“Trabalho de Casa” de Nuno Júdice

In Memoriam Nuno Júdice (1949-2024)

O primeiro poema de Nuno Júdice que me lembro de ter lido na vida chama-se “Trabalho de Casa” e estava incluído na antologia Século de Ouro: antologia crítica de poesia portuguesa do século XX, organizada por Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra e publicada em 2002, por uma editora que já não existe, a Cotovia. Eu tinha dezasseis anos e estava no liceu, e esse livro foi-me oferecido por uma amiga que recordo com um eterno capacete de mota debaixo de braço, de jeans sempre rasgados num joelho. “Trabalho de Casa” é um poema que pertence ao livro A Fonte da Vida (1997), foi escolhido por Margarida Braga Neves para integrar a antologia e vem acompanhado de um comentário desta estudiosa. O poema começa com a interrogação de uma imagem da memória, a do degelo de rios, mas onde, talvez um pouco inesperadamente mas sem dúvida propositadamente, nunca se pronuncia a palavra primavera até chegarmos ao penúltimo verso. Vale a pena transcrever o poema:

O que faço na memória de um degelo de rios, quando
as águas caem sobre as águas, sob a espuma redundante
de ideias brancas? Aqui me afundo até ao próprio
fundo de mim próprio, aqui onde os gestos humanos
da despedida e do amor não têm outro sentido
além do que nasce das próprias águas: efémeros,
como o tempo, e como o tempo presos ao que, cada um de nós,
ignora do outro. Acendo cigarros nos cigarros,
respirando o fumo húmido das origens, vigiando
a transparência que se desfaz no intervalo das folhas,
quando o vento as empurra para a estrada, pergunto
de onde vem a minha saudade de ti, e até onde
vai o meu desejo de te ouvir, de novo, à minha frente,
enquanto as horas passam como se não tivessem de passar,
e os teus lábios bebem todo o tempo da minha vida. Como
se o desejo não se esgotasse, também ele, como
estas águas que acabam em cada instante em que se renovam,
trazendo as chuvas eternas do norte para dentro de poços
sem fundo, até ao fundo dos lagos mais subterrâneos,
puxando com a sua negra densidade os meus
impulsos de treva: cama obscura para onde desço
quando adormeço. Mas tu, com os teus braços de raiz aérea,
puxas-me para esse cimo de montanha onde o silêncio
se transforma em sílaba - a sílaba inicial
do mundo, a interrogação do gesto nascente de todas as
origens, o soluço de um suicídio de murmúrios,
percorrida pela única percepção inútil: a da vida
que se esvai no instante do amor. E encostamo-nos à pedra
abstracta do horizonte, a que nos deixou sem voz quando
as grutas do litoral se abriram; para que a pedra nos beba,
gota a gota, todo o sangue. Então, é nas suas veias
que correm as nossas pulsações. E afastamo-nos, devagar,
para que a terra viva através de nós
uma existência puramente interior, despida
do fulgor animal das manhãs. Sentamo-nos
no mais longínquo dos quartos, de janelas fechadas, e
abraçamo-nos com o rumor de primaveras clandestinas,
com o inverno nos olhos.

Não sei bem se há vinte anos, quando li este poema pela primeira vez, me terá parecido tão evidente a linha de tensão que se vai desenhando à medida que o poema transcorre, como de resto explica Margarida Braga Neves no comentário que acompanha o texto em Século de Ouro, de um tu, para um eu, para um nós, para desaguar, como não podem desaguar os rios, numa espécie de paradoxo temporal onde se insinua uma tensão entre o eu que fala e o tu a quem ele se dirige: circularmente, num rumor (numa memória?) de primaveras clandestinas que é esbatido dissonantemente (no sentido em que o inverno é sucedido e não precedido pela primavera, que é a estação marcada no degelo mencionado no início do poema), pelo inverno estampado nos olhos do par que se abraça no final. Este rumor clandestino de primaveras faz qualquer coisa à presença do inverno nos olhos, coloca o significado do gesto de dois amantes que se abraçam, “no mais longínquo dos quartos,” (no lugar mais protegido do rumor do mundo) entre duas estações e não numa só em definitivo, a da memória e a presente – uma tensão que terá qualquer coisa a ver com a ambiguidade do amor (mas sobretudo com a da duração da vida), tornado ambíguo se por mais nada justamente pela condição inexorável do inverno enquanto símbolo da morte. Estou em crer que num poema cuja paisagem semântica é a do afundamento e da profundidade há, ao mesmo tempo, nesta contradição de amantes que simbolizam a primavera com o inverno nos olhos, qualquer coisa de muito vital, de muito importante não tanto para a progressão do poema, mas enquanto pequena representação de uma experiência de vida, cifrada na presença do rio, metáfora de um percurso de vida que corre, a do amor enquanto forma de resistência e fonte de significado. De resto, nesse livro de Nuno Júdice, A Fonte da Vida, é em parte uma fonte de palavras, linhas de sentido vistas e revisitadas, bastantes vezes em face da morte.

Digamos, para começar, que há duas notas discordantes que parecem ameaçar a possibilidade de harmonia neste poema e que são vitais para a narrativa que nele se desenrola. Essa narrativa é sobre espera, encontro, o significado da presença de amantes numa paisagem e diante um do outro. Além disso, obliquamente, o poema é sobre um escrutínio do que significaria a ausência desse encontro na trajectória de uma vida, o que tem uma correspondência com o movimento de afundamento do narrador. Se tivéssemos de perguntar que espécie de conhecimento encerra este poema poderíamos talvez dizer: ele sugere ao leitor que correspondência e harmonia não se equivalem. Como, então?  

