O sub-mundo da crítica

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Há pouco tempo, o poeta João Moita partilhou na “terrível aplicação neocapitalista” facebook a crítica que o também poeta Pedro Mexia fez para o jornal Expresso do livro Uma Pedra Sobre a Boca.

Na caixa de comentários surgiram “parabéns” e uma observação inteligente do nosso tradutor mais prolífico, Miguel Serras Pereira. Nela trata de confirmar o João como poeta de Deus, prontamente recusado por este. Os argumentos sucederam-se, com mais um interveniente, até que alguém, cheio de sentido de justiça, refutou de uma penada tudo o que tinha sido dito – até Deus, creio –, e de camisa arregaçada, pronto a matar por uma vírgula, garantiu, sem apelo nem agravo, que Pedro Mexia não sabe escrever, sendo apenas o cachorro do “Sr. Presidente”. Impôs de seguida um “não mereces [João Moita] tanta banalidade”, terminando, num registo épico, com “sem querer ofender ninguém. Só mesmo para dizer a verdade.”

Claro que não ofendeu ninguém, porque, para lá dele próprio, ninguém é filho de boa gente. E depois, se é “só mesmo para dizer a verdade”, de forma tão cândida e lapidar (ainda que a metáfora do “cachorro” contenha mais ambiguidade do que lhe parece), então seja bem-vindo ao sub-mundo da crítica literária (embora no seu caso esteja embrulhada na dos costumes, sobretudo nas rasteiras ad hominem). Um sub-mundo que, como percebeu logo à primeira, venera e zomba do mundo da criação literária. Nos dois casos sustenta maravilhosas emoções trabalhadas por um agonismo primário, amor e ódio, sem matizes. Antes se tratasse de um claro e obscuro, um apolíneo e dionisíaco. E as setas fossem lançadas sobre as palavras imperfeitas ou contra a beleza miserável.

A fúria dionisíaca ou o cinismo apolíneo (arrisco esta caracterização) se acalmassem com piras e piras incandescentes, alimentadas por todos os erros de sintaxe encontrados em autores menores, ou com as banalidades enfeitadas de seriedade bondosa.

Mas não, a crítica, especializada ou popular, subjectivista ou universalista, desolada como em George Steiner ou festiva como nalguns jornalistas, até porque não tem qualquer gosto pela dificuldade, empacota apressadamente com folhas de maledicência ou de elogios desmedidos o lento, dramaticamente lento, labor da criação.

E no entanto, sem críticos seria a própria criação que se empobreceria bastante, faltando-lhe o olhar racional que a obriga, pelo menos quando se trata de uma crítica informada e inteligente, a mostrar esplendorosas partículas que escapam aos que são somente leitores e até aos próprios autores.

Perspectivas do Desastre: quatro poemas

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1.

Chama-se gipsofila. Tem a delicadeza
das nuvens pequenas, voga num ramo alto
um tanto acima das jarras

 

2.

Ao pintar delicadamente
(a óleo sobre madeira)
um ramo de anémonas num copo de água,
Aurélia incluiu no quadro a pequena tesoura
que usara um pouco antes no jardim.
É um pormenor apenas,
uma breve tesoura de corte,
mas une o vidro, o vivo e a morte:
nas flores brancas e lilases faz fluir
o nosso frágil retrato

 

3.

Escrevem, desenham, fotografam
esculpem, filmam, tudo reinventam
e esperam que esses nados vivos
feitos de matéria morta (Wyndham Lewis
assim o disse) vivam para sempre. Mas
não têm conta os poemas desaparecidos
as canções esquecidas, as estátuas
apeadas, histórias desfeitas
pelo fogo e pela água,
casas destruídas
onde as chamas devoraram
o cerne das gavetas;

não têm conta as fotografias destingidas
o celulóide ardido, os dados apagados por engano
nos jogos de fortuna e acaso que nos regem,
às coisas vivas e mortas. 

Há nisto menos fracasso
do que seria de esperar. Gostávamos
de ter lido mais Safo, e todavia
tudo parece estar certo, mesmo assim.
Mais leve, pelo menos.

Um minuto de silêncio
por quantos na linha do tempo
se perderam
com todos os seus pertences;
e outro ainda, por até a linha do tempo
perdermos tantas vezes

4.

Ao largo, grandes massas de plástico
deslocam-se à tona de água. Diz
quem ali mergulhou
que os pedaços descoloridos de polietileno
entretecem
camadas sob camadas
e descem na água
em barreiras de grande espessura.

Agora, o que está em baixo não é igual ao
que está em cima

É ainda pior.

"Um par de lábios me"

Um par de lábios me
resguarda em desafio
são dois ou quatro
lábios?
não são os meus, diz-me a
consciência
que apesar de tudo fura
as imagens que aparecem
ando distraída, a perder a
lucidez
da membrana que vibra foto
sensível
onde está o toque?
no scroll gorduroso do meu
polegar?
no descarte endométrico com que
meço a negligência do meu próprio
ego
precioso?
na embaixada que fundei,
a dos amores emigrantes
investidos das maiores qualificações
em diáspora sem espessura?
na minha mão direita
quando
triste toca a esquerda?
no lençol amarfanhado, preso
no fundo da cama
(por isso desço eu, reduzo)
ou no desviar dos olhos do
falso amigo bem pago?
o mundo anda
bidimensional e a minha
pele e as camadas
dentro
ressentem-se