dois ou três movimentos em Leopardo e Abstracção 

(13 de novembro de 2021)

 

​​Sabemos já, todos, leitores dos livros e poemas da Tatiana (e ela di-lo dentro e fora deles), que os seus textos são longos, são narrativos. São – cada um dos poemas - um caminho desenhado de um início até um fim, como se o poema  fosse uma espécie de rua pela qual somos levados – levados pela mão e pela chamada de atenção a construções sucessivas, que aparecem, andando, cumulativas e sucessivas - portas e muros, alguns acidentes históricos e prosaicos, janelas, cafés, transeuntes, e muitos, muitos, muitos moradores, discriminados ou pressentidos. Ora, sabemos isso, e isso é de facto confirmado nestes poemas que compõem Leopardo e Abstracção. São 17 poemas longos, e alguns dos títulos revelam logo uma certa tendência stalker e voyeurista da nossa Tatiana: mulheres em sapatos difíceis; a segunda mulher do escritor; o que eu sei da filha de Agamémnon; o mistério dos homens adormecidos.

Já não bastava fixarmo-nos, nesta leitura ou passeio, num calcanhar de mulher com a sua correia por ajustar, e nas suas pernas longas, no seu gesto de “tentativo equilíbrio" no meio do aeroporto de uma metrópole; e depois sermos levados indecorosamente pela poeta a uma visita de cemitério cujo centro se desvia, levando-nos para um canto onde jaz uma mulher com um nome que não o seu; e depois perseguir, perder e regressar para tornar a perseguir uma mulher de camisa suada colada ao corpo por entre a multidão; e ainda nos vemos a ser levados a pairar num plano vagamente contínuo que olha com muita atenção e de muito perto para uma colecção de homens enquanto dormem. Voyeurismo e brincadeira à parte, é claro que estes homens são um pretexto. Um pretexto para por eles e através deles vermos o seu cansaço, a sua vulnerabilidade, como em torno deles “as cidades são imponentes e inteligentes e sem perdão”. 

Com este povoamento de personagens, que às vezes têm nome, outras vezes têm nome grande embora inicial minúscula, como churchill ou tito lívio ou a judite de caravaggio, e muitas, muitas vezes são um “tu” escorregadio, que temos dificuldade em decifrar e acompanhar; como dizia, com este povoamento já estávamos familiarizados em tudo o que a Tatiana tem vindo a publicar. Mas aquilo que esta releitura mais atenta do Leopardo me pediu, e que me deu muito prazer, foi tentar furar os fios condutores e narrativos, por onde a Tatiana tão bem nos acompanha em cada um dos poemas (ou nos leva, talvez, para que a acompanhemos), e que acontecem por entre as personagens e por entre as circunstâncias. Furar, quero dizer, cortar transversalmente este conjunto de 17 poemas, e olhar, contar o número de vezes que se repetem dois ou três movimentos entre imagens e ideias (é aos movimentos que são dados os leopardos) que, vistos assim, aparecem reiterados, procurados, eu diria quase obsessivamente nesta série de poemas. Vou tentar isolar alguns, cortá-los e colá-los. Não é nada original, estou a servir-me de uma ideia que nos aparece sugerida até pela quantidade de momentos em que a imagem do corte ou da lâmina aparecem nestes poemas:

 

“os teus pensamentos têm a violência 
de um fundo de lâminas
cortam tempo dentro como certas cordas” (circunstancial, p.13)

“o trabalho da mais absoluta solidão
dá em cinza dá em nada
e revela o seu lado enganador de lâmina” (sobre a insónia, p.17)

“entraste tu pela tarde cortando
a meio da respiração ofegante
uma sofreguidão de ar
que compõe em partes iguais
aceleração e queda” (cedo ou tarde, p. 20)

“como tudo o que é acidental
algo se incrusta por um golpe cego 
de martelo, violência e tempo
na harmonia indispensável 
de uma peça que a princípio
era aparentemente superficial” (a segunda mulher do escritor, p. 12)

“e eu penso o que é que em ti
se mutilou na destruição do papel” (materiais facilmente inflamáveis, p. 31)

“a rapariga que trabalha sentada à minha frente 
traz nos olhos o espanto de isaac perante a faca” (p. 32)

“o nosso tempo é cortado 
numa série de momentos 
que não têm a articulação de uma narrativa” (p. 32)