Uma das notas discordantes que eu julgo haver neste poema é aquela que existe nesta contradição de um abraço que carrega consigo o rumor da primavera, que, rumor que seja, resiste em face do inverno, que pode ser aqui entendido, convencionalmente, como uma estação final. A outra nota discordante é a que sustenta a antecipação do encontro e escuta-se na voz do “eu” que fala. Chamo-a discordante porque ela parece resistir e iludir a harmonia convencional dos tropos poéticos que ela própria evoca (o amor, o fim do inverno, a chegada da primavera). Por exemplo, não há na sequência da observação deste degelo uma réstia sequer do tipo de antecipação luminosa que é descrita por Longo em Dáfnis e Cloe, esse romance da antiguidade que é a celebração máxima de um primeiro amor em estado de primavera absoluto em que lemos acerca da espera pela chegada dessa estação:

But Chloe and Daphnis, remembering the pleasures they had left behind them, their kisses and embraces and meals together, passed sleepless nights and miserable days, and looked forward to the spring as to a resurrection from death. 

Daphnis and Chloe, Tradução de Paul Turner, Penguin Books, 1968, pp.70-71.

Dáfnis e Cloe são, no romance de Longo, muito jovens, dois pastores adolescentes a quem tudo acontece pela primeira vez. Isto faz-me pensar que a estação do tempo presente do poema talvez não seja necessariamente a primavera (o degelo pode ocorrer ainda no inverno), mas a sua memória e uma memória revista, pelo menos até ao momento em que o “tu” encontra o “eu”, com ambivalência. Pergunto-me que versos do poema de Nuno Júdice terão segurado a minha imaginação adolescente de quem não ia morrer nunca, e, portanto, não podia bem entender este timbre de inverno no final de um poema que começa na evocação de um degelo. É difícil de reconstituir isso ao certo, mas talvez tenham sido aqueles que me parecem ser ainda hoje as dobradiças da breve (não confundir com pequena) história que aqui se desenrola, os momentos onde se fixam os seus pontos de viragem. São aqueles versos que mais obviamente introduzem instabilidades na paisagem do poema: “pergunto/ de onde vem a minha saudade de ti;” “acendo cigarros nos cigarros,” “até ao fundo dos lagos mais subterrâneos/ puxando com a sua negra densidade os meus/ impulsos de treva.” Estes últimos versos, com qualquer coisa de dionisíaco, estão ligados ao movimento de afundamento que o “eu” descreve na primeira parte do poema e que é interrompido pelos “braços de raiz aérea,” do “tu” que o puxa “para esse cimo de montanha,” que, nota Margarida Braga Neves no seu comentário, é o “lugar de energia e criação”. Mas é o movimento do afundamento que me importa aqui, que começa nos primeiros versos, se adensa com as chuvas eternas do norte, que caem dentro de poços sem fundo, ligados a lagos subterrâneos, finalmente metamorfoseados na cama obscura para o onde o “eu” desce para adormecer. É desse ponto mais fundo de todos, mais subterrâneo, que o “tu” resgata o “eu”. Este afundamento até ao ponto de maior profundidade parece-me já inevitável naquele auto-retrato do narrador, acendendo cigarros nos cigarros. O gelo que imobilizara os rios mantivera, afinal, a estase da voz central do poema. A partir do momento em que o degelo começa, o seu afundamento é inevitável. Esta não é de todo uma primavera como a que é esperada pelos amantes adolescentes de Longo. Trará consigo uma destruição que parece irreversível como a passagem do tempo, até que braços de raízes aéreas parecem cortar esse movimento.

Fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes não inclui uma entrada para primavera, mas inclui uma entrada para o verbo “s’abîmer,” “ser submergido,” “afundar-se” ou, como surge em tradução inglesa (de Richard Howard), “to be engulfed.” “S’âbimer” é o fragmento onde Roland Barthes descreve o movimento pendular e violento de um aspecto muito particular de um estado de paixão. O momento de hipnose em que o amante se sente submergido parece-me remeter (embora as referências de Barthes sejam Werther e Baudelaire) para um estado de oscilação entre os impulsos de Eros e Thanatos que foram discutidos por Freud em Para Além do Princípio do Prazer: num momento de sofrimento ou felicidade o amante é submergido por uma disforia desesperada, que pende para a aniquilação. A este estado sucede-se um profundo sentimento de deslocação, a impressão de não pertencer a lugar nenhum, nem sequer à morte.     

É, no entanto, a quarta secção desse fragmento que me importa aqui, porque é aquela em que se pensa sobre o elo entre a paixão e a morte. 

4. Amoureux de la mort? C’est trop dire d’une moitié; half in love with easeful death (Keats): la mort libérée du mourir. J’ai alors ce fantasme: une hémorragie douce qui ne coulerait d’aucun point de mon corps, une consomption presque immédiate, calculée pour que j’aie le temps de désouffrir sans avoir encore disparu. Je m’installe fugitivement dans une pensée fausse de la mort (fausse comme une clef faussée): je pense la mort à côté: je la pense selon une logique impensée, je dérive hors du couple fatal qui lie la mort et la vie en les opposant.

E é este último raciocínio que me importa particularmente: “eu flutuo para fora da parelha fatal que liga a vida à morte ao contrapô-las.” Esta afirmação parece-me particularmente relevante para ler os versos finais de “Trabalho de Casa.” Talvez o aspecto mais inesperado deste poema seja o modo como, não havendo aqui um caso de paixão, pace Keats, pela morte (a trajectória do narrador nega essa possibilidade), há, em vez disso, uma observação das relações de continuidade e (con)sequência entre vida e morte, num movimento de reconhecimento profundamente enraizado nos ciclos do mundo natural, numa tentativa de respirar em uníssono, num movimento que inclui até a melancolia da morte, com a passagem do tempo e com as transformações de paisagens interiores e exteriores. Daí lermos: E afastamo-nos, devagar, para que a terra viva através de nós/ uma existência puramente interior...

Plenitude é uma palavra difícil de escolher para falar sobre poemas sobre essa sagrada trindade da poesia lírica: a vida, o amor e a morte. Roland Barthes sabe disso, a sua solução é pensar que ao opor vida à morte há a possibilidade de uma deriva, um lento flutuar para fora do afundamento que quebra o ciclo. Eu penso que a mesma deriva existe neste poema de Nuno Júdice, mas penso que os termos em que ela é pensada são diferentes daqueles que propõe Barthes.

