"NOTAS sobre BACH" - versão 0.0 - (2015)

“tecer uma construção sem testemunhas, sem luz, e sem ar.”

- Maria Gabriela Llansol (“LisboaLeipzig”)

Violin Concerto in E Major, BWV 1042

dedicado a Pedro Eiras

Notas:

Comprei o meu primeiro Cd de Bach nos anos 90. Não me lembro exatamente em que ano foi, mas sei que deve ter sido entre os meus 15 e 18 anos. Usei-o, como a outros cd’s da altura, para desenhar freneticamente. Desenhar ou pintar é um ato de audição, de impulsividade, de transe; toda a razão é desligada. E, no entanto, sei perfeitamente o que estou a fazer; não há vida sem paradoxo. Ou talvez não seja paradoxo, mas apenas saber manter o equilíbrio entre expressividade e pensamento, saber manter a fina linha que separa e une os dois. Tudo, em mim, começa na linha, dizer isso é dizer imenso.

Entretanto, de 2005 a 2015, dez anos, praticamente não ouvi Bach, que ficou adormecido. Em parte porque os Cd’s de Bach ficaram nos Açores, em casa dos meus pais, e também porque estava mergulhado nos compositores contemporâneos - Boulez, Ligeti, Penderecki, Gubaidulina. Falo, aqui, apenas no uso da música como material para a criação, e esta é, sobretudo, e quase sempre, a clássica.

É em 2015, com o livro de Pedro Eiras - “Bach” (livro saído em 2014) que Bach regressa outra vez à minha vida, para não mais desaparecer. É Bach (ou Rameau) que tantas vezes me faz companhia quando os gatos cá de casa estão a dormir - os três. E deixo-me levar pela música, riscando ou apontando ideias e mais ideias, papéis que terão direito ao caixote do lixo pela manhã. Poucos sobrevivem. A presente série, pequena e insignificante série, como é a nossa vida, foi desenhada, nesse ano de 2015, entre a a leitura do Bach de Pedro Eiras e a audição da música de Bach. Um ano depois, já em 2016, fui assistir a um seminário do Pedro Eiras, na Flup, e pedi-lhe um autógrafo, que muito prezo, no meu exemplar de Bach. Data desse ano o incio de uma rica amizade.

Trazia já, em 2016, “LisboaLeipzig” de Maria Gabriela Llansol lido e, claro, o “Bach” do Pedro Eiras. Agora, por estes dias, junto, cá em casa, os dois - Llansol e Eiras - em “AS MÃOS DE MARFIM” - novas notas sobre Bach, notas que terão fim, creio, ainda este ano de 2020.

* As notas são sobre várias obras de Bach

Marinheiro com Residência fixa

Com Navalhas e Navios – Poesia Reunida 1972- 2012-

de Urbano Bettencourt (2019)

Prefácio: Carlos Bessa; Edição Companhia das ilhas

     A primeira vez que ouvi o nome de Urbano Bettencourt foi no ano de 2003, em Ponta Delgada. Tinha, como se pode facilmente confirmar, 20 anos. Lembro-me ainda hoje desse dia, ou melhor, da conversa em que o nome apareceu. Um dos meus amigos, um rapaz que na altura estudava Filosofia na Universidade dos Açores, e que gostava de livros como eu, referiu o nome do poeta contemporâneo açoriano numa conversa sobre poesia, onde andaria, provavelmente, autores que andávamos a ler e, inevitavelmente, Antero. Digo inevitavelmente porque, bem ou mal, a memória do grande poeta sempre esteve bem presente nas ilhas, e no espírito de quem lê poesia nas ilhas, o que era o nosso caso, rapazes de letras e na casa dos vinte.

