Michel de Montaigne e «a pensar morreu um burro»

Michel de Montaigne

Neste podcast de cerca de 5 minutos veremos que talvez Montaigne, o grande Montaigne, responsável, em partes iguais com Descartes, por parte da sofisticação cultural francesa (o que seria de nós se nos séculos nascentes do pensamento crítico, XVI-XVII, houvéssemos tido mentes semelhantes a moldar o futuro?), fosse, afinal, um misólogo, como Sócrates, aliás.

3 Fragmentos de Safo

45

ἆς θελετ᾿ ὔμμες

enquanto desejares

47

Ἔρος δ᾿ ἐτίναξέ μοι
φρένας, ὠς ἄνεμος κὰτ ὄρος δρύσιν ἐμπέτων.

E o amor varreu o meu
coração, como o vento na montanha desce sobre os carvalhos.

50

μὲν γὰρ κάλος ὄσσον ἴδην πέλεται ⟨καλος⟩,
ὀ δὲ κἄγαθος αὔτικα καὶ κάλος ἔσσεται.

é pois apenas belo de ver aquele que é <belo>
enquanto aquele que é bom de imediato será também belo

Fernando Pessoa e o fim deste mundo

I

«À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno

É desta forma que se inicia o editorial (Prometeu e Fausto) do n.º 10 da revista Electra (2010), texto inspirador e esclarecedor de José Manuel dos Santos e António Soares. O tema central é «Trabalho e pós-trabalho», e a forma como o aborda confirma, mais uma vez, que se trata da melhor revista de ideias (como chamar-lhe?) portuguesa.

Evocar, por vezes invocar, Fernando Pessoa para escolhermos a lente que ajuda a compreender a fragmentação dos transcendentais superiores (Bem, Verdade e Belo), dissipados em epifenómenos capazes de fanatizar tanto o apego como a repulsa (trumpismo, nacionalismo, racismo, sexismo, igualitarismo...). É porque Pessoa, como referem José Manuel dos Santos e António Soares, punha na «exclamação metálica» do excerto que citámos da Ode Triunfal uma «voz paroxística, paradoxal e imparável» (exemplo do excesso — controlado? — de subjetivações na sua heteronímia mas também em cada um dos seus sujeitos de enunciação), como era muitas vezes a de Álvaro de Campos.

A tecnologia, que não é apenas uma forma de designar instrumentos mais ou menos complexos que complementam o nosso agir, mas um ecossistema de racionalidades que destaca a importância das coisas fabricadas para a emancipação da espécie humana (visão prometeica, porventura a predominante em Álvaro de Campos). A esta utopia, que continua a carburar em pleno (veja-se como se abafa a responsabilidade humana pela degradação ambiental sem remissão, martelando numa tecnofilia salvífica), junta-se, como força inversa, uma distopia de cariz faustiana (energia nuclear, engenharia genética, sobre-comunicação telemática, inteligência artificial generativa...).

Neste caso, Fernando Pessoa, na voz de Álvaro de Campos, celebra a auto-superação da modernidade (filosófica, antropológica e, lato sensu, política) em direção à pós-modernidade. Trata-se de passar da racionalidade auto-domesticada — acreditando, com um otimismo entretanto desvanecido, que, reproduzindo a cosmovisão hegeliana, o racional é real e o real racional — para racionalidades intensificadas pela necessidade de ganhos de eficiência, que já não consistem na procura de verdades, mas na injunção de perspetivas que moldam as nossas necessidades, usando técnicas de manipulação ou meros Diktats.

II

Mas há outro (outros) Fernando Pessoa. Claro, o que emerge em Alberto Caeiro, naturalista solar, simplificador genial, mestre de Mindfulness numa época em que quem não pensava até ao esgotamento ou se dispersava em prolífica confusão era com certeza pobre, pobre de mundo e de bens, cordeiro de Deus. Caeiro, com Walt Whitman a seu lado, assobiando, traçou uma alternativa antes do tempo, que agora parece expiar os discursos dos que se enlearam freneticamente no círculo vicioso de consumir o fabricado (mais e mais coisas, tangíveis e intangíveis), com o excedente a entrar na economia do lixo (já não do luxo). Mas não vai muito além de um queixume adornado, um pessimismo blasé, os poucos neo-naturalistas que vivem em Portugal vêm de outras geografias, com mapas mentais que por cá raramente se reconhecem como válidos e, muito menos, entusiasmantes.

Mas temos, entre possíveis outros eus, sobretudo, para o que nos interessa aqui, Vicente Guedes e Bernardo Soares, narradores dessa obra infinita (porque pode ser composta pelos editores – uso a de Teresa Sobral Cunha para a Relógio D’Água – e porque aponta sempre para lado nenhum, mesmo quando verticaliza a hermenêutica e sonda as entranhas do organismo humano) que é o Livro do Desassossego. Com ele entra-se e sai-se, simultaneamente, da pós-modernidade. A entrada dá-se pelo perspetivismoeu não creio, é claro, que haja factos», «há metáforas que são mais reais do que as pessoas que andam na rua»), a saída pelo cansaço, exílio e absurdoAbsurdemos a Vida, de leste a oeste», «Não desembarcar não ter cais onde se desembarque», «Nós nunca nos realizamos», «Os homens são fáceis de afastar: basta não nos aproximarmos»). Recorde-se que a pós-modernidade era utópica, quis trocar a firmeza cimentada da verdade, com um contentamento entediante pelo rigor mortis, pela dança hedonista de um neoepicurismo ainda mais solto, a verdade pela alegria (no mínimo, uma Gaia Ciência), laica e individual; uma economia da euforia, uma embriaguez nietzschiana à la carte.