Talvez a quebra desse ciclo exista sob a forma do impulso vital pelo qual o narrador é puxado pelo “tu” para o cimo, mas o que é alterado por esse gesto permite incluir, mais tarde, a morte na ecologia dos gestos que afirmam uma vida. Esse impulso vital não me parece ser, então, exactamente da mesma ordem daquele fragmento de um poema de Baudelaire citado por Barthes na sua discussão de “s’abîmer”: “Un soir fait de rose et de bleu mystique,/Nous échangerons un éclair unique,/ Comme un long sanglot, tout chargé d'adieux.” (“Les Amants Morts,” Fleurs du Mal). 

Cheguemos então a uma das poucas coisas que verdadeiramente importa perguntar a um poema. A presença dos amantes, do amor, muda a terra, um pouco como lemos num verso do “Trabalho de Casa,” os amantes afastam-se para que “a terra viva,” ou, como sugere Baudelaire, poeta da decadência fértil, existe apenas como uma efémera fulguração, cuja expressão final é um longo soluço? Como amar, e sustentar, o significado do que é, por natureza, desesperado e efémero? E porquê chamar a isso “trabalho de casa”?  

Em 1913, o ano em que estreou em Paris A Sagração da Primavera de Stravinsky, Guillaume Appolinaire publicou em Alcools, um poema sobre um amor infeliz que tem alguns pontos de contacto com “Trabalho de Casa:” é um poema sobre dois amantes cuja ligação é vista em relação com o movimento inexorável do tempo e de um rio. Le Pont Mirabeau parece ser à superfície um poema mais convencional do que aquele que abre a colecção e o precede, Zone, um dos grandes poemas experimentais do modernismo. Escrito sem pontuação, alicerçado num estribilho que se repete por quatro vezes e que expressa a monotonia da estase do narrador, Vienne la nuit sonne l’heure/ Les jours s’en vont je demeure, o movimento do poema (ou a ausência dele) é em certo sentido o oposto do movimento quase perpétuo, e que só pára no abraço dos últimos versos, que atravessa “Trabalho de Casa.” O narrador de Le Pont Mirabeau mantém-se imóvel naquela que era, à data, uma das mais novas pontes de Paris, enquanto por baixo o Sena corre e ele se lembra de um tempo em que a alegria se sucedia sempre à dor e os braços dos amantes, naquela que é uma das imagens mais belas que conheço num poema sobre um amor infeliz, eram como pontes (Le pont de nos bras passe). À medida que o poema e o tempo avançam, o amor esvai-se como a água que corre, o que me lembra da imagem de Barthes, une hémorragie douce qui ne coulerait d’aucun point de mon corps. Mas não há aqui nada de doce, exceptuando talvez na memória distante de uma alegria que se tinha seguido sempre à dor, mencionada na primeira estrofe. Lê-se, a dada altura, numa rima que sugere a monotonia da imobilidade do narrador e ao mesmo tempo a violência que ele experimenta, “Comme la vie est lente/ Et comme l’Espérance est violente.” Os dias e as semanas passam, mas nem a vida nem o amor regressam, no entanto o “eu” mantém-se na paisagem até ao fim do poema da forma que é veiculada por este verbo difícil de traduzir, “demeure,” que tanto quer dizer “eu permaneço” como “eu habito.” A oposição entre a figura humana nesta paisagem e o correr do tempo e o fluir do rio é, como a esperança, violenta. O narrador reconhece a necessidade de movimento, mas não se move. Le Pont Mirabeau é um lugar de akrasia. Esta imobilidade pára o tempo do narrador e é uma prefiguração da imobilidade da morte, também no sentido em que exclui a possibilidade de outros movimentos, da formação de novos significados. Este amor que morre mantém-se, pela imobilidade do narrador, fixo nesta condição fantasmagórica, nem parte do mundo dos mortos nem dos vivos. 

Este estilhaçamento da possibilidade da formação de novos sentidos ou significados tem, acidentalmente, outro elo, não exactamente poético, com a ponte Mirabeau. Em 1970, Paul Celan não vivia muito longe desta ponte, no número 6 da Avenida Émile Zola, e é desta ponte que ele se suicida numa semana chuvosa do final de Abril de 1970.  Há uma presença prolífica de rios na poesia de Celan, mas o poema sobre um rio que me importa aqui é um onde a possibilidade de sentidos é profundamente mutilada. Paul Celan escreveu em 1963 um poema cuja paisagem partilha, pelo menos parcialmente, uma ressonância de significados que são evocados pela descrição, a meio de “Trabalho de Casa,” dos poços sem fundo onde caem as chuvas do norte. No brevíssimo poema In den flüssen, Nos Rios, Celan fala dos rios que estão a norte do futuro:

In den Flüssen nördlich der Zukunft
werf ich das Netz aus, das du
zögernd beschwerst
mit von Steinen geschriebenen
Schatten.

Comentadores de Celan, como Lefebvre e Joris, notam que o norte em Celan é associado ao gelo e à neve e, assim, a paisagens de desolação e morte. Se, como sugere Joris, esta imagem está relacionada com o abuso de certas mitologias nórdicas feitas pelos Nazis, ela remete para um universo de nacionalismo, propaganda e campos de extermínio. É possível que haja nesta imagem dos rios a norte do futuro um eco de uma ideia equivocada, mas bastante disseminada, que normalmente temos sobre o modo como os rios fluem, de norte para sul (os rios, na verdade, correm em todas as direcções).

O que é que acontece se for o rio a morrer? 

