Ponto de partida

Ludwig wittgenstein

Com um ponto de partida podemos conquistar o mundo, levantando-o, talvez. Arquimedes, Montaigne, Descartes, Nietzsche e Wittgenstein, entre muitos outros, procuraram essa mola que nos pode catapultar até ao céu, azul ou negro, tanto faz. É isto que esboço em menos de três minutos no podcast que se segue.

Um mapa da cidade

 Thom Gunn

Tradução de Tatiana Faia

 

Estou no cimo de uma colina e vejo
abaixo de mim um luminoso país onde revejo
que nele pelas duas tem o marinheiro ébrio de tecer;
a pausa transiente, o seu marinheiro desaparecer.  

Reparo, ao descer o olhar pela colina
em braços pousados numa janela de esquina;
E na teia de escadas de incêndio segundo as normas;
Move-se o possível, as cinzentas formas. 

Aí agarro a cidade, completa;
E cada forma de luz repleta
É minha, ou corresponde a minha,
Aquela intermitente aquela outra firme brilha. 

Este mapa é território do meu deleite.
Entre os limites, noite após noite,
Observo o avanço da doença que traz a morte,
Reconheço o meu amor da sorte. 

Vejo nas luzes recorrentes
Possibilidade sem limites,
O apinhado, estropiado e inacabado!
Por nada quereria esse risco mitigado.   


A MAP OF THE CITY

I stand upon a hill and see
A luminous country under me,
Through which at two the drunk sailor must weave;
The transient's pause, the sailor's leave.

I notice, looking down the hill,
Arms braced upon a window sill;
And on the web of fire escapes
Move the potential, the grey shapes.

I hold the city here, complete;
And every shape defined by light
Is mine, or corresponds to mine,
Some flickering or some steady shine.

This map is ground of my delight.
Between the limits, night by night,
I watch a malady's advance,
I recognize my love of chance.

By the recurrent lights I see
Endless potentiality,
The crowded, broken, and unfinished!
I would not have the risk diminished.

Michel de Montaigne e «a pensar morreu um burro»

Michel de Montaigne

Neste podcast de cerca de 5 minutos veremos que talvez Montaigne, o grande Montaigne, responsável, em partes iguais com Descartes, por parte da sofisticação cultural francesa (o que seria de nós se nos séculos nascentes do pensamento crítico, XVI-XVII, houvéssemos tido mentes semelhantes a moldar o futuro?), fosse, afinal, um misólogo, como Sócrates, aliás.

Fernando Pessoa e o fim deste mundo

I

«À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno

É desta forma que se inicia o editorial (Prometeu e Fausto) do n.º 10 da revista Electra (2010), texto inspirador e esclarecedor de José Manuel dos Santos e António Soares. O tema central é «Trabalho e pós-trabalho», e a forma como o aborda confirma, mais uma vez, que se trata da melhor revista de ideias (como chamar-lhe?) portuguesa.

Evocar, por vezes invocar, Fernando Pessoa para escolhermos a lente que ajuda a compreender a fragmentação dos transcendentais superiores (Bem, Verdade e Belo), dissipados em epifenómenos capazes de fanatizar tanto o apego como a repulsa (trumpismo, nacionalismo, racismo, sexismo, igualitarismo...). É porque Pessoa, como referem José Manuel dos Santos e António Soares, punha na «exclamação metálica» do excerto que citámos da Ode Triunfal uma «voz paroxística, paradoxal e imparável» (exemplo do excesso — controlado? — de subjetivações na sua heteronímia mas também em cada um dos seus sujeitos de enunciação), como era muitas vezes a de Álvaro de Campos.

A tecnologia, que não é apenas uma forma de designar instrumentos mais ou menos complexos que complementam o nosso agir, mas um ecossistema de racionalidades que destaca a importância das coisas fabricadas para a emancipação da espécie humana (visão prometeica, porventura a predominante em Álvaro de Campos). A esta utopia, que continua a carburar em pleno (veja-se como se abafa a responsabilidade humana pela degradação ambiental sem remissão, martelando numa tecnofilia salvífica), junta-se, como força inversa, uma distopia de cariz faustiana (energia nuclear, engenharia genética, sobre-comunicação telemática, inteligência artificial generativa...).

Neste caso, Fernando Pessoa, na voz de Álvaro de Campos, celebra a auto-superação da modernidade (filosófica, antropológica e, lato sensu, política) em direção à pós-modernidade. Trata-se de passar da racionalidade auto-domesticada — acreditando, com um otimismo entretanto desvanecido, que, reproduzindo a cosmovisão hegeliana, o racional é real e o real racional — para racionalidades intensificadas pela necessidade de ganhos de eficiência, que já não consistem na procura de verdades, mas na injunção de perspetivas que moldam as nossas necessidades, usando técnicas de manipulação ou meros Diktats.