Mas o Livro do Desassossego, traduzido em cerca de 30 línguas (outras tantas formas de o ler), por enquanto património francês mais do que português, curto-circuita a pós-modernidade nascente. Teologia negativa, leva a sério um perspetivismo que desemboca numa nova totalidade: o Nada (como nenhum niilismo, teológico ou secular, o tinha apresentado até ali). É, aliás, contra isto que os pós-modernos franceses se rebelarão — sem saberem, na altura, verdadeiramente do caso Fernando Pessoa —, apontando o dedo ao niilismo de O Ser e o Nada. Mas em Sartre ainda havia luz, a da liberdade, mesmo enquanto condenação. Bernardo Soares e Vicente Guedes dizem que são mais velhos do que o tempo e o espaço porque pretendem ser pura consciência, ainda que dilacerada, ou seja, vivem, muitas vezes a contragosto, nos primórdios do deve-ser, da ausência de alternativas, no preâmbulo do preâmbulo que não pode ser revisto, no pensamento sem portas nem janelas que só pensa o que é pensável na repetição, na necessidade filosófica sem linhas de fuga, respeitando um código adâmico vedado aos hermeneutas loucos, como Hermes.

III

Por tudo isto, o século xxi será o de Fernando Pessoa (é uma aposta quase a la Pascal). A liberdade está presa à consciência do deve-ser (que na sua dimensão mais reduzida, mas sobre-mediatizada, se traduz pelo «politicamente correto», que instituiu iradamente a pujante cancel culture). Não nos atrevemos, numa estratégia de cinismo moderno, a imaginar novos sentidos, como não acreditamos no sentido dominante feito do e no passado. Vivemos nos cuidados intensivos, com máquinas que vão funcionando, e agarramos, frouxamente, a responsabilidade, para disfarçar a decadência, de pensar novas rotinas mínimas (que nunca variam muito do «métro, boulot, dodo»). Quando, numa ousadia postiça e para sacudir um pouco o tédio, queremos extravasar com experiências subjetivas de excesso (aquilo que está além da mera sobrevivência), o dever cívico (renasceu com pior índole este complexo ético-político) põe-nos uma máscara que consente apenas a reverberação estéril, a repetição sem iteração; o demiúrgico que possa sair da nossa boca ricocheta nos panos sanitários e regressa exausto ao ponto de partida.

Estivemos dois séculos a perseguir, consciente ou inconscientemente, a máxima de Friedrich Hölderlin: «Onde está o perigo, está também aquilo que salva». Este século, pessoano, cabe agora nisto que ele escreve no Livro do Desassossego: «Habito a sombra e o sol morreu comigo.» É para levar a sério esta resignação poética? Talvez. Como refere McKenzie Wark «Os poetas são pessoas excepcionais, que detêm um pouco daquele poder sagrado da criação, devendo ser agraciados por mecenas com os meios que lhes permitam levar uma vida de luxo, dedicando-se a fazer versos.» (Electra 24, Primavera 2024, p. 101). Os poetas autênticos (cuidado, não se reconhecem à primeira) preservam um resíduo de poder sagrado, criam mundos e reinam neles.

A loucura de Nietzsche

Nietzsche com a Mãe, Franziska Nietzsche, depois do colapso mental do filósofo

Texto revisto significativamente a 26 de agosto de 2024.

Friedrich Nietzsche colapsou mentalmente no início de janeiro de 1889. Encontramos já, porém, vestígios de loucura num rascunho de carta[1] de 25 de dezembro de 1888 para Cosima Wagner[2]— entre outras coisas, assina «Der Antichrist» —, mas a queda, abrupta e sem retorno, na insanidade mental iniciou-se a 30 de dezembro e acentuou-se a partir de 1 de janeiro, a 6 deste mês escreve a sua última missiva, enviada a Jacob Burkhardt (historiador da arte, antigo colega admirado na Universidade de Basileia). No último dia de 1888, lamenta desconhecer a sua morada. Três dias depois, conta-se que terá protegido dos açoites um cavalo no meio da rua, caindo no chão desamparado e lavado em lágrimas logo depois, sendo transportado para a modesta pensão da praça Carlo Alberto, em Turim, pelo seu hospedeiro, Davide Fino. Este episódio, menos ou mais efabulado, pouco importa, recorda-nos que os cínicos gregos eram sobretudo criticados por misturarem as formas humana e animal, ignorando os limites que supostamente protegem a nossa espécie da dissolução (na época, a moral prescrevia mais o ser do que o dever ser).

Entre 3 e 7 de janeiro, Nietzsche fecha-se no quarto, alguns pensionistas dizem tê-lo ouvido vociferar em longos monólogos palavras incompreensíveis ou ensaiar cantos e improvisações dissonantes ao piano (talvez um jazz antes do jazz). Durante este período, escreve várias cartas aos poucos amigos que ainda julga ter (Meta von Salis, Georg Brandes, Paul Deussen, Malwida von Meysenbug, Franz Overbeck, Heinrich Köselitz, Erwin Rohde, Heinrich Wiener, Jacob Burkhardt), mas também a Cosima Wagner, ao Rei Umberto ou ao Cardeal Mariani. Assina com «Nietzsche Caeser», «Dionysos» ou «Der Gekreuzigte» (O Crucificado, Nietzsche foi sempre ambivalente relativamente a Cristo, admirava o revolucionário, criticava o moralista). Imagina encontros com o Papa, Príncipes ou heróis históricos. Julga ter força geopolítica para sacudir a Europa inteira, refazer o mundo. Quer nomear os redatores-chefes do Journal des Débats e do Journal des deux Mondes, ambos franceses (cultura que sempre admirou). Assegura que os seus livros Assim Falou Zaratustra e Ecce Homo salvarão o mundo ou fulminarão quem os ler sem preparação.

