Listen up Philip (2014)

Desde os nomes aos comportamentos das personagens (Jason Schwartzmann é Philip, um jovem promíscuo escritor que acaba de se tornar famoso, Jonathan Price é Ike Zimmerman, escritor jubilado que vive no campo, enterrado em frustrações e preconceitos), tudo em Listen up Philip (2014)  aponta para Philip Roth. Mas se este filme de Alex Ross Perry é uma paródia sobre o escritor, ou sobre aquilo que achamos ser parte da vida do escritor criado em Newark, vai para além disso. Philip Roth e um mundo de recalcamentos e ódios levam-nos à cabeça de alguém que sempre sonhou com a glória literária, que só sonhou com a fama e prescindiu de tudo o que era humano, começando pela empatia e pelo respeito pelo outro. Este filme começa por parecer uma comédia e transforma-se num cruel retrato de dois escritores a viverem distintas etapas da vida, mas ligados pela raiva, pela frustração e pela sensação, muito rothiana, de que as grandes lutas humanas não valem a pena, nem podem ser saboreadas, já que no fim tudo se reduz a uma patética velhice.

O livro de Jón e uma Língua que não era a sua

É um livro, mas são cartas, mais precisamente 28, escritas por Jón, personagem fictícia e real, à sua mulher Þórunn. Ambos separados por uma ilha, ela no norte, ele no sul, onde se refugiou numa gruta após ser acusado de assassinar o abade que era seu superior e simultaneamente marido da mulher com quem veio a casar. Jón, o pastor sem congregação perseguido por obscuros rumores e que se diz ter realizado um milagre ao desviar um rio de lava, é ainda um desconhecido que chega com o seu irmão a um local estranho, um homem que passa a ser visto com mais suspeita do que aquela que lhe mereceria apenas a deslocação para terras mais meridionais devido às suas ideias, às melhorias que introduz na gruta e nas terras que pertencem por direito à esposa e, sobretudo, aos seus planos optimistas para uma nova Islândia livre do jugo e do monopólio comercial dos invasores dinamarqueses, tema recorrente na literatura histórica islandesa, onde o veio nacionalista se funde com o orgulho de um povo. Rumores, ideias, planos: são estes últimos aquilo que mais partilha com Skúli, seu frequente visitante, também ele – como muitos neste livro – um homem de carne e osso antes de o ser no papel, o meirinho geral que deseja reinventar a Islândia e torná-la um país independente e exportador dos mais variados bens.

                  O livro de Jón é, na sua língua, um romance sobre Jón, e se o último é o mais irmão à originalidade que lhe compõe o título, o primeiro não lhe será menos fiel, pois este é um livro sobre e de Jón: ele é o narrador presente, o autor das cartas, é ele quem nos descreve a Islândia, os episódios bizarros, o clima, as viagens, as suas frustrações, desejos, crenças, ideias filosóficas, desilusões, enquanto somos leitores e, simultaneamente, Þórunn, essa mulher amada e abandonada num período de angústia, num país em que – no ano maldito de 1755 – a terra treme e a lava corre em rios.

Ófeigur Sigurðsson.jpg

A escrita de Jón, que é, por sua vez, também ele Ófeigur Sigurðsson, é um misto de crença nas ideologias e na religião transmitida de geração em geração e das luzes que se fazem sentir na Europa, tardiamente chegadas a uma ilha remota nos confins do mundo habitável; Jón não esconde essa dualidade na sua escrita, nas cartas que envia, feitas de frases longas, onde se usa e abusa da /barra/, composto por afirmações e interrogações longas, repletas de referências culturais islandesas e europeias que tornam difícil a vida ao tradutor de um livro que, com poucos anos de impressão, têm na linguagem o peso de mais de três séculos e a distância de um mar que o separa de um país marginal mas unido ao continente que ambos partilham, tornando o seu trabalho pesaroso, extenuante, envolvente, duros de meses sentados a secretárias dolorosas.

                  Felizmente, para o leitor português, O Livro de Jón será bem mais fácil e celeremente tragado em toda a sua beleza linguística e sumarento conteúdo e, certamente, lido em peças de mobiliário que unirão o conforto da leitura ao das costas…

No entanto...

No entanto, as coisas não são assim tão simples. As promessas velozes varrem o planeta, sentimentos etéreos galopam na rede, beijos e abraços inconclusos incluídos, uma grande envergadura de sorrisos e excertos de poemas levam a nossa icárica curiosidade até bem perto do céu, destruição garantida, a saudade prejudica seriamente a saúde, tempus fugit, também para ti, meu caro, também para ti, o meu sofrimento é verde, verde vivo, e o teu tem as cores castigadas pelo incomparável revés, a vida é tudo isto (e tudo aquilo), temos demasiados amigos e um coração do tamanho de um punho fechado pela suspeita, cerca de 750 centímetros cúbicos de esmero, realce e burocracia; temos Copacabana e Martigny, não te esqueças, e fome de Vietname e os pulmões enchem-se de ar quente só para podermos sobrevoar a Capadócia das sextas-feiras, enquanto a vida decorre em classe turística, entre cafés, semáforos, serviços e cerimónias do chá e valsas do adeus e o auto-retrato de Tintoretto ao espelho quase todos os dias, depois de Marte e Vénus terem sido surpreendidos pela inominável ressaca do além, e o dia apresentar sintomas de inanição e a noite continuar à custa de muito engenho que o amor já não busca autonomamente, até porque que as esperanças não no-las deram, e Kafka é que tinha razão, e o Ronaldo também, uma vez que os anjos e os árbitros desapareceram por completo da face da Terra, ainda que se avistem alguns, de quando em vez, no calor ocasional do facebook e nos sonhos soterrados dos isentos.