II

Mas há outro (outros) Fernando Pessoa. Claro, o que emerge em Alberto Caeiro, naturalista solar, simplificador genial, mestre de Mindfulness numa época em que quem não pensava até ao esgotamento ou se dispersava em prolífica confusão era com certeza pobre, pobre de mundo e de bens, cordeiro de Deus. Caeiro, com Walt Whitman a seu lado, assobiando, traçou uma alternativa antes do tempo, que agora parece expiar os discursos dos que se enlearam freneticamente no círculo vicioso de consumir o fabricado (mais e mais coisas, tangíveis e intangíveis), com o excedente a entrar na economia do lixo (já não do luxo). Mas não vai muito além de um queixume adornado, um pessimismo blasé, os poucos neo-naturalistas que vivem em Portugal vêm de outras geografias, com mapas mentais que por cá raramente se reconhecem como válidos e, muito menos, entusiasmantes.

Mas temos, entre possíveis outros eus, sobretudo, para o que nos interessa aqui, Vicente Guedes e Bernardo Soares, narradores dessa obra infinita (porque pode ser composta pelos editores – uso a de Teresa Sobral Cunha para a Relógio D’Água – e porque aponta sempre para lado nenhum, mesmo quando verticaliza a hermenêutica e sonda as entranhas do organismo humano) que é o Livro do Desassossego. Com ele entra-se e sai-se, simultaneamente, da pós-modernidade. A entrada dá-se pelo perspetivismoeu não creio, é claro, que haja factos», «há metáforas que são mais reais do que as pessoas que andam na rua»), a saída pelo cansaço, exílio e absurdoAbsurdemos a Vida, de leste a oeste», «Não desembarcar não ter cais onde se desembarque», «Nós nunca nos realizamos», «Os homens são fáceis de afastar: basta não nos aproximarmos»). Recorde-se que a pós-modernidade era utópica, quis trocar a firmeza cimentada da verdade, com um contentamento entediante pelo rigor mortis, pela dança hedonista de um neoepicurismo ainda mais solto, a verdade pela alegria (no mínimo, uma Gaia Ciência), laica e individual; uma economia da euforia, uma embriaguez nietzschiana à la carte.

Mas o Livro do Desassossego, traduzido em cerca de 30 línguas (outras tantas formas de o ler), por enquanto património francês mais do que português, curto-circuita a pós-modernidade nascente. Teologia negativa, leva a sério um perspetivismo que desemboca numa nova totalidade: o Nada (como nenhum niilismo, teológico ou secular, o tinha apresentado até ali). É, aliás, contra isto que os pós-modernos franceses se rebelarão — sem saberem, na altura, verdadeiramente do caso Fernando Pessoa —, apontando o dedo ao niilismo de O Ser e o Nada. Mas em Sartre ainda havia luz, a da liberdade, mesmo enquanto condenação. Bernardo Soares e Vicente Guedes dizem que são mais velhos do que o tempo e o espaço porque pretendem ser pura consciência, ainda que dilacerada, ou seja, vivem, muitas vezes a contragosto, nos primórdios do deve-ser, da ausência de alternativas, no preâmbulo do preâmbulo que não pode ser revisto, no pensamento sem portas nem janelas que só pensa o que é pensável na repetição, na necessidade filosófica sem linhas de fuga, respeitando um código adâmico vedado aos hermeneutas loucos, como Hermes.

III

Por tudo isto, o século xxi será o de Fernando Pessoa (é uma aposta quase a la Pascal). A liberdade está presa à consciência do deve-ser (que na sua dimensão mais reduzida, mas sobre-mediatizada, se traduz pelo «politicamente correto», que instituiu iradamente a pujante cancel culture). Não nos atrevemos, numa estratégia de cinismo moderno, a imaginar novos sentidos, como não acreditamos no sentido dominante feito do e no passado. Vivemos nos cuidados intensivos, com máquinas que vão funcionando, e agarramos, frouxamente, a responsabilidade, para disfarçar a decadência, de pensar novas rotinas mínimas (que nunca variam muito do «métro, boulot, dodo»). Quando, numa ousadia postiça e para sacudir um pouco o tédio, queremos extravasar com experiências subjetivas de excesso (aquilo que está além da mera sobrevivência), o dever cívico (renasceu com pior índole este complexo ético-político) põe-nos uma máscara que consente apenas a reverberação estéril, a repetição sem iteração; o demiúrgico que possa sair da nossa boca ricocheta nos panos sanitários e regressa exausto ao ponto de partida.

Estivemos dois séculos a perseguir, consciente ou inconscientemente, a máxima de Friedrich Hölderlin: «Onde está o perigo, está também aquilo que salva». Este século, pessoano, cabe agora nisto que ele escreve no Livro do Desassossego: «Habito a sombra e o sol morreu comigo.» É para levar a sério esta resignação poética? Talvez. Como refere McKenzie Wark «Os poetas são pessoas excepcionais, que detêm um pouco daquele poder sagrado da criação, devendo ser agraciados por mecenas com os meios que lhes permitam levar uma vida de luxo, dedicando-se a fazer versos.» (Electra 24, Primavera 2024, p. 101). Os poetas autênticos (cuidado, não se reconhecem à primeira) preservam um resíduo de poder sagrado, criam mundos e reinam neles.