Como acabei de dizer, a 6 de janeiro de 1889 escreve ao seu antigo colega Jacob Burckhardt, começando por confidenciar-lhe que «preferia muito mais ser professor em Basileia do que Deus» (zuletzt wäre ich sehr viel lieber Basler Professor als Gott), acrescentando que, afinal, é Victor Emmanuel; mais, reconhecendo sentir alguma vergonha, parece agora não ter dúvidas de que, no fundo, é todos os nomes da históriaWas unangenehm ist und meiner Bescheidenheit zusetzt, ist, dass im Grunde jeder Name in der Geschichte ich bin»). Esta dispersão onomástica, laceração dionisíaca da identidade (preparando o mergulho no «Uno primordial», conceptualmente congelado desde O Nascimento da Tragédia, 1872), já se manifestara numa carta de 3 de janeiro a Cosima Wagner. Quase a terminar a missiva endereçada a Burckhardt, sentencia a supressão de Wilhelm Bismarck e todos os antissemitas.

Ao ler a carta, Burckhardt temeu que Nietzsche houvesse perdido a razão e avisa um amigo comum, Franz Overbeck, que depois de se aconselhar com o diretor clínico do hospital psiquiátrico de Basileia decide resgatá-lo de Itália. No regresso a Basileia é, primeiro, internado na clínica psiquiátrica da cidade, seguidamente na de Iena. O diagnóstico, consensual, vai no sentido de uma paralisia geral («desordem mental devido a uma paralisia», está escrito na ficha clínica) provocada pela sífilis (uma bactéria patogénica, capaz de ficar latente durante mais de 20 anos, cujo antídoto só será descoberto em 1929). Nietzsche deixou o hospital a 24 de março de 1890, ficando ao cuidado da mãe até julho de 1897 e depois, até à sua morte (25 de agosto de 1900), ao da sua irmã (Elisabeth Förster-Nietzsche, 1846-1935, antissemita, nazi e falsificadora da obra do irmão, orientando-o para o supremacismo ariano), no Nietzsche-Archiv de Weimar. Num certo sentido, a loucura nietzschiana prolongou-se numa receção hiperbolizada e instrumentalizada: a sua irmã, os nazis, Hitler, os fascistas italianos, as fatwas comunistas… Enquanto, não o esqueçamos, Nietzsche admirava Voltaire e Stendhal, não Rousseau ou Hobbes.

A queda na loucura alimentou várias conjeturas, algumas assemelhando-se a teorias da conspiração, outras baseadas em dados clínicos, mas por detrás dos dissensos (sífilis, psicose, envenenamento lento, descompensação religiosa-moral, preço a pagar pela fecundidade impressionante de 1888 — escreve, de um fôlego, O Caso Wagner, Nietzsche Contra Wagner, O Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, Ditirambos a Dioniso)[3] — há uma certeza: a loucura contribuiu para a fama do autor (a loucura é magnética, sobretudo postumamente). Poderia ter sido diferente? Talvez, mas para isso Nietzsche deveria escrever e pensar menos penetrantemente, a sua genialidade (arrisco utilizar este termo) salvou-o da pequena loucura do «maluco da aldeia» ou do burocrata académico cimentado na repetição, mas não o livrou da grande loucura dos génios. E àqueles que insistem em ver nos títulos dos capítulos «Porque escrevo livros tão bons» e «Porque sou um destino» (Ecce Homo) a megalomania de um sobrestimado, talvez se deva responder que não passam do efeito de uma «razão ardente», como lhe chama Eduardo Lourenço, «para a qual não há “acontecimento em si”, mas uma pluralidade de “sentidos”»[4]. Ou atender, respeitando-o talvez mais do que merece, ao que o seu amigo Heinrich Köselizt (Peter Gast) disse: «Nietzsche tinha o direito de ser megalómano porque era brilhante». Ou convocar a apologia da loucura lúcida de Erasmo de Roterdão. Ou, ainda, recordar o saudoso Fernando Belo, que num dos últimos textos que escreveu assegurava que quem se cansa dos reconhecimentos toscos, que só servem para consolidar a razão tribal, e continua a viajar, «viaja por sendas que não existem ainda»[5]. De qualquer forma, Nietzsche sabia que muitos se interessam mais pelo autor do que pelos textos (ele próprio defendia a importância indelével da biografia para a interpretação da obra)[6], e culminar na loucura alimenta, como disse, quase sempre o culto da personalidade, uma santidade sem Deus, neste caso.