     O mesmo Antero aparece como título de um livro de Urbano Bettencourt, já em 2006, e que, por algum motivo que ainda não sei bem, me fez pensar no livro de Armando de Silva Carvalho – Anthero, Areia & água, de 2010. Desse livro Antero, de 2006, o poeta só nos deixou, nesta antologia, um único poema, o que criou em mim, desde logo, uma curiosidade em ler a totalidade do livro. Será mesmo um livro? Ou será apenas um poema solto escrito em 2006?  Eu poderia ter perguntado diretamente ao poeta, mas preferi não o fazer, pois o leitor é que tem de ir à procura do que lhe falta, algo que terei de fazer quando estiver em S. Miguel, porque bem sabemos, e quem não sabe digo-o já, ter acesso a livros das ilhas, estando no continente, é um tormento, sobretudo se os livros já estiverem fora do mercado. (Esse tema dava pano para mangas, mas deixemos para outro dia).

     Embora passasse a conhecer, em 2003, o nome de um dos maiores poetas açorianos contemporâneos – Urbano Bettencourt – a leitura da sua obra foi sendo feita de forma dispersa e muito tardiamente, um ou outro poema apanhado por acaso em revistas ou antologias de poesia açoriana. E isso deveu-se por minha culpa e não pelo poeta que foi publicando com alguma regularidade livro atrás de livro. Ao contrário do que a maioria das pessoas possa pensar, sou um leitor muito lento, e quero continuar a ser um leitor lento. Refiro-me, não à leitura do livro propriamente dito, mas, sim, à sua absorção. Um poema pode ser lido em dez minutos, mas a sua compreensão pode demorar meses e até, em determinados casos, anos. Esta é a leitura que me interessa, e a que deveria interessar a todos. Acredito que há poemas que exigem uma vida inteira para serem compreendidos e outros em que uma vida não chega, os que ficarão sempre por ser compreendidos.

     Digo tudo isto para se compreender duas coisas: primeiro) a importância desta antologia para minha geração e para as gerações mais novas, passamos a ter uma visão global da obra de um dos maiores poetas açorianos vivos; e segundo) para dizer que precisei de algum tempo, alguns meses, para entrar na poesia de Urbano Bettencourt. E não sei até que ponto terei entrado inteiramente nela, o que deve ser entendido como um elogio ao poeta, pois exige do leitor tempo.  Ora, quando comecei a ler o livro, não consegui parar, pela simples razão de que me surpreendeu imenso o livro. Aqui é preciso fazer um parenteses, para dizer que Urbano Bettencourt, já com 70 anos, faz parte da geração dos poetas que, realmente, me interessam, ou seja, os poetas que começaram a publicar nos anos 70, ou seja, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, Nuno Júdice, etc. Mas também quer dizer, Santos Barros, Marcolino Candeias, etc . Ou seja, estamos perante um autor que vem de uma geração que me fascina, uma geração em que a narrativa e a contenção metafórica estão de alguma forma ligadas. Posto isto, depois desta observação, há que entrar no universo de Urbano Bettencourt.

     O que me chamou à atenção, no imediato, foi a ideia de estarmos perante um ponto fixo que deambula por três universos espaciais/ geográficos diferentes. Ou seja, o ponto fixo será os Açores e a deambulação poética de Urbano Bettencourt anda por: a) Portugal continental b) Madeira c) Canárias e Cabo Verde. Se quisermos podemos resumir em Macaronésia e Portugal continental. O que quero dizer é que  estamos perante uma poesia cheia de referências culturais de diversos pontos do Atlântico, uma poesia tipicamente pós-moderna, rica em relações intertextuais com outros poetas e obras. Dito isto, torna-se claro que a minha compreensão da poesia de Urbano Bettencourt fica aquém do que é exigido pela sua poesia. O que parece ser uma desvantagem é antes uma enorme vantagem, pois é um livro que me obriga a ir atrás de outras coisas, um livro que estimula a minha curiosidade, um livro sempre em expansão todas as vezes que o leio. Ao mesmo tempo, é um livro sobre o universo familiar, a ilha, as coisas simples da vida, o amor, a morte, a saudade, a que se associa algum humor e algum sarcasmo (ver por exemplo o poema “Exercício de Socorro a náufragos (tranquilos ou não) depois de falhar a respiração boca a boca)”). Este poema talvez seja o meu preferido.