No fim do verão de 2021 um amigo meu quis mostrar à sua companheira o rio que corria perto de uma das aldeias onde ele costumava passar os verões da sua infância, uma pequena povoação perto do Monte Pélion, onde na mitologia homérica o centauro Quíron educara Aquiles, entre outras coisas na arte da medicina e da música, uma história que é contada por Píndaro, numa das suas Odes (a terceira ode nemeia). No calor ainda inclemente do princípio de Setembro demos voltas e voltas na floresta que rodeia a montanha sem conseguir escutar sequer o mais remoto rumor do curso desse rio. Escutávamos apenas de longe em longe os distintos guizos das cabras, cada um com o seu som diferente, além de nós e das cigarras a única coisa viva no sol violento da tarde. Até que caminhando em direcção à aldeia, Mélies, com a sua ponte férrea desenhada noutro século pelo pai de De Chiricho, tropeçámos no curso do rio, a sua irregular bacia branca de pedra exposta e completamente seca, com as marcas de erosão onde a água havia corrido, sujo de vegetação seca. Eu achei que a minha amiga, que é a poeta grega Tonia Tzirita Zacharatou, fosse escrever um poema sobre a morte do rio, mas o poema que a minha amiga escreveu não é sobre isso, ou não é exactamente sobre isso. É um poema que fala sobre a relação entre desaparecimento e memória, e sobre o papel da memória e da imaginação em face de um tipo de destruição inexorável. Como “Trabalho de Casa” e “Le Pont Mirabeau” é um poema que se interroga sobre o que fazer com uma memória, mas neste caso não uma memória própria, mas uma que nos é dada por alguém que amamos. 

Na penúltima estrofe lemos: “Querias/ mostrar-me/ uma coisa importante/ porque não é suficiente para ti/ descrever-me as coisas./ Querias que a visse contigo/ e ao amá-la, que te amasse/ mas é impossível/ lembrar/ onde o viste pela última vez.” No entanto, o reconhecimento desta impossibilidade, arrasta consigo o significado desta tentativa irrealizável de dar a alguém a imagem de um rio que desapareceu: “A promessa de uma parte de milagre/ entre séculos de folhas mortas de sicômoros/ era a tua maneira de me dar uma história.../ e, no entanto, acabo a guardar, com um poema/ uma memória que não me pertence.”

O que é, ao certo, mudado quando um poema produz uma deslocação que parece impossível, digamos, preservar um rumor de primavera em face de um inverno inevitável ou dar-nos a memória de um rio que nunca chegaremos a ver? Não sei se é ao certo uma metamorfose, aquilo que no nosso entendimento é mudado quase até à ordem da revelação, aquilo que pede de nós o cuidado da preservação (de um rio, do afastamento de um afogamento para lá do mais interior dos quartos), ou um trespasse, aquele modo muito particular de significação de um poema verdadeiro que nos atravessa completamente para nos deixar num lugar onde não estávamos e aonde talvez nunca chegássemos se não nos tivéssemos encontrado com ele. O mesmo sucede com “Trabalho de Casa.” A conclusão não lógica deste ensaio, em face destes poemas, talvez seja dizer que o que nos afasta da morte não é o tempo que ainda temos para viver, essa ilusão por vezes equivocada de que existe para nós um curso regular de rio, que de resto não podemos nunca saber até onde se prolongará, mas antes a alegria, o reconhecimento dos outros, a imaginação que determina a tessitura de um poema.  

A mudança (um poema de Marija Dejanović)

Tradução de Tatiana Faia
de Dobrota razdvaja dan i noć
(A Gentileza Separa a Noite do dia)
a partir da tradução inglesa de Vesna Maric

a mudança do nosso organismo aconteceu
durante a noite 

deitámos fora a nossa armadura de carne
e esquecemo-nos de como nos sentir oprimidos 

isto não nos incomodou grande coisa 

o corpo vibra ao deitar-se junto ao lago

um lírio cresce das suas orelhas
e a sua espinha
é uma seta
apontada a sul 

para onde vão as cores
quando as pétalas caem e regressam ao abraço do chão? 

para dentro do teu nariz

elas vão para dentro do teu nariz


O perfil de Marija Dejanović na Enfermaria 6 pode ser lido aqui.
A tradução inglesa do livro A Gentileza Separa a Noite do Dia está disponível aqui. Recomendamo-la vivamente.

Dobrada fria, um poema de Gastão Cruz

In Memoriam (1941-2022)

Num restaurante fora do espaço e do
tempo
onde a um poeta, irreal também, serviram

dobrada fria ficaremos até
a nossa imagem do mundo se turvar
aí petrificada

estará
a substância do tempo a que daremos
o nome de passado

porém não há passado
fora do tempo só existe a vida
uma luz imortal que o tempo mata

De Existência, Assírio & Alvim, Lisboa, 2017

Um casamento no inferno: sobre romãs e poemas

Korê com Romã, Museu da Acrópole, Atenas, séc. VI a.C.

1.      

Ultimamente dou com romãs em toda a parte. Estão em caixas de madeira à porta de todas as mercearias que não ficam longe da rua onde vivo ou aparecem de todos os tamanhos, em cores castanhas e vermelhas, embaladas em esferovite, nas bancas do mercado às quartas-feiras. Em Atenas, de onde voltei há poucos dias, havia-as de quase todas as cores nas lojas de comida em Exarcheia, ou no enorme mercado da Praça do Teatro, ou moldadas em cerâmica nas lojas de recordações de turistas que se multiplicam por todos os bairros da cidade. Vi umas quantas nas mãos de estátuas nos museus dedicados à antiguidade clássica e até completamente secas e ainda a pender da sua árvore junto às ruínas do teatro em Delfos. Durante boa parte da viagem esperei cruzar-me com a mítica romã azul que Yiorgos Seferis descreve na segunda parte de um poema intitulado “Tordo,” um poema que ele escreveu acerca da paisagem da ilha de Poros, pouco depois de ter regressado à Grécia durante a Segunda Guerra Mundial. Esta romã é a noite, e a obscuridade de um seio, e um pouco um talismã que permite uma estranha metamorfose, a de preencher alguém de estrelas. A romã desse poema é, enfim, um objecto misterioso e inexplicável, um pouco perigoso, como acontece com a maior parte das coisas que Seferis escreveu sobre o desejo. “Não te esqueces,” diz o último verso do excerto que cito aqui, mas aquilo de que cada um não se esquece é aquilo que as sucessivas imagens deste poema evocam em cada um, ao mesmo tempo algo privado e partilhado, com a sua própria profundidade.