Das diferentes leituras que, sem dúvida, podemos fazer da loucura de Nietzsche, umas centradas na linha clínica (psicanalítica ou neurológica), outras na hermenêutica (interpretação dos discursos, com ou sem biografia à mistura), Michel Foucault e Pierre Klossowski são porventura os autores que mais me estimulam a pensar. Os impulsos vitais de Nietzsche expostos naquilo a que se decidiu chamar «cartas da loucura» (dezembro de 1888 a Janeiro de 1889), autorizam Klossowski a falar de festa sacrificial da dissolução do sujeito Nietzsche: em Turim, o seu mundo é feito de intensidades inconsequentes, que só ganham alguma lógica nas interpretações dos destinatários; a estabilidade dos signos desapareceu, quase tudo o que está escrito é plurissignificativo.[7] Esta leitura permite a Klossowski distinguir a loucura nietzscheana da hölderliniana: «Por se tratar de uma “dissolução jubilosa”, a euforia não poderia durar para Nietzsche tanto quanto a alienação contemplativa de Hölderlin: ele foi criado pela dor num lugar alto de paz e esquecimento, no qual era constantemente visitado por imagens silenciosas com as quais dialogava na mesma linguagem simples, calma e melodiosa. O silêncio dos poemas da “loucura” de Hölderlin opõe-se ao silêncio ameaçador de Nietzsche, o preço da explosão histriónica em Turim.»[8]

Acrescente-se, um pouco a contrapelo, que pode ter sido o estilo de pensamento de Nietzsche, que alguns veem como a causa da loucura, a, paradoxalmente, adiar a tendência biológica para a dissolução. O seu estilo permitiu-lhe construir uma obra, apesar da iminente catástrofe que sempre acompanhou a sua fenomenologia da vida humana, passada, presente e futura. Nietzsche, contra Freud (passe o anacronismo), entende, n’O Nascimento da Tragédia, a loucura de Hamlet como o resultado da certeza cruel de que o seu pai foi envenenado pela sua mãe e padrasto. Não são as dúvidas que enlouqueceram Hamlet, mas a certeza do terrível homicídio. Se esta tese estiver correta, as dúvidas começam a enlouquecer mais cedo, mas não aceleram o colapso. As certezas alimentam durante bastante tempo uma lucidez, por vezes furiosa, que redundará, como um relâmpago, na queda fatal (a súbita passagem da escrita clara, embora sentenciosa, de 1888 à gaguez mental do início de 1889).

Por seu turno, Foucault, porque analisa a loucura do ponto de vista dos «sistemas de pensamento», e consequente organização sociopolítica, e dos «modos de discurso», atendendo ao caso particular de Nietzsche (também de Goya, Van Gogh, Artaud ou, entre outros, Hölderlin), paradigma do filósofo revolucionário (talvez, de acordo com Foucault, malgré lui) que marcou a mutação (assegurada pela sua obra mas igualmente por aquilo que estava à volta e fora dela) do sistema de pensamento e regime do discurso filosófico.[9] Refira-se, dando-lhe a merecida importância, que pôr a loucura na história, condicionada pelo tempo e pelo espaço, significa retirar-lhe uma ontologia que a psicologia positivista nascente lhe tinha conferido durante o século xix. Ernst von Feuchtersleben, tanto mais importante quanto influenciou diretamente os trabalhos de Sigmund Freud, traduziu, em 1845, a loucura pelo termo mais técnico de psicose, que subsumia três tipos particulares de loucura: a esquizofrenia, a paranoia e a psicose maníaco-depressiva, tudo enquadrado numa grelha observacional e conceptual de diagnóstico. Freud recuperou o termo para, em 1894, designar a construção inconsciente de uma realidade alucinada. Tratava-se, pois, de uma disfunção mental do sujeito, pouco, muito pouco, influenciada pelo exterior, isto é, pela história.  

Grosso modo, Foucault lê a loucura de Nietzsche em registos diferentes na Histoire de la folie à l'âge classique, 1961 (História da Loucura na Época Clássica) e num manuscrito de 1966, Le discours philosophique (O Discurso Filosófico). Entre os dois textos não há verdadeiro antagonismo, mas as mudanças do primeiro para o segundo permitem compor uma leitura do pensamento nietzschiano mais abrangente e profunda. Na História da Loucura, Nietzsche serve — depois de mostrar como se alterou a relação entre a loucura e a normalidade, sobretudo discursiva — para demonstrar que nos primórdios da pós-modernidade desapareceram as passagens entre a loucura e a obra, agora formas heterogéneas, incomensuráveis, privilegiando-se a racionalidade lógico-explicativa. No Discurso Filosófico, pensa, já como pós-estruturalista, a mutação do modo discursivo próprio (historicamente próprio, não essencialmente próprio) à filosofia instaurado por Descartes. O discurso filosófico deixa de procurar a verdade, assente em «ideias claras e distintas» descobertas por um eu impessoal, e abre-se a uma subjetividade (não kantiana) capaz, como acontece em Nietzsche, de usar, com objetivos mais performativos do que constativos (influenciando ou manipulando mais do que revelando ou explicando), diferentes modos discursivos — já não se distinguindo substancialmente dos científico, literário ou religioso — para diagnosticar o presente. Projetando-se, assim, uma mutação que parece conduzir à morte da filosofia porque permite, contra a História da Loucura, que a loucura incendeie o discurso filosófico, como sempre esteve autorizada a fazê-lo com poesia e a religião. Este desvanecimento do discurso filosófico permite a Foucault defender que Nietzsche «anuncia uma nova manhã». Abertura para outras possibilidades de pensar (o intempestivo observando criticamente o tempestivo), mantendo, porém, o mito de que há algo mais fundo, mais arcaico do que o histórico (a ideia de absoluto é um dos últimos totens, talvez o mais resistente porque provém de um instinto, e desejo, de transcendência). Influenciado por Nietzsche, Foucault quer ir mais longe e fazer coincidir o discurso filosófico com uma «etnologia do imanente».

