Alguns sacos de água com seres que vieram da praia

(desenhos de Ana Abreu)

1.

 Está ali o mar, ninguém nos ensina
aprendemos  muito de repente
e muito devagar

Seguimos esquecidas instruções
recolher o que dá à praia
(assim se diz), o que fica
a morrer, entre a primeira
e a derradeira água

Vibrasse ainda num saco
de improvável transparência
e seria milagre (é o termo)
essa mesma e
remota ondulação

Um tudo nada mais tarde
o distraído fervor das etiquetas

 

 2.

O distraído fervor das etiquetas
destino sumário das coisas
suspensas e atadas

Nem sabemos se as hastes vivas
agitam o desespero
(flores da água) ou sequer
suspeitam de quanto jaz  
na rotação do mundo

Calaremos as ondas que batem
(assunto arrumado), são agora
trabalhos de inspiração e asfixia
deixar cegos os nós, as cataratas
como seixos que encham os olhos

Fosse esta memória
do mar a transparência

 

3.

 Do mar a transparência
que a água em si retém
recomeçada e turva

O que partiu revela
outras densidades
(memórias e antenas)
apura íntimas correntes
como se em tudo regressasse

Ou fica por colecções
de etiquetas e figuras
esperando matérias carcomidas
(da maresia os ossos pequeninos)
e haverá quem diga que

ninguém nos ensina
e está ali o mar

Acerca da perfeição

São importantes as memórias de infância
Escrevemos sempre a partir de exemplos
e, durante algum tempo, os factos
confirmavam a vida imaginada

Existia, nesse livro antigo, um fotógrafo
excelente, no lugar do nome estava escrito  
anon, e era o mais distinto autor
Variedade pródiga das paisagens
flores explícitas, animais que estacavam
e exibiam o carácter selvagem
a nudez profunda e nua dos modelos
Os instrumentos da vida estavam 
só cansados de trabalhos
e de dias, abriam-se em sol
e nas devidas sombras

Vem logo alguém esclarecer
tratava-se afinal de uma cifra abreviada
expediente para dizer anónimo
despojos da arte verdadeira

Segundo exemplo, a música
que nos soava muito para lá
do número divino, a esplêndida
sétima daquele a quem chamavam
o enorme mestre de Bona

Logo percebemos que era versão
incompleta e, nos visíveis sulcos do vinil
acrescentaram um andamento
de uma oitava ainda não composta

Isto é, etiquetas que enganam
erros no momento de imprimir

Também se escrevem poemas
acerca da perfeição

Vesúvio ou A Poesia

Viagem em Itália de Rossellini (1954). Katherine (Ingrid Bergman) e Alexander (George Sanders) são o casal Joyce, ingleses de visita a Itália (uma vez mais, como em Um Quarto com Vista de Forster). Dão-nos uma conversa edificante sobre poesia ou talvez, lá no fundo, sobre outras matérias: a natureza do gelo, o ciúme, a saudade, a paixão, ou todas essas coisas (e as outras) ao mesmo tempo, como é próprio, aliás, da poesia. Ela existe porque os diálogos avançam precisamente assim, entre surdos que insistem em ouvir-se.

Mas há um terceiro ponto de vista, o do responsável que lhes mostrou a casa: 

«Quero que vejam a varanda. Aquele é o Vesúvio. Desde a erupção de 1944 que está inactivo. Mas a temperatura começa a subir. Atrás daquela primeira montanha fica Pompeia.»

Não o sabe, mas é ele quem melhor nos apresenta a poesia: vistas para a quietude, iminentes erupções. Fóssil e fogo.

Meudon, 1928 ou A Fotografia

É talvez apenas uma questão biográfica. A minha descoberta pessoal da Fotografia coincide com a revelação de André Kertész num pequeno livro de bolso, com imagens da Hungria natal, de Paris, de Nova Iorque. Vejo em Kertész o que mais me interessa na Fotografia. Muito em particular, está quase, quase tudo em "Meudon, 1928", que nos transporta para os arredores de Paris. Encontro nesta imagem uma espécie de definição pessoal e selvagem da Fotografia, que quase nunca sou capaz de aplicar, mas que me ilumina. A saber.


a) Haverá numa fotografia um lugar e um tempo concretos dificilmente iludíveis.

 b) Perseguir-se-á a sorte, voltando ao local várias vezes (como fez Kertész em Meudon) ou andando às voltas no mesmo lugar. Construa-se então uma natural transfiguração das coisas, pode mesmo encenar-se um pouco (o transeunte é, neste caso, amigo do fotógrafo), que o real se ocupará também da simulação.

 c) Estaremos atentos à margem, aos eternos subúrbios e traseiras da vida, existirá uma espécie de lepra do tempo, e que aí nasça um fulgor, acontecimento decisivo, um equilíbrio maior.

d) Que se tenha alguma dúvida acerca das fronteiras entre o chamado real e o chamado sonho, que o real nos pareça uma modalidade do sonho, que o sonho seja uma alínea do real.

e) Estará presente a síndroma "blow up": poderemos habitar a fotografia, percorrer as minúcias (letreiros, transeuntes, estaleiros de obras sucessivas) e haverá sempre um mistério a resolver (de onde vem, para onde vai o homem do fato escuro, o que transporta tão ciosamente?).

f) O mundo será o encontro e o desencontro do mundo, das suas velocidades, sentidos, pontos de vista.

g) Haverá uma geometria essencial, mas com algum atrito, uma aspereza qualquer que não deixe o brilho inteiro.

h) De preferência o preto e branco, como se fosse o necessário recuo para alcançar as paisagens, os trabalhos e os dias, como se se confundisse com o que talvez seja o peso mais interior dos olhos.

i) Sobretudo que, por fim, a fotografia dispense as palavras, estas palavras.