficamos ironicamente sub-representados, entre o complexo de superioridade e inferioridade. É aí que mora a menos importante das tragédias, mas aquela que fala a quem lê e escreve. Prova-se nossa incapacidade de autorretrato. Excursionamos de novo. Não sossegamos em nossa própria companhia. Não suportamos nossa própria companhia.

Não escolhemos amar o desvirtuoso e idiossincrático estado das coisas, seus defeitos, seus disparates, sua estética tacanha. Poderíamos odiar o estado das coisas e amar a vida que se desenvolve ali.Nem que fosse pelo fato inexorável de ser a unica vida realmente autêntica nos dada. Mas odiamos como os outros nos odeiam. Queremos ser hipsters, queremos Paris, queremos Budapeste. Queremos Starbucks, como se fosse Los Angeles. Nosso grau zero de escrita é uma imprecisão geográfica. Consumimos um Brazil importado, paradoxalmente, made in Brazil. Há só aquilo que diz: não sou como os outros, nem como a mim mesmo, porque eu mesmo sou sem-graça.

 

Uma questão estética

Para ficar no cinema (que é uma comunicação de maior abrangência que a literatura, especialmente hoje), afirmo que devo ter visto o Texas e seus detalhes muito mais vezes do que vi o Ceará. À parte de Manhattan e da California, os americanos também retratam o seu sertão. Na mídia de massa americana, pode-se dizer que mulheres são sub-representadas, que latinos são sub-representados, que os negros também o são. Mas os caipiras, jamais. Esses têm a sua tribuna garantida, como parte integrante do que é ser americano. É através deles, e das suas variadas estéticas, comumente tidas como tacanhas, que surge a Americana. A escola estética do cotidiano yankee traz o passado e atualiza o presente. Nostalgia, folclore e a vida prosaica acabam retratados, criticados e, por fim, celebrados e cristalizados na composição dos inúmeros retratos da América.

Se a Americana, um dia, teve como representação maior as pinturas de Hopper (as cenas mais cotidianas, o casal na varanda, o diner na madrugada, a mulher solitária no café), entendê-la como “Hopper”, hoje, seria apenas nostalgia. Mas o cinema trata de atualizá-la:, a Nova Iorque de Faça a coisa certa ou de Woody Allen, o ônibus escolar de Forrest Gump, o neon à beira da estrada de Paris, Texas, o filme n’A Última Sessão de Cinema, o inverno de Fargo, a reunião de boliche de Lebowski, o uniforme de garçonete e o Thunderbird de Thelma & Louise, o diner de Pumpkin e Honey Bunny, as férias e o neogangsterismo das Spring Breakers, a banheira e o spaghetti de Gummo, o sofá de veludo de Napoleon Dynamite. E os matizes variam entre si, mesmo quando representam objetos semelhantes. Enquanto a marginalidade de Wim Wenders é bela, a de Harmony Corine é deformada; enquanto Zemeckis constrói anti-herois carismáticos, os irmãos Cohen conseguem fazê-los desprezíveis. Os exemplos são muitos.

A mesma abundância, mesmo que fosse proporcional, nunca se verificou no Brasil. Nem se somássemos televisão, literatura, cinema e teatro. Continuo no cinema, e pergunto qual é a Brasiliana que se forma: A Falsa loura de Carlão? O Cheiro do ralo de Dhalia/Aquino? Os prédios sufocantes d’O som ao redor? O mercadinho de Trabalhar cansa? Os exemplos são rarefeitos, embora tragam novo fôlego para essa apreciação.

Não se trata, apenas, de apreciar os casos esparsos, mas de unificar uma estética de referência à qual que podemos recorrer. Algo que faça poder existir, algo que tenha uma entrada na Wikipédia. Abre-se a pergunta: o que poderia vir a ser, então, uma estética “Brasiliana”? Que artefatos, que maneirismos, que herança cultural ela detém? A ironia na dificuldade de se encontrar uma resposta, já tão tardia, é que para frui-la basta olhar ao redor.

O Corpo Inglorioso

A inovação de uma noite: de uma alegoria política ao prazer do terror.

Para muitos críticos do cinema a primeira longa-metragem, no circuito comercial, de George Romero, Night of the Living Dead, abre o género do terror a uma nova época, da sua modernidade, ou mesmo da sua pós-modernidade.[1] Tendo sido inicialmente pensada pelo realizador como uma alegoria, centrada exclusivamente nos Estados Unidos da América, Romero procurava traçar o diorama ou o quadro geral de um mal endémico, apresentando um “paralelismo entre aquilo em que o homem se está a tornar e a ideia de que as pessoas operam segundo vários níveis de insanidade apenas visíveis a si mesmo”.[2] Contudo, o filme rapidamente foi-se modificando aquando e durante a sua gravação; e é hoje entendido pelo seu criador como um divertimento, mantendo embora a transgressão, reconhecida ainda pelo mesmo, inscritos, de imediato, na história do cinema. Mas o que introduziu Romero, o que transformou ele?