História da Loucura:

Neste ensaio (no qual experimenta um estruturalismo que engloba a história e a filosofia, a que chama «arqueologia»), Foucault mostra como a loucura, o reverso da razão, começou por ser recebida no Renascimento enquanto esplendor da imaginação; excêntrico, o louco era uma figura do limiar. Um limiar do próprio humano, Hieronymus Bosch denunciava o verniz frágil da racionalidade que nos cobre. Os passageiros loucos (para Foucault, citando Sebastian Brant no capítulo inicial da História da Loucura, que escreveu sobre o tema no final do século xv, muitos viajavam em navios — reais ou imaginários, há quem defenda que foi sobretudo uma figura literária —, fretados pelos governantes, mendigando um porto que não os recambiasse para o mar, na época um utopos — não-lugar —, que parecia ser o sítio adequado para o outro humano, o da noite, opaca, perigosa e misteriosa; outras figuras da loucura, como no quadro A Nave dos Loucos, pareciam um prolongamento maligno da ordem estabelecida) exibiam a porosidade que facilitava a passagem entre a razão e a loucura. Com Erasmo de Roterdão e Montaigne, essa denúncia foi esbatida e o pesadelo do reino do Caos substituído em grande parte pela ironia. Mas o mais importante é que a época Clássica quis varrer de uma só vez por todas as ambiguidades perturbadoras, e constrangedoras para o eterno narcisismo humano, inventou e justificou o grande enfermement (encerramento): internaram-se os loucos, os mendigos, os vagabundos, os delinquentes, os pobres... A época Clássica, reino da razão, desmistificou e criminalizou a loucura e outros comportamentos desviantes, substituindo a distância respeitosa para com o sombrio por medidas administrativas higienizantes ou purificantes, dessacralizou a loucura e fez dela um problema jurídico e de saúde pública que, a favor da «ordem social», impunha construir cercas altas, supostamente protetoras, não fosse uma epidemia de anormalidade propagar-se incontrolavelmente.

Todavia, nesta época só se é louco «na medida em que a [nossa] loucura não se esgota na verdade do louco. É por isso que, na experiência clássica, a loucura pode ser simultaneamente um pouco criminosa, um pouco fingida, um pouco imoral, um pouco razoável também[10] Isto deu ao louco uma liberdade ambígua: a de ser livre mas investido de responsabilidade. Contra esta contradição, percebida como injusta, o Iluminismo nascente decidiu encerrar os loucos para que pudessem viver em liberdade sem os riscos da responsabilidade: «liberta-se [o louco] da familiaridade com o crime e o mal, mas para o encerrar [enfermer] nos mecanismos rigorosos de um determinismo. Ele só é totalmente inocente no absoluto de uma não-liberdade»[11]. Por isso, «O louco é agora totalmente livre e totalmente excluído da liberdade[12] Ei-lo alienado, ensimesmado na sua liberdade e na sua verdade, sem exterior. Assim se compreende esta sentença de Foucault: «A loucura clássica [do final desta era] pertencia às regiões do silêncio[13] Isto enquadra a censura cartesiana à loucura, ajudando a excluí-la da filosofia: a vontade, e necessidade, da verdade torna impossível o lirismo e os paralogismos (margens impuras do logos). É isso que defende nas Meditações Sobre a Filosofia Primeira (1641). Para ele, o erro é possível e, até, legítimo (resulta da nossa condição dual: corpo e alma, sonho e lucidez). Mas não a desrazão, o louco não pode (porque não consegue percorrer o caminho da verdade) filosofar.

Este paradigma racionalista alterou-se nos séculos xviii e xix, a loucura adquiriu paulatinamente uma linguagem na qual podia falar. Foucault dá o exemplo de Le neveu de Rameau de Denis de Diderot (1762-73) e da produção literária do Frühromantik alemão (uma constelação que se inicia com Goethe, Schiller, Wolf, Schelling, Fiche… e culmina nos irmãos Schlegel, Novalis, Fichte ou Schleiermacher). A linguagem passou a ser a do «fim último e do recomeço absoluto: fim do homem que se afunda na noite, e descoberta, no fim dessa noite, de uma luz que é a das coisas no seu primeiríssimo começo.»[14] Com isto, diz Foucault, o louco redobra o seu poder de nos fascinar, a sua linguagem continua sem poder explicar as figuras invisíveis do mundo, mas assume a revelação das «verdades secretas do homem»[15], e «ele transporta mais verdades do que as suas próprias»; por isso, «do homem ao homem, o caminho passa pelo homem louco[16] Neste sentido, as características dos autores — seja a melancolia de Swift, o delírio maníaco-depressivo de Rousseau ou a loucura de Torquato Tasso — pertencem às suas obras.