Quando primeiro comecei a sublinhar estes momentos do corte, do golpe, e até do acidente, que se repetem, julguei que estava a ler sobre uma certa vontade de interromper o tempo, de te desenvencilhares do peso da mochila da história e das coisas que convivem no que escreves, um pouco como projectas no teu poema sobre a filha de Agamémnon falando da “urgência de um corpo livre do seu enredo”. Depois percebi que é um bocadinho mais fundo do que isso, e se calhar até o seu contrário -  enfim, é complementar e contraditório -, o próprio caudal das coisas que nos cercam e povoam, aparentemente fluido, sugeres, é feito de cacos que ressurgem, e que podem cortar:

 

“(...) objectos
que embora parecendo inofensivos
se podem revelar facilmente letais
a tesoura com que se corta as unhas
a faca da manteiga a fivela do cinto (leçon de tenèbres, p. 44)  

Objectos que embora parecendo inofensivos se podem revelar facilmente letais. Este par de versos parece um alerta para o que de perigoso há por debaixo de tudo, sobretudo da distracção,  mas é também o tempo que é morto aqui, e por isso pareces desconfiar dos objectos, eles matam o tempo raso porque os esgotam nestes objectos que o ocupam e lhe servem de medida. Dizes isto - melhor, claro - no poema:

“o universo é por estes dias tão inóspito
que se pode reduzir muito depressa a objectos” (p.44) 

E sente-se muito, nestes poemas, um tom coleccionista que aparece, que enumera e extravia, acumula, e usa por vezes um dispositivo de quase-lista que parece procurar um efeito de saturação e o quase-quase-extravasamento de um jarro muito cheio de objectos da mesmidade.

“as canetas baratas que falham sempre
e os blocos de notas e o computador
e a caneca do sindicato de jornalistas
e as muitas caixas de chá
e todos os objectos pessoais” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32) 

“algumas contas e conchas e papéis
que atafulham algumas gavetas (p. 58) 

“oito caixas de kleenex” (p. 52)

“o mesmo café à mesma hora

(...)

este meio copo de cerveja barata” 

“ (...) alguns objectos de uma dor digna de confiança
os objectos de uma perda com rosto humano
e inventários de pequenos arrependimentos 
coligidos em pequenas molduras em todas as moradas” (p. 49) 

“tu reconheces que os mais inofensivos objectos
aqueles com que levamos a cabo o nosso trabalho
aninham afinal a banalidade de um terror quotidiano” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32) 

Não me parece que seja com o alívio de quem se quer desfazer da acumulação na garagem de casa que atiras com estes objectos para as páginas. Parece-me, aliás, que a tua escrita tenta criar mapas possíveis para uma convivência entre estes cacos, ou situações possíveis para, pelo meio deles, percorrer a rua. E sim, chamo aqui cacos já aos objectos do nosso próprio anonimato e da nossa própria perda de tempo; e equivalo-os aos recortes de instantes e de gestos das personagens que guardas, descreves e perdes nos teus poemas; e e equivalo-os aos objectos menos anónimos e do tempo passado e maior que de quando em vez convocas: todos eles aparecem meio que simultâneos e avizinhados, nos teus poemas (o teu gaio júlio césar do último poema do livro, por exemplo, é o de Roma, mas é também o nome do teu fiel relógio de cozinha). Não será por acaso que referes duas vezes, neste livro, o trabalho do museólogo paciente:

“os muitos fragmentos 
de vasos venezianos ou bizantinos 
fragmentados em centenas de cacos 
que uma mão teima em reconstruir 
povoando de remendos a sala 
de um museu desta ilha
dedicado ao escritor” (a mulher do escritor, p.12) 

“os objectos não se compõem
com a facilidade com que o último dos curadores
organiza objectos mínimos nos expositores” (circunstancial, p.13)  

