Morte da tragédia e outros (ir)racionalismos

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Friedrich Nietzsche não se cansou de criticar o Iluminismo grego, cujo paradigma foi Sócrates (que é muito mais do que uma singularidade, neste nome está a grande personagem filosófica de Platão e a realidade nascente, pós-homérica, da Grécia Clássica). O seu racionalismo optimista tiranizou o mundo através da lógica e da moral (a superestrutura verdade=bem). O trágico, naturalmente inverosímil e desenhado para o culto do sofrimento, foi combatido a golpe de silogismos. Em O Nascimento da Tragédia, 1872, Nietzsche, intempestivo, mas um heterodoxo lúcido, rebela-se contra um Ocidente nascido e criado a partir desse Iluminismo. Nele a filosofia também demanda a felicidade, a vontade de verdade, de tudo conhecer, é a esperança da Realidade incarnar na realidade (ou vice-versa). Mais tarde, no Crepúsculo dos Ídolos, 1888, regressa ao tema em “O Problema de Sócrates”, assegurando que este inventou a tirania racional contra o predomínio dos instintos, elevando a racionalidade até ao absurdo, uma racionalidade a qualquer preço, irrealista, fria, oportunista. Pelo contrário, Nietzsche pede-nos para não recuarmos diante da imaginação, por mais aterradora que seja.

Não é por isso, contudo, que se deve remeter imediatamente Nietzsche para um irracionalismo insolúvel. A sua obra testemunha bem a vontade de ser ainda mais claro (um claro-obscuro) do que a razão Iluminista. O que ele não faz é deixar-se iludir pela auto-suficiência e pelo autocontentamento das racionalidades científica e filosófica, ou censurar o ilogismo intrínseco, orgânico, da vida e o carácter interesseiro das nossas práticas cognitivas (critica várias vezes a máxima de Espinosa “Não rir, não lamentar, nem amaldiçoar, mas compreender” – Non ridere, neque lugere, neque detestari, sed intelligere –, apelida esta visão de “charlatanismo matemático”, visto que o ser humano, numa posição reinvestida há pouco por António Damásio, não conhece sem emoções e sem o corpo). Nietzsche não repudia, pois, a razão, quer antes aprofundá-la até a tornar plenamente crítica (sabendo que só o sobre-homem o conseguirá), superando o criticismo kantiano. Claro que neste processo se insinuam vários perigos (de tanto questionar o alcance da razão podemos acabar rendidos a uma espontaneidade estéril ou a aceitar emotivismos exacerbados, violentos ou pusilânimes), mas julgo que neste autor, ao contrário do que se pensa, há uma boa convivência entre o racional e o emocional, a mente e o corpo, foi isso que lhe permitiu ser um magnífico leitor do seu tempo (antecipando os nacionalismos mortíferos, o domínio da cultura pop, o poder do não-consciente, os movimentos fascistas...). O que Nietzsche recusa à racionalidade é o monopólio da significação, já que para compreender são necessárias as emoções e o contributo fisiológico do corpo (a que ele chama, em Assim Falou Zaratustra, “grande razão” – “Der Leib ist eine grosse Vernunft”). Isto permite-lhe atender à mudança, ao flexível, à novidade e à resiliência.

Curiosamente, André Malraux apelida elogiosamente Nietzsche de “o maior irracionalista do seu tempo”. Num diálogo com o realizador Jean Vilar em 1971, refere que Nietzsche não se deixa colonizar por ideologias, que nem o nazismo o conseguiu: “a grandeza de Nietzsche é a sua potência irracional, a extensão do seu pensamento.” Martin Heidegger, em Caminhos de Floresta, “A Palavra de Nietzsche ‘Deus Morreu’”, usa Nietzsche para expressar uma das suas teses mais glosadas: a razão, tão venerada, é afinal a “mais obstinada opositora do pensar”. Portanto, em vez de, como eu, valorizarem o racionalismo, o outro racionalismo nietzscheano, Malraux e Heidegger, podia também citar Georges Bataille ou Pierre Klossowski, realçam a importância do seu irracionalismo, único e revolucionário.