— ‘Maybe the night that split open, a blue pomegranate,
a dark breast, and filled you with stars,
cleaving time.
                     And yet the statues
bend sometimes, dividing desire in two,
like a peach; and the flame
becomes a kiss on the limbs, then a sob,
then a cool leaf carried off by the wind;
they bend; they become light with a human weight.
You don’t forget it.’

(Tradução de Edmund Keeley)

2. 

Paestum, Parque Arqueológico, ca. 2018

Devo ter visto muito poucas árvores de romãs na vida e sei quanto disso é a tristeza de uma adolescência e idade adulta urbanas, por isso acho as romãzeiras as mais surpreendentes das árvores. Por isso também raramente esqueço as que vi. Sinto que são sempre um pouco minhas. Algumas destas míticas árvores estavam (estão? estarão?) num campo que é cortado pela estrada que vai dar ao parque arqueológico de Paestum, entre Nápoles e Salerno, onde se podem ver alguns dos mais bem conservados e mais monumentais templos da Antiguidade. Os templos são massivos e gregos, foram erigidos no tempo em que esta região era a colónia da Magna Grécia. Gente de quem sabemos pouco ali os contruiu entre o século VI e o século V a.C. Mal vemos os templos, sentimo-nos pequenos. Mal vi essas árvores senti-me contente de me livrar da monumentalidade, a alegria de ser perecível. Era o princípio do outono e elas estavam alinhadas como vinhas até perder de vista, com as romãs ainda não bem maduras. Os gregos e os romanos acreditavam que as romãs eram o fruto dos mortos. Um fruto amargo e doce, com uma mitologia ambivalente a acompanhá-lo. Nos frescos que estão no museu do parque arqueológico há romãs por toda a parte.

Frescos com Romãs, Museu Arqueológico de Paestum, 340 a.C.

Uma outra romãzeira de que me lembro bem está plantada numa campa bem mais recente e mais discreta do que qualquer templo, num cemitério em Roma. A árvore foi deixada mesmo ao lado da lápide e começa a florescer na estação em que a terra começa a morrer. Não penso nesta árvore sem pensar em Deméter e Perséfone. Não há muitos deuses gregos que morram e permaneçam mortos, ou que ao morrer adquiram poderes formidáveis, mas Perséfone é uma excepção. Há muitas coisas para dizer sobre esta deusa que morre jovem porque um deus se apaixona por ela.

Romãzeira, Roma

3.

Morta de fome no Hades, recusando-se a comer há vários dias, depois de ter sido raptada e violada pelo deus dos mortos, Hades, que se quer casar com ela, o fruto que Perséfone por fim come é uma romã. Mais tarde, assim é contado no Hino Homérico a Deméter, um desses primeiros poemas que nos chegaram em que a mitologia dos gregos foi cifrada em poesia, Perséfone contará à mãe, a deusa das colheitas e da agricultura, Deméter, como comeu esse fruto. É um dos momentos mais estranhos e mais extraordinários na história da poesia arcaica, um daqueles raros instantes na literatura desse período que chegou até nós em que duas mulheres têm uma conversa a sério.

Depois de Deméter ter percorrido toda a terra à procura da filha, a deusa esconde-se num subúrbio de Atenas, Elêusis, para se afastar dos deuses e deixar tudo o que estava na terra perecer. Zeus entende o lado impiedoso da raiva de Deméter e envia Hermes ao mundo dos mortos para pedir a Hades que traga Perséfone de volta. O deus deixa-a voltar, mas não sem antes lhe dar uma semente de romã. Quando a mãe e a filha se encontram, mal se abraçam, a mãe imagina o que aconteceu:

Enquanto [segurava a filha querida nos braços]
[de súbito o seu coração suspeitou de algum engano. Com um medo terrível,]
soltou-se [do abraço e logo lhe perguntou:]
“Minha filha, tu não [comeste nada enquanto estiveste lá em baixo,]
pois não? Fala [e não cales nada, para que ambas fiquemos a saber.]
Pois se não o fizeste, podes estar [entre os demais imortais]
e comigo e com o teu pai, [o filho de Crono de negra nuvem,]
viver honrada por todos [os imortais,]
mas se provaste algo tens de voltar lá para baixo e [as profundezas da terra]
habitar durante a terça parte [do ano]
e as outras duas junto de mim e dos [demais imortais.]
Quando na perfumada Primavera a terra florescer
com flores de todo o género, então da sombria escuridão
ressurgirás, para grande espanto dos deuses e dos homens mortais.  

Perséfone responde:

... às escondidas,
ele pôs-me na boca uma semente de romã, alimento doce como o mel,
e obrigou-me a comê-la contra a minha vontade.[i]

É com esta frase que Perséfone diz a Deméter que ficará para sempre ligada ao mundo dos mortos, que não pode exactamente voltar nunca, que nada tornará a ser como antes.