Relativamente a Nietzsche, que diagnostica e instiga, com Van Gogh, Goya e Artaud, ao fim da modernidade racionalista — quando o homem parece desaparecer do primeiro plano a favor da linguagem —[17], a História da Loucura utiliza-o para interpretar a loucura como «ausência de obra»[18]. A primeira semana de janeiro de 1889 demonstra a impossibilidade de Nietzsche prolongar a sua obra, ele atingiu o limiar a partir do qual reina o silêncio ou as gesticulações incongruentes. De igual modo, Van Gogh e Artaud sabiam que a loucura os impedia de realizarem novas obras, ou, sequer, de reconhecer as antigas. Mas, nos exemplos que apresentei, já antes do colapso nietzschiano a possibilidade de enlouquecer alimentava o receio da dissolução do eu. Se para Nietzsche, diz Foucault, não há interpretações fechadas — sendo a filosofia uma espécie de «filologia suspensa» —, é também por vislumbrar um ponto de não-retorno, no qual um absoluto seria reificado à margem de qualquer imanência, um misticismo tomaria conta da hermenêutica. Assim, num artigo de 1967, «O que está em causa no ponto de rutura da interpretação, nesta convergência da interpretação em direção a um ponto que a torna impossível, poderá bem ser qualquer coisa como a experiência da loucura.»[19] Regressemos, porém, à História da Loucura para recuperar uma das suas principais teses: «não interessa muito saber quando se insinuou no orgulho de Nietzsche, na humildade de Van Gogh a voz primeira da loucura. Só há loucura como instante último da obra — esta repele-a indefinidamente para os seus confins: onde há obra, não há loucura»[20].

O Discurso Filosófico:

O capítulo onze deste livro póstumo serve para nos informar de que a multiplicação dos heterónimos nietzschianos «indicam o estilhaçamento do sujeito filosofante, a sua existência múltipla, a sua dispersão por todos os ventos do discurso.»[21] E isto vai provocar uma mutação (mutation) na relação entre o discurso filosófico e quem o enuncia, abrindo para a «possibilidade do filósofo louco[22] «Com Nietzsche, continua Foucault, a decomposição do discurso filosófico deixa-o desprotegido e indefeso contra a loucura. Esta tem agora a possibilidade de o incendiar, tal como pode incendiar a fúria dos poetas, o delírio dos tiranos, a embriaguez dos homens de Deus»[23]. Assim, a incomensurabilidade entre obra e loucura da História da Loucura é agora substituída pela abertura da filosofia à loucura. A partir disto, é legítimo vermos na ideia nietzschiana de grandeza, cujas primeiras manifestações remontam pelo menos à segunda metade da década de 1870, partículas de loucura fornecendo aos textos uma força performativa e uma inteligibilidade outras. Podemos, inclusive, perguntar-nos se Nietzsche teria sido capaz de escrever com tanto fulgor Assim Falou Zaratustra (1883-85) ou Ecce Homo (final de 1888) se não fosse já um pouco louco. São, portanto, novas condições de possibilidade filosóficas que Foucault descobre em 1966. Como veremos na citação que se segue, a loucura que estava autorizada a fazer parte do lirismo poético, como em Hölderlin, passa agora a poder habitar na filosofia: «Nas últimas cartas de Nietzsche, na convocação dos soberanos, no postal a Strindberg, na mensagem final a Peter Gast, é, de facto, o pensamento de Nietzsche que se afunda. Mas podemos reconhecer aí os limites da sua filosofia — mais a sua suspensão do que a sua interrupção —, e de, a partir de agora, estarmos dispostos a perguntar a toda a loucura não só o que pode incluir de poético, mas o que pode, no seu abismo, enunciar de filosófico, é um sinal de que o discurso filosófico se desenrola de acordo com um novo modo de ser e se organiza de acordo com um novo regime. “Cantai-me um cântico novo, o mundo está transfigurado”»[24].

Esta posição é tanto mais marcante quanto n’As Palavras e as Coisas (publicado em 1966, mas redigido um ou dois anos antes) a loucura era entendida diferentemente. Na mudança da episteme do homem para a linguagem, Foucault refere que sendo o homem finito, ao «chegar ao cimo de toda a palavra possível, não é ao âmago de si mesmo que ele chega, mas à beira do que o limita»[25]. Antonin Artaud e Raymond Roussel testaram os limites da literatura, no primeiro a linguagem incapaz de discorrer remete-se «ao grito, ao corpo torturado, à materialidade do pensamento, à carne»[26]; no segundo, «a linguagem, reduzida a pó por um acaso sistematicamente preparado, conta indefinidamente a repetição da morte e o enigma das origens desdobradas.»[27] O limite da linguagem manifesta-se no interior da loucura ou de qualquer coisa de mudo, de insignificante (não-significante). Em três autores — Kafka, Bataille e Blanchot —, essa experiência do fim da linguagem conduziu à experiência da morte, do indecidível e da repetição obsessiva sem fugas. Portanto, n’As Palavras e as Coisas, trata-se da finitude da linguagem e não, como no Discurso Filosófico, de desvanecer os limites da linguagem para que possa acolher a loucura. Assim, este livro póstumo propõe o enriquecimento das possibilidades de sentido, acolhendo, quase paradoxalmente, as margens do sem-sentido.

 

Bibliografia

BELO, Fernando, «Todos nascemos loucos, alguns mantêm-se», in Electra 4, dezembro 2018, pp. 110-111.
FOUCAULT, Michel, As Palavras e as Coisas, trad. António Ramos Rosa, Lisboa: Edições 70, 2022 [1966].
FOUCAULT, Michel, Dits et écrits, 2 vols. Paris: Gallimard/Quarto, 2001.
FOUCAULT, Michel, Histoire de la folie a l’âge classique, Paris: Gallimard, 1972 [1961/1964].
FOUCAULT, Michel, O Discurso Filosófico, trad. Victor Gonçalves, Lisboa: Edições 70, 2024 [1966, póstumo, publicado em 2023 pela Gallimard/Seuil com um extenso aparato crítico da responsabilidade de François Ewald, Orazio Irrera e Daniele Lorenzini].
KLOSSOWSKI, Pierre, Nietzsche et le cercle vicieux, Paris: Mercure de France, 1969.
NIETZSCHE, Friedrich, Werke: kritische Studienausgabe, 15 volumes, Munich-Berlin/New York: dtv-Walter de Gruyter, 1999.
NIETZSCHE,   Friedrich, Sämtliche Briefe, Kritische Studienausgabe, 8 volumes, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1986.
VARTZBEL, Éric, «Quelques considérations cliniques sur la folie de Nietzsche», in Psychothérapies, vol. 25, 2005/1, pp. 21-27.