Isto lembra-me uma passagem de que gosto muito, e que de vez em quando digo, por isso já ta devo ter dito, do livro O museu da rendição incondicional, da Dubravka Ugresic, em que alguém, na Alemanha, pergunta: “O que é a arte?”, e alguém responde: “A arte é um esforço de defesa da integridade do mundo, a conexão secreta entre todas as coisas… Só a verdadeira arte pode assumir uma conexão secreta entre a unha do dedo mindinho da minha mulher e o terremoto em Kobe (no Japão)”. Achei graça, por isso, a ter encontrado no teu poema gaio julio cesar os versos “queres muito ser/ alguma espécie de instituição/ do topo da minha manhã/ até à ponta do dedo grande do teu pé” (p. 65). Dedos dos pés, mindinhos ou grandes, parecem pois estar em alta na reconfiguração do mundo, pelo menos por escritoras que tentam desenhar novos mapas instáveis e afectivos, um pouco como nestes teus belíssimos versos: “como por exemplo toda esta secção de um mapa/ que vai de botthege obscure a via panisperna/ e se estilhaça no encaixe entre o ombro e o braço/ onde alguém se esqueceu de tatuar um banco de jardim” (hespéria, p.39).

Mas regressando ao lugar em que te encontro de tentar situar-nos no meio disto tudo, deambulante com super-cola e cinzel, ele tem a sua dose de ternura e de investigação, mas também de angústia. Aliás, uma possível chave para esta leitura pode estar no par de versos da página 56, em que en passant, a meio de um poema, aparece a pergunta:

“como adormecer 
entre um mundo de postais
e livros esquecidos no chão
e em mesas de cabeceira” (p. 56) 

Vou repetir: como adormecer entre um mundo de postais e livros esquecidos no chão e em mesas de cabeceira? É, realmente, um bocado difícil adormecer, Tatiana. A seguir a esta pergunta o poema segue dizendo: “a tua dor assusta-me/ porque não se reconcilia com nada”. Parece haver o temor de não conseguir organizar isto tudo nos expositores ou cuidar-lhe o sentido, arriscando permanecer, na sua beleza, como sugeres no poema leçon de tenèbres, “um apontamento à margem da destruição/ que é capaz de ser em si/ uma espécie de amor/ removida a seta/ a inútil a cegamente leal pressão das mãos tentando em vão reparar as ligações desfeitas” (p. 46).

Por isso ficas acordada, não adormeces. Enfim, “tu”. Tenho estado a alternar entre “a Tatiana” e “tu”, mas é à voz que se assume ou que se pressupõe no centro destes poemas que me refiro, claro. E essa voz atravessa estes 17 poemas, do início ao fim, acordada. Há, aliás, poemas com títulos como sobre a insónia, cedo ou tarde, e alguns sons antes da manhã. As referências ao sono, à insónia, àqueles que se observa a dormir, aos pensamentos que se percorre de noite, à espera pelo descanso, são muitas, seria difícil mencioná-las todas. Não vou fazê-lo. Mas vou dizer que elas, podendo ou não ser literais, parecem-me ser certamente metonímicas. E vou dizer que são acompanhadas, nos poemas, repetidamente - ao ponto de ser quase possível fazer um esquema desenhado -, por dois movimentos: um movimento circular (de ronda, de giro, de círculo, de cercar ou de ser cercada, e com aceleração); e um movimento linear, de espera e de rasgo, em direcção à manhã. 

Sobre o movimento da ronda, uma colagem de versos (e repito, isto são fragmentos esparsos nos poemas do livro que eu colei - heresia -, para sublinhar como ressurgem) poderia ser a seguinte: 

“um cerco rodeado de janelas” (sobre a insónia, p. 16)

“alguma coisa ainda mais rápida do que a sombra
aponta - enlouquecida bússola - para o centro da casa
para o que tem de permanecer de fora do espaço” (sobre a insónia, p. 16) 

“num apartamento de vinte cinco metros quadrados
rodeados por um marulhar de barulhos
por todos os lados e sem que nada os acosse” (o mistério dos homens adormecidos, p. 23) 

“uma urgência que preenche o vazio ao centro” (materiais facilmente inflamáveis, p. 33)

“uma força confiante como a dos leopardos 
rondando as casas do mundo” (materiais facilmente inflamáveis, p.34) 

“a velocidade com que o mundo gira
em direcção ao armagedon” (hespéria, p. 36) 

“daqui a algumas horas ou dias ou meses
acertar-me-à em cheio no centro do torso” (alguns sons antes da manhã, p.42) 

“o mundo fechou-se 
com toda a força dos pulsos
em redor do torso” (materiais mais pesados, p. 57) 