Perséfone é uma daquelas personagens da mitologia que tem dois nomes, que em certo sentido apontam para duas identidades, Perséfone, que é o nome por que é mais conhecida, e Korê, que significa simplesmente moça. Alguns estudiosos associam a mudança do nome à mudança de estado de Perséfone, de solteira para casada, de filha de uma deusa (Korê) para rainha do mundo dos mortos (Perséfone). As interpretações deste mito que olham para ele como metáfora de um ritual de transição na vida de jovens mulheres não resolvem a sua carga misteriosa e negativa: casada, Perséfone, que tinha sido Korê, não está exactamente viva. A passagem é, pelo menos da perspectiva de Deméter, brutal, dolorosa e acontece em aparência contra a vontade das duas mulheres. Podíamos dizer que há neste mito qualquer coisa da amargura e da acidez da semente, que traduz o lado inevitável da vida. À excepção da lírica de Safo e das tragédias de Eurípides, textos mais tardios, poucas obras da antiguidade estão tão interessadas na mentalidade das mulheres gregas da Antiguidade como este hino. E, contudo, não conseguimos entrar dentro da cabeça de Perséfone, não a conseguimos nunca entender perfeitamente.

Talvez isto ajude a perceber porque é que os gregos e os romanos usavam este mito para explicar outra coisa, a passagem das estações do ano. A terra morre no inverno, quando Perséfone tem de partir para o Hades e começa a renascer na primavera, quando ela regressa para junto da mãe. Mas Perséfone permanece tão impenetrável quanto todas as outras personagens à sua volta podem ser explicadas.

Num dos poemas de A Beleza do Marido, um livro sobre um casamento quase tão ambivalente e estranho como aquele que uniu Perséfone e Hades, Anne Carson comenta este poema num poema seu: 

Alguma vez ouviste falar do Hino Homérico a Deméter?
Lembras-te de como Hades cavalga para fora da luz do dia
nos seus cavalos imortais no meio de um pandemónio.
Leva a rapariga para um aposento frio lá em baixo
enquanto a mãe dela vagueia pela terra causando dano a tudo o que vive.
Homero narra-o
como a história de um crime contra a mãe.
Porque o crime de uma filha é aceitar as regras de Hades
coisa que ela sabe que nunca vai ser capaz de explicar
e assim despreocupadamente diz
a Deméter:
“Mãe, esta é a história toda.
Com malícia ele depositou
nas minhas mãos a semente de uma romã doce como o mel.
Depois pela força e contra minha vontade obrigou-me a comer.
Conto-te a verdade com pesar.”
Fê-la comer como?[ii]

A semente que Perséfone por fim come, contra sua vontade ou não, é um símbolo de muitas coisas no poema homérico: de núpcias, dolo, posse, juventude, inexperiência, sangue, fertilidade, morte. O gesto de Hades de alimentar Perséfone confirma o casamento mas lembra indirectamente os mortais que na terra estão a morrer de fome enquanto Deméter se recusa a fazer o seu trabalho, a voltar à normalidade. E todo o luto de Deméter está concentrado nesta pequena semente. Na cronologia do hino e na cronologia do desaparecimento de Perséfone, o casamento de Hades e Perséfone não se tinha tornado real e irreversível justamente até ao momento em que lhe é dada a possibilidade de voltar para junto da mãe, que é o momento em que ela come a semente e torna impossível um regresso permanente.

Anne Carson, no entanto, vê no gesto de Hades e na aceitação de Perséfone não o dolo ou o engano, mas cumplicidade, se não aceitação social. A semente exclui Deméter, cria um mundo que só pertence a Hades e Perséfone. Do que sabemos dos casamentos dos gregos antigos, a noiva partilhar uma refeição com o marido, em sua casa, era sinal da sua aceitação da união. Se Hades não enganou Perséfone e se ela sabia o significado da semente quando a aceita (sabia ou não?), então este casamento só existe a partir de um gesto de mútuo entendimento, da tácita negociação da regra que permite a Perséfone passar a existir entre dois mundos.

Este poema que é sobre sementes interroga-nos então sobre outra coisa: quanto daquilo que liga Hades e Perséfone é escolha, quanto disso é deliberado ou irracional, assente na paixão da curiosidade, na ignorância, no medo? Mas o hino não resolve nada disso, estende-nos uma semente, que para Perséfone é um símbolo de uma liberdade comprada (porque a inteligência de Hades é cobarde e canalha como costuma ser cobarde e canalha a inteligência dos patriarcas e a escolha que ele lhe dá não é escolha nenhuma, porque não é exactamente negociada), é também símbolo de desejo e morte e, sobretudo, de inexperiência, do peso de um futuro que ela não entende bem, mas que já não pode ser travado porque alguma coisa na silenciosa Perséfone mudou. A semente da romã é terrível e extraordinária, como as esperanças pouco razoáveis, as paixões tóxicas, e como o que é imprevisível e inesperado, as coisas que mudam a vida de um instante para o outro. Perséfone será a partir daqui aquela deusa que tem o poder formidável de decidir quem pode voltar do mundo dos mortos. Quando Hades, este deus das coisas mais tristes, a viu ainda viva, ele já sabia que ela era capaz disso ou não? E se sim, foi isso que lhe disse que eram iguais e se podiam entender? Mas e o que fazer da mocidade perdida de Perséfone? Da crueldade do inverno sobre a terra?

Então podemos dizer que o Hino Homérico a Deméter é baseado num mito que é sobre aprender a negociar com a dor, a solidão, o aborrecimento da monotonia de um tempo sem esperança, que existe em todas as vidas e não pode ser evitado, sobre deixar tudo morrer para deixar tudo renascer de novo, maniacamente, como acontece com Deméter na sua dor, talvez como aconteça com Perséfone quando ela aceita, ou escolhe, este corte.

4.

Havia outro dos mais jovens dos deuses gregos que tinha uma relação desastrosa com romãs. Numa tradição que não remonta nem a Homero nem a Hesíodo (onde o deus é filho de Zeus e Sémele), Dioniso é filho de Zeus e Perséfone. Nessa versão, o deus é despedaçado por titãs e do sangue dele, derramado no chão, brota uma romãzeira. Normalmente, a árvore e o fruto de Dioniso são outros, a vinha e a uva. Mas fará pelo menos um pouco de sentido que este fruto fosse visto como tendo alguma ligação, mesmo na mais obscura das tradições, ao mais misterioso dos deuses, aquele deus andrógino que conhecia o coração dos homens nos seus impulsos mais irracionais e que, como acontece com Penteu em As Bacantes de Eurípides, os podia levar a ver intoleravelmente um lado de nós próprios que às vezes preferimos negar ou fingir que não existe. Penteu pagará o mais terrível dos preços pela sua negação do mais tresloucado e divertido dos deuses, o deus do desvario. A vingança de Dioniso sobre Penteu, no entanto, não tem nada a ver com romãs. 