É talvez também aqui que, mudando-se o que tem de se mudar, encontro João Barrento e o seu magnífico A espiral vertiginosa – ensaios sobre a cultura contemporânea (Cotovia, 2001). Regressando ao eterno tema da morte da tragédia, Barrento segue Nietzsche na denúncia da perda irreparável para a vida humana decorrente da quebra do compromisso estético com a tragédia. Os gregos sabiam bem que as tragédias eram somente performativas, não havia aqui qualquer ingenuidade. E sabiam também que a potência da ficção, a superioridade da imaginação, ontem como hoje, se insinua profundamente nas linhas da vida. Ainda agora, depois de séculos de vacinas lógicas, choramos sob os efeitos de um filme lamechas. Os gregos foram os primeiros espectadores estéticos, e isso perdura, o Ocidente é o berço da ficção, esta alimenta uma parcela importante do mundo (numa situação diversa, como é que o Game of Thrones poderia ter tanto sucesso?).

É por isso que Barrento tem esta brilhante oração fúnebre, que podia ter sido escrita por Nietzsche: “No mundo de paixões que era o da tragédia antiga, a dor – tal como a beleza e a alegria, o canto e o êxtase –, é matéria-prima da vida ritualizada. Depois, a vida foi-se dessacralizando, tornou-se mais confortável, mais baça... e mais longa. Ficámos mais sós. Sós, não porque nos faltassem os outros, muito pelo contrário. Ficámos sós porque fomos amputados de alguma coisa que era parte de nós. O homem civilizado olha para o mundo, o mundo está em estado de dor quase permanente, e em vez de responder com um lamento (como terá feito nas origens a natureza, antes de perder a fala), fica em silêncio.” (A espiral vertiginosa – ensaios sobre a cultura contemporânea)

A Bacana: Poemas Reunidos I

Autores:
Ágnes Souza
Alice Vieira
Ana Bessa Carvalho
André Edson
Bruno Nascimento de Abreu
Bruno M. Silva
Carla Diacov
Chrischa Venus Oswald
Francisca Camelo
Ismar Tirelli Neto
J Carlos Teixeira
José Pedro Moreira
Jussara Santos
Laís Araruna de Aquino
Luís Quintais
Luiza Nilo Nunes

Mafalda Sofia Gomes
Matheus Guménin Barreto
Miguel Abalen
Otávio Campos
Paulo Pais
Sergio Maciel
Stephanie Borges
Tatiana Faia

Prefácio:
Luca Argel

Coordenação editorial:
Bruno M. Silva
Francisca Camelo
J. Carlos Teixeira
Mafalda Sofia Gomes

Preço: 7,5 euros (com portes incluídos para Portugal)

Para adquirir mandar email para abacana123@gmail.com

A Visão de Gubaidulina*

(Poema para 2 vozes, 2 línguas e Vários sons)

 

 “Tudo recomeça: ele passa outra

          vez pelo lugar de origem”

                       Manuel Gusmão

 

                                               I

Vater. Os olhos ensanguentados /flecha no céu/
Vergib. timbram as mãos /sujas /pregadas na dor.
Ihnen. Secos /os lábios entreabertos /roubam o
Denn. denso e espesso ar. O /Coração perfurado/
Sie. evoca aquele que o ama./Uma criança brinca./
Wissen. Nos olhos /onde se espelha o trovão/ a
Nicht. proclamada palavra /o seu perdão/ flutua
Was. entre o seu corpo e o condensado tempo.
Sie. O seu sangue vai escorrendo pela madeira
Tun. espessa /em lágrimas /entre/a dura multidão.

                                         II

Weib. Pálida mulher de azul cobalto não chores.
Siebe. Esquece esses olhos de coral /triste visão/
Das. e recolhe pela manhã esse meu duro corpo.
Ist. Retira esses teus belos olhos sobre os meus
Dein. pés e fixa-os no homem alto ao teu ombro!
Sohn. Mãe /novo filho implora o teu beijo /doce/
Siehe. Irmão/ imaculado/ novo ninho te espera
Das. – um que não conhece o frio ou a amargura.
Ist. Nas horas incertas dissipar-se-ão os nevoeiros
Deine. e na dor fixa o seu coração ditará o fim da
Mutter. tua angústia/A mão pousará sobre a tua./

 

                                         III

Wahrlich. Escurece. O céu espesso/ negro de cinzas/
Ich. traz acorrentadas compaixões e pesadas feridas.
Sage. Rostos mergulhados no medo / perdas e secas
Dir. aflições. /O acordeão de lágrimas irradia a dor./
Heute. Poderoso /ser divino/ salva-me do meu medo
Wirst. e com a tua mão guia-me pela fria escuridão.
Du. Atormentada fina cegueira /aceito./ Percorres 
Mit. /feito luz branca/agarrado à minha mão. Somos
Mir. – tu e eu /Falas arrancadas às portas douradas.
Im. Neste entardecer/ainda hoje/ atravessaremos o
Paradiese. corpo/linho de violinos/ e sem pesada dor
Sein. teremos sobre a nossa rosa/ o olho/ o ser imóvel.