     Esse ponto fixo que se move num espaço geográfico extensíssimo, e, diga-se muito claramente, do qual há um enorme desconhecimento no Portugal Continental, tem a sua melhor expressão num dos seus mais belos títulos: Marinheiro com residência fixa, de 1980.  Nesse título, creio, podemos sintetizar toda a poesia de Urbano Bettencourt. Carlos Bessa diz exatamente o mesmo no prefácio de Com Navalhas e Navios: “Marinheiro com residência fixa, que pode ser entendido como a síntese de uma arte poética. É o mar português tão presente na nossa lírica e na nossa épica, um mar agreste e um mar de heróis, mas também território de gente anónima, de diferentes tipos de anti-heróis que deram a vida em nome da pátria ou que dela fugiram à procura de um eldorado.” Por mais que se navegue entre ilhas e arquipélagos distintos, a residência fixa, as raízes de Urbano, está nos Açores, o que faz desta poesia uma poesia rica e cosmopolita, uma poesia insular cosmopolita.

      À primeira vista, parece ser um paradoxo este entre Insular e Cosmopolitismo, mas não o é. Ou seja, a ideia de que a poesia açoriana é um universo provinciano fechado sobre si é a ideia mais errada que se possa ter dela; ela, e sobretudo uma poesia como a de Urbano Bettencourt, é, sim, uma poesia insular com traços de cosmopolitismo de toda a ordem, que vai da poesia das Canárias passando pela poesia de Cabo Verde, até às nacionais e internacionais (veja-se por exemplo Alguns poemas de Wang Yong). É preciso dizer isto claramente, porque eu escrevo do Porto e a maioria das pessoas que vão ler estas notas estão no Portugal Continental, num espaço geográfico que reduz tudo o que pertence à natureza das ilhas ao meramente insular e provinciano. A condição de ser diferente não pode ser reduzida a uma categoria inferior, ela é, sim, o seu contrário, uma poesia rica onde o local encontra-se com o nacional e o internacional.

     Ora, tudo isto para dizer que não percebo a dita e “majestosa crítica” (gosto de ser irónico) deste país. Esta antologia saiu em Setembro de 2019 e, pelo que sei, tem passado despercebida, tem sido até ignorada. É mais fácil escrever umas notas sobre um miúdo da minha geração do que tentar entender 40 anos de poesia de um autor que vive numa ilha no meio do Atlântico. É exatamente para dar atenção a esta antologia que resolvi escrever estas notas, para chamar a atenção de que esta antologia exige mais atenção da parte do leitor, dos bons leitores.

      Com Navalhas e Navios, título retirado de um dos seus poemas, pode também ele resumir toda a obra de Urbano: Navalhas, instrumento de corte capaz de ser tão útil à sobrevivência como ferir, magoar, matar; Navios, meio primordial para a viagem marítima, é também o meio para o sonho, a evasão de si mesmo e o contacto com os outros. Temos assim esse dualismo entre dor e sonho, entre realidade difícil e a possibilidade de imaginação, entre ficar e partir. Temos assim, duas palavras essenciais aos marinheiros: navalhas, a que permite escamar o peixe e cortar as linhas de pesca; e o Navio, o barco que lhe permite recolher o seu sustento e, ao mesmo tempo, sair da sua residência fixa, para mais tarde regressar a ela. Em alguns poemas a marca da dor está bem presente, talvez relacionada com a experiência do poeta com a guerra colonial, na Guiné (ver os poemas Remuniciar o tempo, atente-se à palavra Remuniciar, vinda de municiar, munição) e com a do exílio das ilhas, dos anos em que viveu em Lisboa longe dos seus Açores.

     Num conjunto de poemas de título “Alguns nomes de circunst/ânsia”, são feitas homenagens a Domingos Rebelo, a Virgina Woolf, a Santos Barros, Ivone Chinita e Garcia Lorca. A ideia já referida de viagem marítima é retomada com a ideia de “circum-navegação”, através do uso palavra “circum-negação (uma palavra que desdobra o sentido), uma das primeiras palavras que aparece nos primeiros poemas do livro. Aqui esta circunstância, circum-navegação, está associada à palavra ânsia, o que pode apontar para uma ânsia de conhecimento do mundo (uma curiosidade sem fim) e ao mesmo tempo uma ansiedade que despoleta a criação literária.