Até à data da sua projecção, no circuito americano de drive-in – motivado, acima de tudo, pela descrença da distribuidora no filme, mais do que pela qualidade inerente ao mesmo –, o género de terror cinematográfico volteava em torno da estrutura já clássica estabelecida pelas novelas e romances góticos e de horror. As características principais, celebradas pela indústria de Hollywood, concernem, maioritariamente, o seguinte:

1)               a presença de um Outro (normalmente um monstro) que corrompe a ordem natural e/ou da normalidade;

2)               a edificação da figura de um herói por acidente (é a desestabilização da normalidade que conduz ao surgimento da heroicidade, ou instala o sentimento de heroicidade da e na personagem);

3)               a criação de um conjunto ou equipa unidos em prol de um sentido; o contributo de uma força (a ciência, o exército, o governo, a razão) em defesa do herói para derrotar a força desequilibrante; e, duas das suas linhas mais afirmadas,

4)               o elogio do amor (o herói e a princesa) e da família (salvar os seus membros, vingar a morte de outros, honrar a memória de alguém, etc.).

Todas essas características são corrompidas por Romero, principalmente com a reabilitação do zombie. Todavia, antes de abordarmos a figura, vejamos rapidamente outros aspectos da película que a inscreveram nos arquivos cinematográficos.

A história da criação de Night of the Living Dead está, toda ela, envolta numa bruma de acasos que proporcionaram o seu consequente elogio. Os indícios da sua originalidade e do seu reconhecimento como filme de arte, ao invés de estritamente comercial, deveram-se tão-somente ao reduzido orçamento. Esse aspecto, em tudo fundamental, conduziu, quer o realizador quer toda a equipa da Image Ten, a um trabalho artesanal e a escolhas de produção que fizeram as delícias dos críticos, dos amadores e dos espectadores:

a) selecção da película em preto e branco e com algum grão – o que, nos anos sessenta, foi entendido como uma decisão de uma séria intenção do criador em dotar o filme com uma aparência documental, de naturalidade, de real projectado na tela;

b) uma filmagem sequencial acompanhada por um crescendo de texto – de modo a obterem mais dinheiro os seus criadores tinham de prosseguir com os seus contratos de realização de anúncios televisivos estabelecidos entre a Image Ten e o sector industrial de Pittsburgh, pelo que a realização foi intermitente, obrigando assim a ser gravado tal como surge ao espectador; bem como, à medida do tempo disponível, mais texto foi sendo acrescentado, razão pela qual diálogos e monólogos aumentam e intensificam no desenrolar da acção;

c) a selecção dos locais e do elenco – tudo filmado na região, com pessoas da cidade de Pittsburgh, especialmente o pelotão de caça aos zombies e os próprios monstros, alguns jornalistas (é de relevar que o texto do locutor das notícias foi escrito pelo próprio, finalizando com o seu nome próprio como terminava as suas emissões noticiosas, bem como certas imagens foram mesmo captadas por um canal televisivo local, cedidas a George Romero e inseridas na película), polícias, membros da equipa de rodagem e de produção a integrarem o elenco;

d) a escolha do “herói” – puro acaso, para Romero, já que nenhuma vez o texto refere qualquer etnia e o casting ter decorrido com critérios de “cegueira”, um blind casting, ou seja, Duane Jones (Ben) foi seleccionado pela sua qualidade representativa e por ser amigo da equipa da Image Ten.

Mas nem tudo foi motivado pelo orçamento. Certas opções de realização foram meditadas e premeditadas, especialmente a destruição da estrutura hollywodesca do género do terror. Tendo trabalhado de perto com Alfred Hitchcock,[3] desgostando do seu método de realização fechado a qualquer improvisação da parte dos actores, Romero permite no seu plateau o surgimento do acaso permeado pela liberdade de acção de toda a equipa, actores e cameramen – não só a rodagem principiava minutos depois dos actores se porem em movimento, a estabelecer relações, a executarem acções por sua própria decisão, igualmente Romero recorre a um processo cubista, no seu entender, de captação de cenas e de edição de imagens (mais desenvolvido nas suas criações posteriores, quer as sequelas quer nas suas outras obras) – o que lhe possibilitou, para além da cor e do grão da imagem, alcançar essa mesma sugestão de «naturalidade», de real ou aparência documental, ou seja, perturbar a ficção dos filmes de terror. Porém, mais relevantes são os próprios vírus que infectaram o género afastando-o do passado. De facto, a questão colocada por Ben Hervey, na sua profunda análise a Night of the Living Dead, é de enorme importância: se a película se inscreve na tradição gótica novelística e fílmica, pela recuperação da temática de uma “iluminada luta de um presente face a um passado barbárico”[4], o que é, pois, o passado? Os redivivos ou a estrutura política, económica e social dos Estados Unidos da América criticada por George Romero (e, conjuntamente a esta macro-estrutura, a micro alicerçada em Hollywood)?

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