                                           IV


Mein. Focado / o Sol / Brilhante. / Vi a águia /vermelha
Gott. como os peixes do rio radiante. / O rio / O abis
Mein. mo ali./ Ofusco / O sol Leve/ O mundo gira/
Gott.  Embate Bruto / o Sol. / Renome./ Sai da minha
Warum. mente  frescura/ mentes! /A criança brinca./
Hast. O corpo divino de homem recorda a água/ Essa
Du… da frescura eterna./ Perco sangue!/ Perdendo o
Mich…sangue/O coral./ Lançamento de elmo e émulo.
Verlassen O corpo em abandono terá fim/ Será o fim!

 

                                            V

Mich. Lábios entreabertos /secos/ onde a agonia ainda
Dürstet. não voou. /Intervalo interno/ eterno/ Convexo.


                                             VI

Es. Sacrificados olhos /em angústia/ a sua missão foi
Ist. completa. Cobre-se a cova de Adão e tu /amada
Vollbracht. mulher /floresces para o núcleo da flor.


                                           VII

Vater. Pomba/ trazida no vento/ de cândidas penas/
Ich. recolhe serenamente esta minha cansada alma.
Befehle. Puro/ este meu corpo/ que adormece entre
Meinen. farpas de madeira castanha/ espera ladrões/
Geist. futuros soldados e mulheres revestidas a límpidas
In. lágrimas de pranto. Este é o manto que o meu puro
Deine. sangue ampara./Abandonados os que choram!/
Hände. E eclipsaram-se os céus e o Templo ruiu. Assim...

                                                                                                                   01/08/09

                                                                                                                   11/04/19

Dali - Cristo de São João da Cruz, 1951..png

Salvador Dali - “Dali - Cristo de São João da Cruz”, 1951. (Pormenor)

*”A Visão de Gubaidulina” teve a sua primeira versão em 2009. Seguiram-se outras 4 ao longo dos anos. Esta é a 5ª versão, a versão de 2019. A sua reescrita continuará a ser feita sempre que o autor assim o desejar.

Dois Poemas de Dirceu Villa

cosmopolis

roma. sob os meus pés, amálgama. trajano
faz serpear a história; raízes envolvem os 
pés de estátuas, os deuses todos cegos e,
no rosto do busto de césar, os olhos sem

pálpebras de mussolini revivem. no panteão,
ciclópico, jeová penetra em forma de luz e
banha pessoas de bermudas floridas, celular
nas mãos, paciência; convicção alguma em

formas clássicas: museu; imergem no tevere
pedras de pontes, cores do casario, e o céu
se suja de vida e de séculos [ombros de atlas].
eterno repúdio aos não-cidadãos, a velha e

viva ordem eqüestre; talvez, assim, o soldado
limpe a longa espada enquanto rola a cabeça
da santa, em são clemente, masolino: soa a voz 
revolta de emma bonino, pálpebras apertadas.

***

terror sagrado

todas as palavras juntas em qualquer ordem imaginável
não reconstruirão o cosmos; a mão trêmula de abraão;
mitra ordena a suas estrelas desfazer o touro; um naco
de pedra vem inscrito dez vezes com raios, terror sagrado. 

membros da família rastejam buscando a carne do irmão;
com tanto sangue na boca o assassino sufoca após ter
matado a todos; o carro desgovernado pára somente em
pedaços contra o muro; o tirano cai fatiado nas entranhas 

por outro tirano; é um ruído que encontram atrás do muro,
é um sinal que se emite pelo cristal líquido, é a radiação
de encontro ao ouvido, um sussurro; são as ondas que
oferecem o inimigo sobre o altar, uma injeção no cérebro, 

o que faz gozar. as falas comprimidas em grunhidos de
parte a parte, criaturas se esgueiram revivendo das sombras
dos séculos; pedem sangue; pedem sanha; pedem surtos;
zeus esmaga raios com os dedos; os filhos, devora saturno.


[Perfil de Dirceu Villa na Enfermaria 6 aqui]