     Uma das críticas mais comuns ao livro, é a de que o poeta teria cortado demais, teria selecionado demais para esta antologia. Pode ser verdade. Desta antologia faltam os poemas em prosa e as pequenas prosas, muitas delas com um elevado sentido de humor e de ironia. Neste ponto, não posso deixar de dizer que é uma das facetas que mais me atrai na poesia de Urbano Bettencourt, o que a coloca próximo de outro autor seu amigo e grande poeta –  Santos Barros. E convém referir que Urbano Bettencourt trabalhou sobre a obra de José Martins Garcia, cuja obra é de uma fina ironia e humor fabuloso. Sem querer desvalorizar outros poetas açorianos, estes são, para mim, os três grandes, os que me fascinam e que recomendo vivamente. Contudo, como não sou monóculo, nem ciclope, direi que outros poetas merecem a devida atenção para as suas obras, como por exemplo Emanuel Jorge Botelho, só para citar um exemplo.  

     Com Navalhas e Navios merece mais leituras, mais descobertas. Exige que se leia a antologia de ponta a ponta e, se possível, se recorra às primeiras edições dos seus livros, para melhor entendermos a obra de Urbano Bettencourt. Só assim, o objeto pode ganhar maior amplitude. Não foi minha intensão esgotar o livro nestas notas, mas sim despertar algum interesse, para o lerem com maior atenção. Em nota final de rodapé, não posso deixar de elogiar a capa, pela beleza e simplicidade, porque estou cansado de ver Bruegel e pintura inglesa mutilada e a encher supermercados, como se a pintura só servisse para atrair a compra de livros. Recomendo vivamente a leitura desta antologia. E faço votos para que os seus ensaios, com os quais tenho muito que aprender, e as suas pequenas prosas saem muito em breve.

Ps- Quando terminei estas notas, soube, pelo facebook, que o Urbano Bettencourt ganhou um prémio de reconhecimento pela “Letras Lavadas”; assim, envio-lhe deste lado, os meus parabéns.

notas - Porto, 21.04.20

    

George Steiner, in memoriam

George-Steiner_CNC.jpg

Para Ralph Waldo Emerson, “Em cada obra de génio reconhecemos os nossos próprios pensamentos rejeitados – regressam até nós com uma certa majestade alienada.” Foi esta a minha relação com George Steiner, e continuará a ser, apesar da morte física (os escritores vivem mais tempo, alguns até são eternos). Uma marca que resistirá ao seu pessimismo cultural (somos cada vez mais incultos, perseverando na autodestruição da grande aventura intelectual que começou na Grécia Clássica e que o smartphone acabou por derrotar), pela qual não sinto qualquer atração especial. Mas reconheço que seremos outros, já somos outros, para quem o texto deixou de ser “a circunstância vital, o ‘contexto’ que dá forma à nossa existência.” Tanto mais que o que se perde não é a opinião deste ou daquele, mas a própria linguagem (o “mundo é um imenso alfabeto”). Um pessimismo do presente e do futuro: a “educação dos jovens é uma amnésia planeada.” Por vezes sinto que se trata de uma desolação extravagante fabricada na sua redoma de Cambridge, mas depois a realidade desmente-me, vimos acelerando a nossa estupidez, sobretudo porque vivemos em quase permanente dissonância cognitiva (dizemos que não queremos destruir a Terra, mas destruímos).

Apesar das linhas conservadoras que teciam parte do seu pensamento, Steiner abriu sempre as portas a “todos os ventos”, sentia-se vulnerável porque amava tanto o que tinha sido dito quase de uma vez por todas, quanto a emergência de “presenças estranhas”; faz todo o sentido, pois, que se designasse como um “anarquista platónico. Foi esta duplicidade, a juntar a uma outra cuja dialéctica, simplificando, acontece entre o pessimismo (No Castelo do Barba Azul) e o optimismo (sim, mesmo contando com a decadência civilizacional), que fizeram dele um dos heróis intelectuais contemporâneos. Vale o que dele disse Jorge Martínez Reverte, romancista e colunista do El País: “Qué pena. Cuántas horas he passado al abrigo de uno solo de sus párrafos.

