Casa

para Difaf Sharma e Nour Khalaf

 a Difaf diz
a minha aldeia
fica junto ao mar
e olhando para Este
vê-se os montes
azuis de oliveiras
também o céu
parece mais azul
e prossegue
falando de um azeite negro
concentrado
que o seu tio fazia
e que ela
não consegue encontrar
neste país

a mãe do Nour
liga todas as noites
para dar um beijo
ao seu rapaz
vai para cinco anos
que não o vê
por causa da guerra
aquela mulher
estraga-o com mimos
diz a Difaf
e todos nos rimos
e vertemos nos copos
o que resta
da garrafa de Papa Figos

Eis mousikên (para voz própria)

(Pedes-me que te resguarde da escuridão

mas entras-me nas veias e paras

onde te ilumina o silêncio

e dizes suplicas toda a poesia morre

e enquanto me bate o coração escureces

e fazes três sombras quando era jovem.

Disseste arrepiei-me e guardaste-me

porque lá havia sempre uma janela

por onde sempre deixaste entrar o sol

e um gato sempre houve um gato

no resguardo da escuridão e dizias

ainda hoje te peço um resguardo da escuridão

mesmo quando estamos sós ou lentos

e tropeças no meu sorriso forçado

porque tenho os lábios cansados de fingir

que te conheço que te sei que te meço

quando sempre me deixaste em contraponto

com um resto de floresta de um pinheiro

que se desfez em caruncho e se enterrou

onde nunca nada cresceu e resguardo-me

resguarda-me peço-te desta morte mórbida

que em nada morre não porque não veja

não porque não tenha fé mas porque sabes

que qualquer palavra é um gesto possível

que nunca alcança o deus que te repousa

e te reúne por mim por isso me dizes

protege-me desta noite protege-me desta noite

e tu bem sabes tu bem sabes

andamos assim há já algum tempo

sem contraponto sem forma sem pulso

ao menos disso tivemos coragem

até aquele quintal em que refizeste

o meu passado o meu passado ouviste

e deixaste-me lá parado procurando abrigo

e agora agora meu amor pedes-me

que te resguarde da escuridão agora

agora mesmo que todo o tempo

me rouba as entranhas me entra no quarto

onde sempre há um gato um simples gato

que rouba as entranhas de quase todo

de quase todo o tempo e ainda te suplico

salva-me resguarda-me da escuridão

mas tu murchas como sempre murcha

a semente a caminho da brusquidão

do impossível do inconcebível e gritas

como gritas comigo como se eu soubesse

menos de escuridão do que tu como se

como se eu não te chegasse como se nunca

como se nunca te tivesse dito carrega-me

resguarda-me desta solidão atira-me

atira-me tão longe quanto possam meus braços

e que caibam neles a tempestade.)

A Beleza do Marido de Anne Carson: Tango IX

Anne Carson, A Beleza do Marido, não edições, capa sobre colagem de Ricardo Marques

Anne Carson, A Beleza do Marido, não edições, capa sobre colagem de Ricardo Marques

IX. MAS QUE PALAVRA ERA

Palavra que durante a noite
apareceu em todas as paredes da minha vida inscrita simpliciter sem explicação.
Qual é o poder do inexplicado.
Lá estava ele um dia (cidade nova) num campo de feno à porta da escola
debaixo de um chapéu de chuva preto
num vento agreste e picado.
Nunca lhe perguntei
como é que ele estava ali se era uma distância de talvez 300 milhas.
Perguntar

seria violar alguma regra.
Alguma vez ouviste falar do Hino Homérico a Deméter?
Lembras-te de como Hades cavalga para fora da luz do dia
nos seus cavalos imortais no meio de um pandemónio.
Leva a rapariga para um aposento frio lá em baixo
enquanto a mãe dela vagueia pela terra causando dano a tudo o que vive.
Homero narra-o
como a história de um  crime contra a mãe.
Porque o crime de uma filha é aceitar as regras de Hades

coisa que ela sabe que nunca vai ser capaz de explicar
e assim despreocupadamente diz
a Deméter
“Mãe, esta é a história toda.
Com malícia ele depositou
nas minhas mãos a semente de uma romã doce como o mel.
Depois pela força e contra minha vontade obrigou-me a comer.
Conto-te a verdade com pesar.”
Fê-la comer como? Conheço um homem
que tinhas regras
contra demonstrar dor,
contra perguntar porquê, contra querer saber quando é que eu voltaria a vê-lo de novo.
Da minha mãe
emanava uma fragrância , medo
E de mim
(sabia-o pela cara dela à mesa)
o cheiro de uma doce semente.
Rosas no teu quarto enviou-tas ele?

Sim.
Qual é a ocasião?
Ocasião nenhuma.
E a cor.
Cor.
Dez brancas uma vermelha o que quer isso dizer.
Devem ter ficado sem brancas.

Abolir a sedução é o objectivo de uma mãe.
Ela há-de substituí-la pelo que é real: produtos.
A vitória de Deméter
sobre Hades
não consiste em que a filha regresse do inferno,
é o mundo em flor –
couves iscos  cordeiros vassoura sexo leite dinheiro!
Estas coisas matam a morte.

Ainda guardo aquela rosa seca quase desfeita em   pó.
Não significava hímen como ela julgava.

Anne Carson, A Beleza do Marido, Tradução de Tatiana Faia, não edições, Lisboa, 2019.

A 7ª Árvore

“há sempre um jardim na

memória / do Mundo”

Emanuel Jorge Botelho

para o Urbano

 

Na fantasmagórica árvore,
os rebentos de ouro são
esses tiros entre o nosso olhar
e o intocável jardim.
A porta fechada, com
dobradiças de cartão,
mostra-nos as queimaduras 

das mãos dos que, em vão,
tentaram roubar os frutos,
nessas vinte e sete manhãs.

de “Lamarim” (2019)

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Urbano - “neste meio de mar” (pormenor)