[1] Traduzimos os documentos epistolares da Sämtliche Briefe, Kritische Studienausgabe, Band 8, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1986.
[2] Esposa de Richard Wagner. Nietzsche conviveu intimamente com a família Wagner quando foi para a Universidade de Basileia como professor de Filologia Clássica em 1869. Os Wagner vivam exilados em Tribschen, no catão de Lucerne, e acolheram Nietzsche como se fosse mais um filho.
[3] O artigo de Éric Vartzbed, «Quelques considérations cliniques sur la folie de Nietzsche» (in Psychothérapies, vol. 25, 2005/1, pp. 21-27), permite enquadrar o problema e está disponível online.  
[4] «Introdução a Michel Foucault«, in As Palavras e as Coisas, p. 10.
[5] Electra 4, dezembro 2018, p. 11.
[6] «Conto, simplificando-a, a história destes filósofos [Tales, Anaximandro, Heraclito, Parménides, Anaxágoras, Empédocles, Demócrito e Sócrates]: só quero extrair de cada sistema o ponto que é um fragmento de personalidade e pertence à parte do irrefutável e indiscutível que a história tem de preservar». (Werke: kritische Studienausgabe, 1, pp. 801-802). Em Para a Genealogia da Moral II, § 7, centra a análise noutro campo: o do casamento. Nenhum grande filósofo foi, diz, casado, é, aliás, impossível imaginá-los assim (no panteão de pensadores celibatários estão, entre outros, Platão, Descartes, Schopenhauer e Kant). No § 8 da mesma obra, elogia a vontade de silêncio e um timbre de voz suave. Pouco depois, concentra-se no recato, os filósofos detestam mulheres, glória e príncipes.
[7] Cf. Nietzsche et le cercle vicieux, p. 356.
[8] Idem, pp. 355‑356.
[9] Esta tese está particularmente bem expressa em O Discurso Filosófico.
[10] Histoire de la folie à l’âge classique, p. 635.
[11] Idem, p. 636.
[12] Ibidem.
[13] Idem, p. 637.
14] Idem, p. 639.
[15] Idem, p. 640.
[16] Idem, pp. 640 e 649.
[17] É célebre o final de As Palavras e as Coisas, no qual Foucault arrisca dizer que «O homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim.» (P. 497).
[18] Podemos deduzir que Foucault não nega que nestes autores a loucura faça parte das suas obras, mas apenas ao nível da receção, são os leitores que incluem a loucura terminal deles nos seus escritos prévios. (Cf. idem, pp. 661-62).
[19] Michel Foucault, «Nietzsche, Freud, Marx» [1967], in Dits et écrits I, pp. 592-608. O texto foi lido e discutido no Colóquio de Royaumont de 1964.
[20] Histoire de la folie à l’âge classique, p. 663.
[21] O Discurso Filosófico, p. 151.
[22] Ibidem.
[23] Idem, p. 152. No aparato crítico da edição da Gallimard/Seuil, há a seguinte nota importante redigida pelos editores: «a “possibilidade do filósofo louco” de que falava Foucault em 1963, no seu ensaio sobre Georges Bataille, foi, de facto, (re)aberta por Nietzsche: “É exatamente o inverso do movimento que sustenta a sabedoria ocidental desde Sócrates: a linguagem filosófica prometia a esta sabedoria a unidade serena de uma subjetividade que triunfaria nela, tendo sido inteiramente constituída por ela e através dela. Mas se a linguagem filosófica é o que repete incansavelmente o tormento do filósofo e lança ao vento a sua subjetividade, então não só a sabedoria já não pode valer como figura de composição e de recompensa, como se abre inevitavelmente uma possibilidade no fim da linguagem filosófica [...]: a possibilidade do filósofo louco. Quer dizer, encontrar, não fora da sua linguagem (por um acidente do exterior, ou por um exercício imaginário), mas no seu interior, no âmago das suas possibilidades, a transgressão do seu ser filósofo» (Michel Foucault, «Préface à la transgression», Critique, 1963, [Dits et écrits I, pp. 261-278]).
[24] Idem, pp. 152-153. Foucault cita uma carta de Nietzsche de 4 de janeiro de 1889 a Heinrich Köselitz (Peter Gast), Turim. A carta completa termina depois de «transfigurado» com «todos os céus se alegram» e é assinada por «O Crucificado»: «Singe mir ein neues Lied: die Welt ist verklärt und alle Himmel freuen sich. Der Gekreuzigte.» (Sämtliche Briefe, Kritische Studienausgabe, Band 8, p. 575).
[25] P. 493.
[26] Ibidem.
[27] Ibidem.