“o girar cada vez mais rápido 
de cada vez mais e mais cor
colando-se a cada minuto” (alguns sons antes da manhã, p. 42) 

“inesperado centro a que
com velocidade desarmante 
se reduziu o universo inteiro” (leçons de tenèbres, p. 44) 

“ele roda no sentido do relógio 
até que se faz chegar ao fim do tempo” (gaio júlio césar, p. 64) 

E sobre o movimento da luz, uma colagem possível incluiria alguns dos mais belos e até esperançados versos do livro:

“a madrugada há de romper de novo 
deixando ver
as paredes caiadas” (cedo ou tarde, p. 20) 

“a luz traz com ela
a promessa do dia ainda novo quando o recomeço é ainda possível” (cedo ou tarde, p. 20) 

“é estelar o seu abandono como um fragmento
de vidro que se ilumina de repente na escuridão do ar” (o mistério dos homens adormecidos, p. 25) 

“mas quando o dia começar 
eu terei fugido e estarei em uilenstende” (materiais facilmente inflamáveis, p.33) 

“e não é ainda esta a perspectiva dos corpos
que atravessam velhos túneis ao romper da manhã
quando a luz vem mais clara e mais clara ao fundo” (materiais facilmente inflamáveis, p. 34) 

“é um bom dia se a tua voz atravessa um continente
e chega com o romper da manhã antes
de o terror do pássaro do outono se lançar
voraz na sua última fala” (notas para uma salvação provisória, p.28) 

“não sinto que tenha autoridade 
para pensar no medo e na luz 
diante dos olhos
na precisa intersecção do medo e da luz” (antonio gamoneda, p. 48) 

“mas é ainda mais cómica a evidência
agora indisputada:
através do nevoeiro 
despenhando-se contra os faróis:
a noite fez-se manhã” (alguns sons antes da manhã, p. 43) 

Nestes fragmentos que estou a cortar, estou a deixar de fora as nomeações e os factos sobre os quais versas, e a concentrar-me nos movimentos que parecem acontecer, por entre eles, por alguém que tenta dar-lhes sentido e que com preocupação e cuidado vela por eles. Dizes tu, no poema materiais mais pesados (p.59):

“é como ser um deus do sono ou da morte 
que se passeie pelas ruas com um pequeno caderno 
onde vai apontando nomes como um delator”  

E em materiais mais inflamáveis descreves a ronda da noite de Rembrandt.  Tornou-se muito nítida para mim uma figura no centro destes poemas que assume o bonito e difícil papel de vigilante, um vigilante insone enquanto o mundo dorme e no entanto gira, provavelmente carregando a pergunta que há pouco sublinhei: “como adormecer?”. (E um à parte, achei graça e pouco inocente que tenhas chamado a este mundo onde não se adormece um “mundo de postais”, como se a colecção que fazemos dele não desse para ser senão lúdica e simulada). Muito surpreendentemente, quase comicamente, como dizes, a manhã acaba por aparecer, é um absurdo, mas também o anúncio de mais uma volta. 

Mas há um pormenor que não é nada pequeno e que está a rondar esta conversa sem que eu o explicite. Se calhar já alguém aqui perguntou: “mas ela não fala do título? o que é isto do leopardo? e a abstracção?".  Pois é, Tatiana, tu pões leopardos e abstracções dentro de um poema. Eles rondam a casa, e rondam todas as casas. Por isso não consigo ver esta figura que vigia de noite e tenta juntar os pedaços como não se pressentindo, ela própria, circundada, ameaçada, seja pelo  movimento imparável do tempo, seja por algum perigo escondido. Leopardos e abstracções rondam a casa. Esta ideia foi roubada a um poema da Hilda Hilst, que citas em epígrafe do livro, e é lata e misteriosa o suficiente para que eu sinta que possa tê-la roçado aqui ao de leve, mas que continua para mim intrigante - os leopardos são difíceis de caçar. Por isso perguntava-te, Tatiana, se queres dizer alguma coisa sobre isto. Antes disso, e de dizeres, tu, tudo que quiseres dizer, e de irmos ler finalmente alguns poemas, sem estarem todos estilhaçados, que isso é que interessa, se calhar líamos o poema da Hilda. O que achas?