5.

Em 1887 foi escavada na Acrópole, não longe do pórtico do templo onde estavam as Cariátides, uma estátua de uma Korê a segurar uma romã. Essa Korê perdeu a cabeça literalmente. O mármore em que ela foi esculpida não veio de longe, de Penteli, ainda na Ática, o que quer dizer que esta Korê não tem uma origem exótica. O corpo elegante, as vestes, o tipo de penteado, colocam a escultura entre estátuas de uma estética que está entre o período pré-clássico e o clássico. Alguém a esculpiu algures no século VI a.C. Há ainda traços de tinta vermelha na romã, que é mais ou menos contemporânea dos templos monumentais que estão em Paestum, à volta dos quais alguém plantou campos de romãs.

D. H. Lawrence, que nasceu dois anos antes de esta estátua ser encontrada, ocupou-se no início da década de 20 de escrever um poema que é sobre encontros com romãs. É também sobre a progressão do desejo, sobre tentativa e erro. O poema desenrola-se em três partes de Itália, na Sicília, não assim tão longe dos tais templos monumentais, em Veneza e na Toscana.

D. H. Lawrence era bom a escrever sobre a natureza e não só por causa do guarda de caça que ele coloca no campo inglês no mais famoso dos seus romances. Um poemário onde se vê isso bem é em Birds, Beasts, Flowers, publicado em 1923. “Pomegranate” tem um tom provocatório, um narrador seguro de si, mas não há nele nem o mais leve traço do tipo de astúcia de Hades, da habilidade para a contemporização e para o jogo, há talvez exactamente o contrário disso, o lado corajoso, um pouco cego e um pouco temerário, de alguém capaz de se apaixonar e se perder de verdade, sem grande medo de errar ou ser julgado. Isto é particularmente notável tendo em conta a moralidade opressiva do contexto em que Lawrence começou a escrever (basta pensar que Lady Chatterley’s Lover acabaria em tribunal):

You tell me I am wrong.
Who are you, who is anybody to tell me I am wrong?
I am not wrong. 

In Syracuse, rock left bare by the viciousness of Greek women,
No doubt you have forgotten the pomegranate trees in flower,
Oh so red, and such a lot of them. 

Whereas at Venice,
Abhorrent, green, slippery city
Whose Doges were old, and had ancient eyes,
In the dense foliage of the inner garden
Pomegranates like bright green stone,
And barbed, barbed with a crown.
Oh, crown of spiked green metal
Actually growing! 

Now, in Tuscany,
Pomegranates to warm your hands at;
And crowns, kingly, generous, tilting crowns
Over the left eyebrow.

Em D. H. Lawrence, Selected Poems, p. 89. Também aqui.

Esta pergunta “Who are you, who is anybody to tell me I am wrong?” é quase da ordem de um primeiro corte, de uma primeira incisão. A recusa impaciente de qualquer coisa. Digamos que essa recusa é a de deixar que outros julguem por ele como escolher as suas romãs, se é que isso é uma escolha e se é que é de romãs que estamos a falar. O que se segue são descrições de encontros com romãs em três paisagens diferentes. Estas romãs evocam e são também elas gente nessas paisagens, das mulheres gregas tão viciosas na Sicília que apagam a memória de romãzeiras em flor até às romãs que na Toscana aquecem as mãos. Podíamos dizer que a estrutura de tentativa e erro que dá ao poema a sua forma lembra um pouco a interacção entre as personagens de O Banquete de Platão, que é o diálogo platónico sobre o amor e a origem da filosofia. O poema vai progredindo, numa linguagem cada vez mais sexual, cada vez mais provocatória, desarmante e cómica em face do que sabemos da moralidade inglesa à data em que D. H. Lawrence escreveu este poema:

And, if you dare, the fissure!

Do you mean to tell me you will see no fissure?
Do you prefer to look on the plain side? 

For all that, the setting suns are open.
The end cracks open with the beginning:
Rosy, tender, glittering within the fissure. 

Do you mean to tell me there should be no fissure?


Mas o final não tem nada de sobranceria, é antes de uma lucidez e vulnerabilidade deslumbrantes:
 

For my part, I prefer my heart to be broken.
It is so lovely, dawn-kaleidoscopic within the crack.

A metáfora nestes dois últimos versos transforma-se em metamorfose: o coração é uma romã, precisa de ser partido para ser aberto. Aceitando isso, lá dentro há um caleidoscópio.  

(6.

Há uma irmandade de atitude entre este poema e outro que não tem nada a ver com romãs, escrito por Auden em 1957, sobre estrelas, “The more loving one,” onde aparece qualquer coisa desta atitude fraturada, contraditória e irresolúvel, que une desejo e decepção, prazer e dor, vida e morte. A aceitação lúcida e lúdica de Auden deste estado de contradição não é nem um pouco menos espetacular do que no poema de Lawrence:  

How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.

Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.) 

 

7.

Odysseas Elytis nasceu em Creta em 1911 e uma das primeiras coisas por que ele se deve ter apaixonado na vida foi a paisagem da Grécia. Esta paisagem é um motivo constante e quase omnipresente nos seus poemas. Às vezes na limpidez exagerada e quase estereotipada das suas descrições da paisagem grega, imagino o mesmo tipo de olhar com que uma poeta que nasceu apenas um pouco mais tarde e noutro país as viu, Sophia.