Crítico literário, teórico da tradução (o incontornável Depois de Babel), comparatista inteligentíssimo (entre as literaturas e culturas francesa, alemã e anglo-saxónica, Gramáticas da Criação, Antígonas), magistral autobiógrafo (narrador dos falhanços próprios, Errata, seguindo um dos autores que mais admirava, Samuel Beckett), cronista prolífico (The New Yorker, 1967-1997), historiador do pensamento (Gramáticas da Criação). Uma parte grande do mundo cabe em Steiner, era, e é, possível orbitar anos à volta dele sem que as revoluções sejam fastidiosas, sabe tornar o contraintuitivo brilhantemente aceitável.

Defensor apaixonado, e intransigente, do canon clássico, só podia criticar o relativismo pós-estruturalista e o poder incomensurável, sem deixar de ser banal, da técnica (nisto estava com Martin Heidegger, que estudou academicamente). Leitor profundo de Homero, Ésquilo, Platão, Aristóteles, Shakespeare, Joyce, Proust, Tolstói, Dostoievski, Céline, Beckett, Nietzsche, Celan, ... Poliglota (inglês, francês, alemão, italiano). Animado por uma surpreendente curiosidade. Disse, contudo, ao Le Monde, 2013, que não se pode compreender ou amar tudo. E cometem-se erros, qualquer autobiografia devia ser sempre mais sobre fracassos do que vitórias (Errata). Além disso, considerava-se inferior aos criadores (nos três campos semânticos da criação e da criatividade: teológico, filosófico e poético). Se amou profundamente os trabalhos de crítico, leitor, erudito, professor, sabia que estava um patamar abaixo da “grande aventura da ‘criação’, da poesia, de produzir novas formas.” A distância entre ambos é, segundo ele, enorme, “ontológica”. Por isso, “Se não temos nós mesmos o génio da criação, podemos transmitir o correio dos outros.”

O que escreveu sobre Boris Pasternak, “deixa-nos mais livres do que nos encontrou”, encaixa perfeitamente no que sentimos depois de o ler. O que ele faz é estimular-nos a pensar melhor, talvez obrigar-nos, libertando-nos de cada vez de dois ou três preconceitos bafientos e mostrando-nos novos caminhos de pensamento. Por isso, terá morrido Steiner sem empobrecer a humanidade? Não. Mas ficamos com o que escreveu (muito) e em breve haverá uma indústria exegética temível, mas que trará talvez, acima do ruído, novas linhas de entendimento. Além disso, em 2050 abrir-se-á a sua correspondência, de 36 anos, com uma “amiga secreta”, onde, segundo ele, estão sentimentos íntimos ou reflexões estéticas e políticas. Como se diz num jornal europeu: “morreu um clássico. É impossível apagar a luz”.

E para quem, lendo-o, se achar autorizado a imaginar-se demiurgo, é preciso recordar algumas das palavras de Gramáticas de Criação: “A compreensão é o fruto da definição e dos investimentos anteriores. […] O mais pródigo dos forjadores de palavras, um Rabelais, um Shakespeare, um Joyce, só infinitesimalmente aumenta o volume dos recursos herdados.”

Onde tudo se encontra e cresce: posfácio a 'para um outro dia Lázaro', de Fernando Machado Silva

lazaro capa baixa.jpg

Em 2012 um pequeno livro de poemas do Fernando fez parte dos primeiros seis títulos da editora que então sob a minha orientação dava os seus primeiros passos. Seis anos depois, novo livro do Fernando, na mesma editora – que, entretanto, não soçobrou. Um e outro foram, antes de tudo, actos de amizade. E este, o de deixar nas últimas páginas de um livro do Fernando um “posfácio”, sendo embora acto mais modesto, é selado com a mesma amizade.