Leopardos e abstrações rondam a Casa.
E as mãos, o ato puro pretendendo. Ainda
Que eu soubesse o que tudo vem a ser,
A ideia, a garra, de mim mesma não sei 
A fonte que gerou tais coisas nesta tarde. 
Leopardos e abstrações. Que vêm a ser?
Roxura, ansiedade? Memórias de Qadós,
Soberba e desafio se fazendo ronda
Plúmbeo Qadós diante da luz de Deus?
Se as tardes se fizessem meninice 
Para que eu descansasse. Se as mãos
Fossem as mãos de Agda, eu decerto cavava.
E morrendo, descobria a mim mesma 
Me fazendo leopardo e abstração
Na ociosa crueza desta tarde.

(Hilda Hilst. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)

o “canto um” de “L'été langue morte” de Bernard Nöel

tradução a partir de L’été langue morte (1982), presente no volume La chute des temps, Bernard Nöel, Éditions Gallimard (1993)

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o mundo não acabou
e quando o vento se levanta
o nosso rosto é diferente
o amor desfaz o amor
para se tornar mais do que ele mesmo
quem vai morrer
sabe que a beleza é inexorável
eu observo o teu sopro
tu evaporas-te
o obscuro do tempo é uma unha
atrás do olho
seria preciso segurar a língua
até ao começo do mundo
a luz é terrífica
o mar não cessa
tu procuras um ponto por entre o dia
o presente é sem objectivo
sem contorno
e o cume das pedras
não conhece a sua sombra
aquilo que me pára
sou só eu
a minha cabeça demasiado numerosa
um sentido
uma dúvida
não basta ver
o olhar fez cair de mim
todo o visível
a língua lança em vão uma ponte
para reparar
cada sílaba é o eco
travesti de um adeus
pétala de ar
quem és tu
tu faltas-me no teu nome
ah tornar-se o antigo de si mesmo
é falar
o sopro faz no espaço
menos que um reflexo sobre a água
esta noite
a música é uma ilha sobre a ilha
e a sua margem
um anel de olhos
pousado
todo o centro é vazio
mas o nada onde se apagam os passos
come o nosso chumbo
o osso areja
e eis o Outro
o delegado do desejo
quem dança
o seu passo escreve sem traço
um instante
uma medida
onde o perdido carrega o que vem
o tempo deita-se sob o tempo
de repente
o vazio do anel
torna-se o vazio do aberto
o O
de um grito que nos atira
pelo ar
a arte
não é eficaz
o desejo também não
deixemos a eficácia para a roda
e digam-me onde é o seu começo
os caminhos não fazem sinal
eles são caminhos
simplesmente
a língua desaparece sob as pedras
estar aqui é suficiente
no entanto
quem conhece o instante
nós fugimos ao pensamento no pensamento
lembras-te
ele era esse monte de cabelos
sem boca
apenas a tua sombra o cobria
não há sujeito
não há profundidade
apenas o esquecimento
onde vamos para pecar
e por vezes é tão bonito
aqui e ali brincam juntos
o céu esconde a mesma coisa
que o mar
toda a forma diz NÃO ao vazio
mas
o intervalo fazes tu
eh que posso eu
se o azul não é tão belo sobre os teus lábios
como ao longe
nós procuramos por todo o lado o em lugar nenhum
de uma outra terra
o perecível
está nos nossos olhos
a luz verte-se para fora
é o suor das coisas
escuta
eu não tenho nada sobre a língua
mas digo
estar aqui é muito
e pela primeira vez
ouvimos o ar amarrotado
sob a asa do pássaro
uma andorinha
o único é sem limite
eu não arrumo na minha cabeça
o uma vez
esta vez perde-se no ter sido
e uma vez resta uma vez
como o vento sobre a mão
escuta
ninguém imagina ser
senão nós
e isso faz de nós a besta
de um labirinto de ar
onde cada um só se vigia a si mesmo
entre o dito que morre e o não dito
que vai morrer
a boca é o remetente
do exprimível
a morte
perde o fôlego
e a vida
dança
alto
depois nada
vírgula sexual
palavras em demasia
acreditámos no poder da palavra
e a terra ferveu
onde está a nossa casa
se a minha língua apaga todas as portas
as palavras imitam um segredo
que sacodem
eu escrevo por amor dos olhos
que são o meu conteúdo
rosto rosto
não há candeeiros suficientes
e livros demais
mas o mar está aqui
imóvel
e nessa imobilidade
a linguagem reconhece a sua promessa
olha
a imobilidade chama o vento
o estado de angústia está ligado
à gota em movimento
assim vai a palavra
na ilusão que se desfaz
nada será seguro
a própria ideia abisma-se
na ideia
que história
entre ti e o mundo
que palavra-a-palavra
contra natura
os olhos da minha amiga estão na terra
aquela que me dizia Canta
agora
escrevo
cada linha come
o que a terra já comeu
miséria
miséria
eis que vem a mentira
a quem se dirigir
a quê                                   
uma noite
nós fomos
eu sobre ti
e a chuva sobre o telhado
sim
ninguém fala com ninguém
mas as nossas línguas por vezes
são as de duas bestas
que brincam e se entendem     
sim
o que é que é possível
o desejo
a usura do desejo pelo desejo
e no entanto
tu fazes parte de mim
como o sopro faz parte
da boca que abandona
eu queria
como viver
eu queria
eu queria examinar em mim
aquilo que precisa de querer
e aí os meus lábios procurariam
a fenda
e tu dirias
mostra-me o rosto
e haveria
aqui mesmo
o face a face
de mim e do meu esquecimento
mas quê
o que é que está em jogo
escrever
pousar aqui
uma palavra-buraco
pousar a minha boca
e que este O
seja o aberto
de uma bela loucura
agora 
agora
agora

