George Steiner, in memoriam
/Para Ralph Waldo Emerson, “Em cada obra de génio reconhecemos os nossos próprios pensamentos rejeitados – regressam até nós com uma certa majestade alienada.” Foi esta a minha relação com George Steiner, e continuará a ser, apesar da morte física (os escritores vivem mais tempo, alguns até são eternos). Uma marca que resistirá ao seu pessimismo cultural (somos cada vez mais incultos, perseverando na autodestruição da grande aventura intelectual que começou na Grécia Clássica e que o smartphone acabou por derrotar), pela qual não sinto qualquer atração especial. Mas reconheço que seremos outros, já somos outros, para quem o texto deixou de ser “a circunstância vital, o ‘contexto’ que dá forma à nossa existência.” Tanto mais que o que se perde não é a opinião deste ou daquele, mas a própria linguagem (o “mundo é um imenso alfabeto”). Um pessimismo do presente e do futuro: a “educação dos jovens é uma amnésia planeada.” Por vezes sinto que se trata de uma desolação extravagante fabricada na sua redoma de Cambridge, mas depois a realidade desmente-me, vimos acelerando a nossa estupidez, sobretudo porque vivemos em quase permanente dissonância cognitiva (dizemos que não queremos destruir a Terra, mas destruímos).
Apesar das linhas conservadoras que teciam parte do seu pensamento, Steiner abriu sempre as portas a “todos os ventos”, sentia-se vulnerável porque amava tanto o que tinha sido dito quase de uma vez por todas, quanto a emergência de “presenças estranhas”; faz todo o sentido, pois, que se designasse como um “anarquista platónico. Foi esta duplicidade, a juntar a uma outra cuja dialéctica, simplificando, acontece entre o pessimismo (No Castelo do Barba Azul) e o optimismo (sim, mesmo contando com a decadência civilizacional), que fizeram dele um dos heróis intelectuais contemporâneos. Vale o que dele disse Jorge Martínez Reverte, romancista e colunista do El País: “Qué pena. Cuántas horas he passado al abrigo de uno solo de sus párrafos.”
Crítico literário, teórico da tradução (o incontornável Depois de Babel), comparatista inteligentíssimo (entre as literaturas e culturas francesa, alemã e anglo-saxónica, Gramáticas da Criação, Antígonas), magistral autobiógrafo (narrador dos falhanços próprios, Errata, seguindo um dos autores que mais admirava, Samuel Beckett), cronista prolífico (The New Yorker, 1967-1997), historiador do pensamento (Gramáticas da Criação). Uma parte grande do mundo cabe em Steiner, era, e é, possível orbitar anos à volta dele sem que as revoluções sejam fastidiosas, sabe tornar o contraintuitivo brilhantemente aceitável.
Defensor apaixonado, e intransigente, do canon clássico, só podia criticar o relativismo pós-estruturalista e o poder incomensurável, sem deixar de ser banal, da técnica (nisto estava com Martin Heidegger, que estudou academicamente). Leitor profundo de Homero, Ésquilo, Platão, Aristóteles, Shakespeare, Joyce, Proust, Tolstói, Dostoievski, Céline, Beckett, Nietzsche, Celan, ... Poliglota (inglês, francês, alemão, italiano). Animado por uma surpreendente curiosidade. Disse, contudo, ao Le Monde, 2013, que não se pode compreender ou amar tudo. E cometem-se erros, qualquer autobiografia devia ser sempre mais sobre fracassos do que vitórias (Errata). Além disso, considerava-se inferior aos criadores (nos três campos semânticos da criação e da criatividade: teológico, filosófico e poético). Se amou profundamente os trabalhos de crítico, leitor, erudito, professor, sabia que estava um patamar abaixo da “grande aventura da ‘criação’, da poesia, de produzir novas formas.” A distância entre ambos é, segundo ele, enorme, “ontológica”. Por isso, “Se não temos nós mesmos o génio da criação, podemos transmitir o correio dos outros.”
O que escreveu sobre Boris Pasternak, “deixa-nos mais livres do que nos encontrou”, encaixa perfeitamente no que sentimos depois de o ler. O que ele faz é estimular-nos a pensar melhor, talvez obrigar-nos, libertando-nos de cada vez de dois ou três preconceitos bafientos e mostrando-nos novos caminhos de pensamento. Por isso, terá morrido Steiner sem empobrecer a humanidade? Não. Mas ficamos com o que escreveu (muito) e em breve haverá uma indústria exegética temível, mas que trará talvez, acima do ruído, novas linhas de entendimento. Além disso, em 2050 abrir-se-á a sua correspondência, de 36 anos, com uma “amiga secreta”, onde, segundo ele, estão sentimentos íntimos ou reflexões estéticas e políticas. Como se diz num jornal europeu: “morreu um clássico. É impossível apagar a luz”.
E para quem, lendo-o, se achar autorizado a imaginar-se demiurgo, é preciso recordar algumas das palavras de Gramáticas de Criação: “A compreensão é o fruto da definição e dos investimentos anteriores. […] O mais pródigo dos forjadores de palavras, um Rabelais, um Shakespeare, um Joyce, só infinitesimalmente aumenta o volume dos recursos herdados.”