Contra o optimismo

A base do optimismo é simplesmente o terror.

Oscar Wilde 

I don't believe illusions 'cos too much is real

The Sex Pistols 

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 Leio algures: «As pedras são degraus de outros caminhos...». Nunca fui muito com este género de ideia. Pedras são pedras em qualquer parte. Não acredito que exista alguém que goste de caminhar por um caminho cheio de pedras. Podem ser muito optimistas e mais tarde pensar que são «degraus de outros caminhos...». Mas, enquanto percorrem o caminho, duvido que não pensem: «Ora aqui está uma boa merda.».

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Não foi necessário ler Cândido de Voltaire para saber que sou pessimista. O optimismo nunca me atraiu. Sempre o considerei sem sal. E vendo bem as coisas é. Por exemplo: a chamada grande literatura é, toda ela, pessimista. Onde é que existe optimismo nos livros de Kafka, Dostoievski, Céline, Mishima, Hemingway, Faulkner, Cossery, Bernhard? Não me lembro. O mundo é irremediavelmente absurdo e está irremediavelmente condenado. E a esperança? A esperança é outra coisa. Talvez um dia fale sobre ela. Mas não associo esperança a optimismo. Um pessimista pode ter esperança. É possível. Só que a esperança não o cega. Por outras palavras: um pessimista é alguém que tem os olhos bem abertos.

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Os pessimistas são sempre mais criticados do que os optimistas. Se um pessimista chama a atenção para possíveis obstáculos na vida, há logo alguém que exclama: «Ai! És tão pessimista!». Mas o contrário não se verifica. Ninguém diz: «Ai! És tão optimista!». Ou: «Lá vens tu com o teu optimismo!». Os pessimistas são discriminados. São acusados de ver obstáculos em tudo, quando na realidade isso (o facto de ver obstáculos) só traz vantagens: os pessimistas são mais rápidos a desviarem-se deles. Os optimistas não. Tropeçam, caem, lamentam-se, depois vão ler Paulo Coelho e esperam, com isso, aprender a "caminhar".

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 Não acredito que a leitura de Nietzsche ou Schopenhauer tenha influenciado o meu inerente pessimismo.  Li-os pela simples razão de estar na moda, de ser aquilo que era esperado de mim. Andar com o Anticristo no bolso de umas calças de ganga rafadas fez milagres junto das raparigas mais susceptíveis. Vestir o preto, também. Mas voltemos ao meu pessimismo. Não sei qual será a sua razão, origem. Sinceramente, não me interessa. Mas sei que é inerente.

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O meu pessimismo explica-se sem dificuldade: a minha total descrença na bondade humana. É claro que há excepções: conheci, na minha curta vida (trinta e seis anos até ao momento em que escrevo estas linhas), pessoas muito boas, altruístas até à medula (embora ainda não tenha resolvido em mim a questão entre altruísmo e egoísmo, pois considero-os indissociáveis, numa relação simbiótica). O oposto também é verdadeiro: pessoas más não faltam. Conheci umas quantas e suplantam, sem dúvida, as boas. Exemplo: éramos crianças e jogávamos à bola no parque infantil do bairro. Sempre que uma bola ia parar a um certo e determinado quintal, surgia uma faca — vinda não sei de onde  — que a rasgava. Quem é que rasga, destrói, uma bola com a qual crianças brincam? Lá no bairro não havia só essa criatura. Havia uma outra, muito mais cruel, que, para além de rasgar bolas, também cortava as asas às crias dos pássaros que apanhava a fazer ninho nas “suas” árvores e no beiral da “sua” casa. Vi, tudo isso, com os meus próprios olhos.

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 Se tentasse justificar o meu pessimismo, com uma base filosófica, seria incapaz. Ainda não li o suficiente para estabelecer um “programa” — algo que parece ser muito necessário para resolver tais questões e para que os outros nos levem a sério. No entanto, penso que ele, o meu pessimismo, é indissociável da minha precariedade existencial: saber que a vida é um milagre e saber que ela é um absurdo. Viver nesse limbo.

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 Pessimismo pressupõe sofrimento? Há quem acredite que sim. Cioran acreditava que se podia ser pessimista sem sofrimento. Para defender a sua posição, Cioran estabeleceu algumas linhas de pensamento. Uma delas é deveras interessante: com as desilusões criar um sistema. O sistema do pessimista é baseado nisso mesmo: nas suas desilusões. É claro que poderemos contra-argumentar dizendo que para ter desilusões o pessimista teve, em primeiro, que ter ilusões. É um argumento válido, com o qual não concordo. A desilusão é, no pessimista, sempre a priori.

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O discurso político português (principalmente do Governo e de alguns representantes do Estado) foi invadido pelo optimismo. E isso deixa-me a pensar. Como considero que todo o discurso político é falacioso, considero o optimismo — inerente ao discurso — falacioso. É claro que esta ideia aplica-se, também, a qualquer tipo de optimismo. Pois o optimismo é isso mesmo: uma falácia.

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 Por que razão o pessimismo? Porque o optimismo assim me obriga. O optimismo (que eu atrevo-me a designar de hipócrita) mais não é do que um mecanismo coercivo. O optimismo, nomeadamente aquele patente no discurso político, só serve um propósito: acalmar a massa, submete-la a uma vontade que é, muitas vezes, pouco clara. Todo o discurso optimista é falacioso. Ao contrário do optimista, o pessimista não recusa a realidade tal como ela é. Assim, ser pessimista, escolher o pessimismo, é um acto de resistência.