Notas sobre Poesia Contemporânea Portuguesa #2. “Par de Olhos” de Inês Morão Dias (Fresca, 2019)

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 Vivemos num mundo variado e disperso (ou vivíamos quando comecei a escrever este texto). Parece que foi de uma deambulação por lugares de todos os dias, de um encontro nas ruas com uma mulher que trabalhava numa esquina à noite e que se chamava Carlota Valdivia, que em 1904, em plena depressão da fase azul, Picasso pintou Celestina. Muitas coisas acontecem nesse quadro eminentemente estático. Nas cores e na figura esguia e de buço por fazer de Celestina há uma austeridade que lembra certas figuras de El Greco. Celestina tem uma idade avançada e falta-lhe um olho, e Picasso pintou-a no que parece ter sido, pelo que lhe fica inscrito no rosto, um momento no intervalo de qualquer outra coisa mais importante, como uma pausa de um  prolongado enfado de pendor sarcástico, quando Celestina acorda dessa letargia e sente um certo alarme que não sabemos bem o que é, e que talvez também ela não saiba bem o que seja, mas tem qualquer coisa que ver com o facto de ser vista. Há também o facto de que, passando-se isto na fase azul, ela estar completamente representada em tons de azul, e no olho que lhe falta o azul é tão delicado que Celestina, que não é de todo nem jovem nem bela, com o seu olho ausente nos faz pensar no olho turquesa  que existe no rosto de outra mulher que, por um acidente da história, no busto que a imortaliza ficou também com um olho só, esse busto é o da rainha do Egipto, Nefertiti, que pouco poderá que ter que ver com Celestina: exceptuando pelo facto de só entre ambas existir um par de olhos.

Porque visualmente falando Celestina surge complicada pela relação de Picasso com a cor azul, quando o expressionismo de Picasso já olha para frente, este é um daqueles quadros da modernidade cujo objectivo não é tanto uma representação realista do rosto de uma mulher que de outro modo podia ser banal, a falta de olho, o buço por fazer, mas aquilo que uma cor que nunca podia ser a de Celestina interpreta. O que quer que o azul de Celestina possa querer dizer, não há interpretação que o resolva, a instabilidade permanece e é adensada pelo olho em falta. Há outro lado de Celestina, que fica implícito no espaço alucinado pelo quadro, e que é a simpatia de Picasso por uma humanidade oprimida, explorada, pobre e sem voz. O mundo de Par de Olhos, primeiro livro de Inês Morão Dias, tem muito que ver com tudo isto.

Par de Olhos, poderia, pelo menos em sentido literal, estar no universo representacional oposto ao de Picasso e de Celestina, mas o título é, claro, ambíguo. Este par de olhos assoma primeiro à vista num dos poemas do princípio, que começa com a palavra arejar, e é uma sinédoque, para um tu que, assim nos é dito, convertido em destino, permite que se sobreviva à vergonha do narcisismo. Muito do que acontece neste livro tem que ver com um impulso em direcção ao exterior, ao outro, que embora pareça ser da ordem da curiosidade que matou o gato, é também necessário para que, como se lê nos últimos versos do livro se cultivem jardins, “porosas miniaturas/ entre o fora/ e o dentro.”