O primeiro livro de Elytis continha já um dos seus poemas que iam ficar mais famosos, “A romãzeira enlouquecida,” um dos grandes poemas da tradição surrealista grega. Não é bem certo quem é esta romãzeira enlouquecida. Um pouco como as romãs com que D. H. Lawrence se encontra ela é em parte romãzeira e em parte talvez uma rapariga metamorfoseada em romãzeira, como sugere o tradutor inglês de Elytis, Jeffrey Carson. Há qualquer coisa de uma dança extraordinária na descrição desta árvore, com o narrador constantemente a descrever e a perguntar se a romãzeira enlouquecida corresponde àquela descrição.

Proud, full of danger, tell me is it the mad pomegranate tree
Who mid-world breaks the demon's storms with light
Who spreads from end to end the saffron bib of day
Richly embroidered with sown songs, tell me is it the
             mad pomegranate tree
Who hastily unhooks the silks of day?

In petticoats of April first and cicadas of August fifteenth
Tell me, she who plays, she who rages, she who seduces
Casting off from threat its evil black glooms
Pouring intoxicating birds on the sun's bosom

Tell me, she who opens her wings on the breast of things
On the breast of our deep dreams, is it the mad

             pomegranate tree?

Há nesta árvore que tem uma natureza dionisíaca qualquer coisa de irresolúvel, inexplicável, que se traduz na energia que o narrador atribui a todas as coisas que ele pensa que esta árvore pode fazer. Esta personificação da árvore é um subterfúgio retórico que recorda um pouco uma quadra de Pessoa, para as quais as edições críticas não têm uma data definitiva, mas que talvez tenha sido escrito por volta de 1935, em que uma romã é uma metáfora para descrever uma boca (sendo que o mecanismo aqui corre ao contrário, é o elemento humano que é assimilado ao mundo vegetal):

Boca de romã perfeita
Quando a abres p’ra comer,
Que feitiço é que me espreita
Quando ris só de me ver? 

Podia-se dizer que a enumeração das múltiplas possibilidades deste fruto, nos dois poemas, corresponde a um estado de observação apaixonada. Aquelas asas que se abrem na profundidade dos sonhos podem ser um motivo freudiano que lembra Dalí, mas são também a descrição transfigurada – na visão de um pintor, como Elytis também era – da coroa de uma romã. A relação entre riso e romã no poema de Pessoa torna transparente uma coisa que existe em todos estes poemas, o lado um pouco misterioso deste fruto, metáfora que não se quer explicar de diferentes seduções. Isto é particularmente verdade no caso do Hino Homérico: tentar explicar como e porquê Perséfone come aquele fruto é como embater contra uma parede. Vai continuar a ser um dos momentos mais inexplicáveis de toda a história da poesia. Tentar explicá-lo pelo ângulo da mansa aceitação ou da simples coerção parece-me sempre demasiado óbvio e parece-me sempre reduzir o poder de deliberação de Perséfone, uma forma de a simplificar planamente. São leituras possíveis, claro, mas aquele momento no poema continua a ser mais inexplicável do que tudo isso. É um pouco como supor que as éticas dos gregos antigos não tinham as ferramentas para falar da agência complicada de uma rapariga, da sua formidável vontade, se não dos seus complicados poderes de decisão, quando não de escolha. Se pensarmos em Nausícaa, Cassandra, Antígona, Electra, sabemos que isso não é bem verdade. Então?

8.

Então. De vez em quando é preciso apaixonarmo-nos irracionalmente por poemas inexplicáveis, se por mais nada, por causa desse modo de ver em profundidade que deixa uma romã ser uma romã, uma rapariga, a chave que prende a rapariga no mundo dos mortos e a deixa voltar ao mundo dos vivos, que permite que se descreva uma romãzeira como uma coisa que dança ou a anotação da extraordinária cor azul num fruto normalmente vermelho.  

Não sei se há outro modo de ler poemas difíceis que não são solução para nada e que nenhuma paráfrase pode explicar definitivamente se não admitindo à partida que eles são uma espécie de viagem, que deles não tiramos quase mais nada para além do caminho que fazemos com eles. É por isso que ler certos poemas, tanto quanto rever certas paisagens, é capaz de ser uma maneira de resistir ao tempo. 

As últimas romãs em Delfos, Janeiro de 2022


[i] “Hino Homérico a Deméter,” Tradução de José Pedro Moreira em Hinos Homéricos, Introdução de João Diogo Loureiro, Tradução e Notas de Tatiana Faia, Miguel Monteiro, José Pedro Moreira, Imprensa da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018.

[ii] Anne Carson, “IX. Mas que palavra era?,” A Beleza do Marido: Um ensaio ficcional em 29 Tangos, tradução minha, não edições, Lisboa, 2019.

 

 

"Advertência", de Antonio Delfini

Tradução: João Coles


Não venham comigo
porque sou sozinho
E andar com solitários
é como andar à noite
pelas ruas sem luz
Eles não vos dão nada
que vos sirva na vida
São pessoas pobres
que não têm o que dizer
a não ser deus meu meu deus
Ou sem dinheiro ou sem ideias
que vos sirvam
São todos pobres
todos abandonados
com um sorriso triste
sobres os lábios brancos
Sabem gesticular
sabem balbuciar
mas só de maneira estranha
Vocês não nos compreenderiam

Não se entediem por amor da santa
deixem-me inocente
do vosso tédio

Antonio Delfini, Poesie della fine del mondo, Einaudi


Avvertimento

Non venite con me
ché sono solo
E andar coi solitari
è come andar di notte
per le strade senza luce
Essi non vi danno nulla
che vi serva nella vita
Sono gente povera
che non ha da dire
se non dio mio mio dio
O senza soldi o senza idee
che facciano per voi
Sono tutti poveri
tutti abbandonati
con un sorriso triste
sulle labbra bianche
Sanno far dei segni
sanno balbettare
ma solo in modo strano
Voi non ci capireste


Non vi annoiate per carità
lasciatemi innocente
della vostra noia

Antonio Delfini, Poesie della fine del mondo, Einaudi