Na poesia que até hoje publicou, o Fernando Machado Silva tem aberto os seus caminhos, uns mais a bordejar, com a necessária distância, as suas próprias vivências: as relações familiares, 


de entre todos os meus irmãos
eu sou a minha mãe e o meu pai
para o bem e para o mal vejo em mim
os dois intercalando a sua presença
não há quem ganhe e nada há para ganhar
só o lento massacre no lançamento das culpas
do que se fez ou se sacrificou para o outro
(“eu sou a minha mãe e o meu pai”)
os percursos sinuosos do amor, 

(…)

escura é uma boca que procura
o nome que não há e assombra
e do medo semeia o tempo para
o sonho de perdurar depois de tudo

mas estrelas talco arroz são
do mesmo pó da tua pele
tinir de outro tom
nódulo em outra corda

(…)

 (de “para habitar a comunidade ou justo o amor”)


outros em busca do justo dizer poético, 

(…) a vida que tento numa escrita permanece
desconhecida é só mais um tijolo na muralha
de papel um nome no barro onde os dedos mergulham
misturando memória imagens o gosto
(escreve escreve) de cifrar um mundo

(…)

(de “1.”  de “A escrita do amor por entre quartos e corredores”)


ou de modos de pensar, 

com a escrita adio a morte

quando a mão se suspende
no ar       falcão ao alto
de olhar vertical no ataque
a cada palavra       a morte instala-se
no intervalo da escolha
no pensamento

adia a escrita

(de “de mão suspensa”)


aproximando-se, hesitantemente, mas com intensidade, de uma poesia que conjuga todo o seu dizer lírico com os jogos de linguagem que fazem mundos. É esta, parece-me, uma das singularidades da poesia do FMS – mas este livro, em particular, pertence a um terreno ontológico do amor e da morte, onde tudo se joga (se diz).

Este poeta, e é isto que aqui mais quero destacar, tem outras várias virtudes: a sinceridade, a coragem, a inteligência e a honestidade. Na sua poesia, estas virtudes entram em jogos difíceis (e perigosos), mas, pelos modos como são jogados, entroncam-se numa ética, num sentido político da poesia. Se é certo que a ética não se deve arvorar em categoria estética, e muito menos ser argumento de autoridade ou de validação de excelência poética, sem ela é que a poesia tende a definhar – a não o ser. 

O que é que isto tem a ver com a poesia? Tudo.

Vi muitas vezes – na escrita, no teatro, nas tentativas de vida – o olhar suspenso do Fernando preso por uma questão ética. E, depois, saindo-lhe (literalmente) do corpo, o gesto de optar por não ceder, custasse-lhe isso o que lhe custasse. O que não lhe anulou as hesitações, as dúvidas, as demonstrações de fragilidade, os desejos, os apelos da sua poesia. É mesmo assim.


Uns leitores (mais críticos…), preferirão catar imperfeições formais, transes conceptuais menos defensáveis, etc., para, assim, desvalorizarem o todo; outros, provavelmente, deixar-se-ão apenas tocar pela intensidade e energia que atravessam a poesia deste poeta. 

E… 

Em boa verdade, apenas queria deixar aqui uma Saudação ao Amigo – que é onde tudo se encontra e cresce.

6 de Maio de 2018

Nota: para outro dia Lázaro, de Fernando Machado Silva, foi publicado pela Enfermaria 6 em Outubro de 2018.

Vesúvio ou A Poesia

Viagem em Itália de Rossellini (1954). Katherine (Ingrid Bergman) e Alexander (George Sanders) são o casal Joyce, ingleses de visita a Itália (uma vez mais, como em Um Quarto com Vista de Forster). Dão-nos uma conversa edificante sobre poesia ou talvez, lá no fundo, sobre outras matérias: a natureza do gelo, o ciúme, a saudade, a paixão, ou todas essas coisas (e as outras) ao mesmo tempo, como é próprio, aliás, da poesia. Ela existe porque os diálogos avançam precisamente assim, entre surdos que insistem em ouvir-se.

Mas há um terceiro ponto de vista, o do responsável que lhes mostrou a casa: 

«Quero que vejam a varanda. Aquele é o Vesúvio. Desde a erupção de 1944 que está inactivo. Mas a temperatura começa a subir. Atrás daquela primeira montanha fica Pompeia.»

Não o sabe, mas é ele quem melhor nos apresenta a poesia: vistas para a quietude, iminentes erupções. Fóssil e fogo.