Há um efeito de desordem nos poemas de Par de Olhos que instaura uma certa instabilidade, que é tanto espacial como sentimental, que eles navegam mas não resolvem, um lado lúdico constante que convida o leitor a entrar mas que o deixa em estado de alerta porque tende a resistir a todas as interpretações. As linhas de força de Par de Olhos são linhas de instabilidade que têm que ver com os movimentos, mentais e de flanêrie por uma cidade que é e não é o Porto no século XXI, de um sujeito urbano que mantém um caderninho num saco com outros objectos (ver p. 16), e que parece não ter grandes problemas em declarar-nos os seus métodos. Há três ou quatro poemas que poderiam servir como artes poéticas, mas talvez aquele que seja mais esclarecedor desse ponto de vista, seja o poema da página 26, onde se lê: “Na frincha de um metro e/ pouco entre a linha do comboio e a/cerca/ há sempre roupa pendurada/ ao sol.../ terra fértil/ como escrever nas margens.” Sem dúvida que Par de Olhos é um livro escrito a partir de diversas margens, mas elas também servem para chegar a momentos inesperadamente altos, como naquele poema (p.30) em que se diz “quero chegar às coisas/ certas” mas a única percepção que se declara é aquela em que lemos “percebo que a força/ motriz que haverá/ em ti pousou/ numa flor real... e o desejo, digam-me/ onde está.”

Há revelações mais imprecisas, de ordem mais universal, que obedecem a equilíbrios de entendimento entre as pessoas, que são de ordem mais fugaz e difícil de classificar, como por exemplo quando o olhar pousa no de uma professora, “a vertical e magnífica bitkova,” e ambas, narradora e narrada, entendem estar dentro do mesmo segredo, o que permite que mergulhem, ou desenhem, o que na verdade é uma metáfora para o desenho, o que se descreve como a “mais simples reconfiguração do mundo,” como todos os gestos cuja finalidade é compor um lugar. Estes gestos regressam, e na verdade concebem momentos que alicerçam o livro, definem o espaço que ele ocupa, desenham, por exemplo, toda uma sequência que vai de um poema chamado “crónica,” em que uma série de humanos se juntam para dançar num sétimo andar, em que se descobre que o significado de uma palavra pode ser prima de uma mão que sorri num determinado dia. Há em todo o livro um íntimo elo entre as metamorfoses que o movimento através do espaço permite, e aquelas que são criadas pela linguagem, como esta, em que uma palavra é exposta como prima de uma mão, e assim de um gesto. Os encontros mais banais por vezes encerram revelações decisivas, expõem o quão facilmente podemos ser salvos ou perdermo-nos: por exemplo, num poema (p.74), alguém sobe a rua com um mau pensamento, e acaba a ajudar uma senhora sozinha e que, cheirando muito a álcool, não consegue baixar o volume da música que um filho que desapareceu de cena deixou a tocar, e quando esta mulher lhe toca o braço, percebemos que este poema é a história deste toque, desta mulher que se ri, “como se tivesse parado/ só para me travar o pensamento.” Num dos poemas mais fundamentais do modernismo, escrito por W. B. Yeats em 1919, há a descrição de um falcão que gira e gira no ar sem poder ouvir o falcoeiro, o que deixa em nós leitores, a impressão de círculos concêntricos que se vão tornando cada vez mais afastados, e o verso que fecha a descrição desse movimento do falcão, é aquele que conclui que o centro não se sustém. Os poemas de Par de Olhos não têm um centro, muitas vezes parece que entramos por um stream of consciousness, mas, não havendo um centro, há um olhar lúdico que parece colecionar revelações fundamentais para viver num mundo em que as narrativas, pelo menos as que estão supostas nestes poemas, não são muitas vezes teleológicas, isto é, não pendem para um fim, o que significa que o objecto das narrativas destes poemas não é o utilitário. Há, de resto, uma certa resistência a isto, numa cuidadosa distinção entre aquilo que é a busca de um sentido que ultrapassa quem fala nestes poemas, e uma tendência para o sermão. Ou seja, aquilo que separa a poesia da retórica. Há (p. 76) um verso em que se lê, “a epístola não poderá dar lugar ao sermão.../ a epístola ora procura poiso ora se vira, pêndulo complicado no seu apoio/ supersticioso na secreta/ esperança/ de uma atenção não dita/ aos rebentos das túlipas/ aos títulos do jornal com os seus cúmplice/ aos ninhos de horizonte/ a epístola tem um fim.”

