Gente louca

“O crime perfeito existe.“

           - Edgar Allan Poe

 

“Alfred, let’s go Shooping”

             - Bruce Wayne

“Misturo, logo existo!”

Terá dito o velho Senhor da

antiga e velha Casa Senhorial, aquele que

gritava nas noites mais frias do ano.

Um pé de Orquídea,

entre brancas Margaridas,

pontuava o altar da sala escura,

carregada de pesados veludos vermelhos,

carcomidas cadeiras de estofo verde-garrafa

e muitos, muitos quadros de pouca, ou

nenhuma, importância.

Aos pés da mesa central,

a espessa e redonda carpete ouvia as vozes

dos convidados:

um anarquista, um religioso imoral,

um fala-barato, o dito Senhor,

um cocheiro louco e

um poeta.

 

Ao entrar na sala, a esposa, com a

Aguardente, por pouco não

entornava a grande coluna,

sobre a qual assentava o escondido

Segredo. Balançado o altar,

o crime foi assim revelado:

um pergaminho revestido com cromos

da Seleção Nacional de 2016 e

do Batman de 1989.

O poeta só teve tempo para

arregalar o olho e dizer:

(para espanto de todos)

“Gente louca, Vou-me embora!”.

Barbara Stronger (sem acento!)

 

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Charles Bukowski, "competição"


competição

agora vivemos na alfândega e à noite
os barcos soam amiúde as sirenes de nevoeiro.
ela tem o sono leve.
ela dá um salto e fica sentadinha e direita na cama.
“porra!”, “que se passa, que se passa?”
“pensava que te tinhas peidado”
“desta vez não, querida”
ela é boa moça.
viver comigo deu-lhe cabo dos nervos.
a verdade é que eu gosto de guardar os peidos
para a banheira.
aquelas bolhas cinzentas fazem pairar
um fedor mágico no ar.
peidar é muito parecido com foder.
não se o pode fazer a toda a hora.
mas quando o fazemos
surge amiúde um sentimento de orgulho
como se o nosso talento artístico no acto fosse algo
de raro e precioso.
eu peido-me mais do que fodo.
e peido-me melhor do que fodo.
e fico contente
por ser confundido com uma sirene de nevoeiro
a meio da noite.


competition

we live by the harbor now and at night
the ships often blow their foghorns.
she's a light sleeper.
she will leap up, sitting straight up in bed.
"damn!" "what is it, what is it?"
"I thought you farted."
"not that time dear."
she is a good child.
living with me has dysfunctioned her nerves.
actually, I like to save up the farts
for the bathtub.
those grey bubbles waft up
a magic stench.
farting is much like fucking.
you can't do it all the time.
but when you do
there often comes a feeling of proudness,
as if your artistry in the act were a rare
and precious thing.
I fart more than I fuck.
and I fart better than I fuck.
and I am pleased
to be mistaken for a foghorn
in the middle of the night.

3 Poemas de João Miguel Henriques

São Martinho

leva-os pelo caminho do santo
pela vereda do peregrino

diz-lhes do viço e da ventura
do jugo e da longa jornada

assinala na terra ensopada
pegadas de porco e de cervo

e fá-los deslizar dedos por sebes
cabelos e pontas de dedos
por ramos e folhas de sebes

diante já do cotovelo
onde a estrada dobra para a floresta
fá-los reparar nesse estandarte
de são martinho, branco e amarelo
que um dia arranquei ao teu vestido


Hotel Sarajevo

tu devias-me uma tragédia
e eu fiz-ta pagar em incêndios

faculdade de direito
junto à estátua do cavalo
a polícia anda à nossa procura
e o dia ameaça a denúncia

as fronteiras estão todas fechadas
o povo exige a nossa cabeça

quero esconder-nos numa viela
na cave esconsa do taberneiro
mas não há ruas para o teu corpo
tu já sequer cabes no mundo

por isso pagaste a tragédia com fogo
ateado na ponta dos dedos

tudo isto, claro está, noutra cidade
que não a colónia massacrada


Letra

atenta, a letra
de lenta curva
já curvilínea
vem lembrar-me que existe
que ainda corre
e se apresenta:

abrigo para a ira do dia
salvação para a tormenta


João Miguel Henriques é um dos autores em destaque no mês de Fevereiro na Enfermaria 6. O seu perfil pode ser lido aqui.

Charles Bukowski, "Sossego"

tradução de José Pedro Moreira

Sossego


sentado esta noite
diante desta
mesa
junto à
janela

a mulher está
de mau-humor
no
quarto

estes são os seus
dias especialmente
maus.

bem, eu tenho
os meus

portanto
em consideração
para com ela

a máquina de escrever
está
parada.

é estranho,
escrever isto
à
mão

lembra-me de
dias
passados
em que as coisas não
estavam
a correr bem
noutros
aspectos.

agora
o gato vem
visitar-
-me

refastela-se
debaixo da mesa
entre os meus
pés

estamos ambos
a derreter
no mesmo
fogo.

e, caro
gato, estamos ainda
a trabalhar no
poema

e alguns
observaram
que há um certo
“declínio”
aqui.

bem, aos 65
anos, eu posso
“declinar”
o que me apetecer, e ainda assim
dar
uma abada
a esses críticos
da treta.

Li Po sabia
o que fazer:
beber outra
garrafa e
enfrentar
as consequências.

volto-me para a minha
direita, vejo esta enorme
cabeça (reflectida na
janela) a chupar
um cigarro
e

sorrimos
um
ao outro.

então
volto
atrás

sento-me aqui
e
escrevo mais palavras neste
papel

não há nunca
a grandiosa
declaração
derradeira

e essa é o
engano
e o truque
que funciona
contra
nós

mas
gostava que pudessem ver
o meu
gato

ele tem uma
mancha
branca no
focinho
contra um
fundo
laranja-amarelado

e então
quando olho para cima
na direcção da
cozinha

vejo uma parte
clara
sob as luzes
do tecto

que se esbate
no escuro
cada vez mais
escuro até
não ver
mais
nada.

 

Charles Bukowski, You Get So Alone At Times That It Just Makes Sense, 1986

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