Escuridão

Thomas phillips, Byron em Traje Albanês, 1835 (retrato Original de 1813)

Byron escreveu “Escuridão” em Julho de 1816 nas margens do Lago Geneva, ao mesmo tempo que, no mesmo lugar, Mary Shelley escrevia a outra obra-prima da época, Frankenstein. Quando Byron escreveu este poema há um ano que não havia verão e a temperatura do planeta tinha descido 1 grau centígrado porque na primavera de 1815 o Monte Tambora, um vulcão na Indonésia, tinha tido uma violenta erupção, o que desencadeou fenómenos climáticos extremos por todo o planeta. O ano que a cinza levou a dissipar-se ficou conhecido como o ano sem verão. Mais de dez mil pessoas morreram na explosão, tão violenta que pulverizou de imediato cerca de um terço do monte, e cerca de trinta mil pessoas pereceram pelo mundo fora devido à fome que resultou da instabilidade climática. “Escuridão” é um poema assertivo e distópico sobre uma necessidade absoluta de solidariedade. Sobre a solidariedade enquanto civilização. É um poema que vai rejeitando e destruindo todos os símbolos a que as figuras que aparecem se tentam agarrar até chegar a essa revelação.


George Gordon, Lord Byron
Julho de 1816
Tradução de Tatiana Faia

Tive um sonho, que não era inteiramente um sonho.
Extinguiu-se o sol brilhante, e as estrelas
Vaguearam apagadas no espaço eterno,
Sem raios, sem caminho, e a terra gelada
Balouçou-se cega e enegreceu no ar sem lua;
A manhã veio e foi-se – e veio e não trouxe o dia,
E os homens esqueceram-se das paixões no horror
De tudo isto a sua desolação, e todos os corações
Gelaram numa egoísta prece por luz:
E viviam colados aos fogos da vigília – e os tronos,
Os palácios dos reis coroados – as cabanas
As possessões de todas as coisas de casa,
Foram queimadas para feixes de luz; cidades inteiras foram consumidas
E os homens reuniram-se em redor das suas casas em chamas
Para mais uma vez olharem os rostos uns dos outros;
Felizes aqueles que moravam perto do olho
Dos vulcões e na tocha das suas montanhas:
Uma esperança amedrontada era tudo o que o mundo continha;
Queimaram-se florestas – mas hora a hora
Caíam e extinguiam-se – e os troncos que estalavam
apagavam-se com estrondo – e tudo ficou negro.
As sobrancelhas dos homens à luz desesperada
Exibiam um aspecto sobrenatural como se em síncopes
Os clarões intermitentes se abatessem sobre eles; alguns deitaram-se
E taparam os olhos e choraram; e alguns repousaram
O queixo nas mãos cerradas, e sorriram;
E outros apressaram-se de cá para lá e alimentaram
As próprias pilhas funerárias com combustível e levantaram o olhar
Para o céu baço com um desassossego tresloucado,
Mortalha de um mundo passado, e de novo
Com maldições lançavam-se ao pó,
E rangiam os dentes e uivavam; os pássaros selvagens guinchavam
E, aterrorizados, palpitavam no chão
E batiam as asas inúteis, os brutos mais selvagens
Chegavam amansados e trémulos; e as víboras rastejaram
E entrelaçaram-se entre a multidão,
Sibilando mas sem ferrar – foram chacinadas para alimento,
E a guerra, que por um momento não houve,
Comeu à farta de novo: uma refeição comprava-se
Com sangue e cada um saciava-se taciturno e à distância
Empanturrando-se de tristeza: nenhum amor restava;
Toda a terra era um pensamento só – morte
Já e sem glória, e a dor
Da fome alimentou-se de todas as entranhas – os homens
Morriam e os seus ossos como a sua carne não tinham sepultura;
Os magros pelos magros eram devorados,
Até os cães atacavam os donos, menos um deles,
Que era fiel a um cadáver e mantinha
Pássaros e bestas e homens famintos à distância,
Até que se apoderava deles a fome ou os mortos caídos
Atraíam as suas parcas mandíbulas, ele não procurava comida,
Mas com um piedoso e perpétuo gemido,
E um rápido ganido desolado, lambendo a mão
Que com uma carícia já não respondia – morreu.
A multidão esfaimava-se aos poucos; mas dois
De uma cidade enorme sobreviveram
E eram inimigos: encontraram-se ao lado
Das brasas que se extinguiam a um altar
Onde estava amontoada uma pilha de coisas sagradas
Para uso profano; esquadrinharam
E a tremer amealharam com frias mãos esqueléticas
As débeis cinzas e a sua débil respiração
Fez-se sopro por um pouco de vida e gerou uma chama
Que era zombaria, ergueram
Os olhos enquanto se fez escassa e contemplaram
O aspecto um do outro – olharam, guincharam e morreram –
Até da mútua sordidez morreram,
Sem reconhecer quem era aquele sobre cuja sobrancelha
A Fome escrevera Pobre Diabo. O mundo ficou vazio,
O populoso e o poderoso fizeram-se pedaço,
Sem estação, sem erva, sem árvore, sem homem, sem vida –
Um pedaço de morte – um caos de duro barro.
Os rios, lagos e oceano todos ficaram imóveis,
E nada se agitava nas suas profundezas silenciosas;
Navios sem marinheiros apodreciam no mar
E os seus mastros caíam aos pedaços; enquanto caíam
Eles dormiam num abismo sem uma única vaga –
Tinham morrido as ondas; as correntes estavam no túmulo,
A lua, sua amante, expirara antes;
Os ventos mirraram no ar estagnado
E pereceram as nuvens; A Escuridão não tinha necessidade
De ajuda – Ela era o Universo.