Todos estes momentos demasiado altos, ao longo do livro, dependem de revelações ou epifanias efémeras, cuja luminosidade fica connosco, mas é muitas vezes alicerçada num sentido de humor que roça a autoparódia, o que só sublinha a instabilidade. Há poemas que são sobre preocupações mundanas, no melhor sentido do termo, com os limites do espaço, com copos de vinhos e sandes comidas às horas de almoço, com uma relação entre profundidade e rasura, interior e exterior, cujo diálogo ambivalente com os sujeitos que nelas pousam os seus pares de olhos só pode ser tornada óbvia através de palavras, mais especificamente as que se leem em poemas como este  “o lado de fora dos anos/ dois mil/ está do lado de dentro/ de todos os poços que/ lado a lado/ são fundos (p.8),” o que tem uma equivalência com as coisas que ficam por ser ditas, que permanecem à superfície sem se esclarecerem.

Deve ser por isso que uma das grandes preocupações éticas deste livro tem a ver com o cinismo, que alicerçado na contradição é uma forma de hipocrisia – não me parece, de outro modo, que haja em Par de Olhos grande tendência ou paciência para moralismos. A hipocrisia surge no poema “Mastiga a contradição (p.13),” que vem com um eco de Sophia, e daquele poema sobre as pessoas sensíveis que nunca matariam uma galinha, mas não têm grandes problemas em comê-las. A versão da Inês para isso reza assim: “...o cinismo/ ... é usado com frequência/ entre refeições mas a/ que tão bons corações se/ apegam como se fosse pão...”

            Há, claro, aquilo que nos salva do cinismo: a desconstrução é ainda um exercício sobre a forma humana, um modo de apontar direcções. “One meets another” (p. 62) é provavelmente o poema mais explicitamente erótico de Par de Olhos, descreve e marca as posições de dois corpos no espaço, o modo como se enredam e desenredam um no outro, um do outro, traçando a sua própria história, mas o ponto central do poema é não este momento, mas o modo como as histórias começam, existem antes de chegarmos a elas como pontos de referência, ainda que depois se desfaçam, a função do poema é registar uma história que se vai lendo “nas legendas das imagens/ estrábicas da dispersão/ e desatenção/ ao respirar/ que é a lava dos dias que se/ agarram/como bacias do corpo humano/ vertendo realidade/... que de través ou/ resvés disso/ se desvaneceram.” O sentido é algo que se isola por um momento, que se entrevê.

No entanto, o último poema do livro, “Paisagem” (p.88-89), talvez no contexto da poesia contemporânea portuguesa exista no mesmo contexto de conversa cívica a que a recentemente a antologia Três Bucólicos Ingleses: John Clare, Thomas Hardy, Edward Thomas (selecção e tradução de Ricardo Marques, Elysium, 2020) se refere: a da nossa relação com as paisagens urbanas e naturais em que vivemos, com o planeta, em última análise, lemos versos que já citei acima: “e contudo na hesitação/ entre deambular e a autofagia/ jardins cultivam-se// porosas miniaturas/ entre o fora e o/ dentro.” Pode bem ser que estejamos a viver num tempo que não tem um centro, um ponto que Par de Olhos retoma de velhas poéticas dos modernismos e eleva a aspecto central da sua poética, mas também isto é elusivo. O livro traça afinal o seu próprio caminho. A dispersão de que nos dá conta é-nos proposta com um grão de sal e é este grão de sal afinal o objecto fundamental do livro. É o que nos recorda, como os versos finais, que as linhas que desenhamos, sempre que nos viramos para fora e nos perdermos nos enredos que nos rodeiam, têm as suas zonas de contágio, são os jardins que afinal vamos cultivando.

 

Tatiana Faia

Lisboa, Março de 2020

Oxford, Novembro de 2020